A importância de uma obra que deixou visíveis marcas em alguns dos pensadores mais proeminentes do século XX.
Maurício Vieira Martins
“1922 […] Ainda ouço à minha volta o zunir das balas da guerra vermelha contra os imperialistas, ainda treme em mim a agitação da ilegalidade na Hungria; nenhuma fibra do meu ser quer aceitar o fato de que a primeira grande onda revolucionária já passou, que a vontade revolucionária decidida da vanguarda comunista não está em condições de derrubar o capitalismo. Portanto, base subjetiva: impaciência revolucionária. Resultado objetivo: a obra Geschichte und Klassenbewuβtsein (História e consciência de classe)”.[i]
Este é o relato rememorativo de György Lukács sobre sua intensa vivência ao longo do período iniciado pela revolução húngara de 1919, movimento logo sufocado pelas forças conservadoras. Foi por volta deste período que o filósofo escreveu os ensaios de sua obra mais célebre, História e consciência de classe, publicada em 1923, há exatos 100 anos atrás.
Neste relato, bem como em outros posteriores de György Lukács, chama a atenção o olhar crítico dirigido à sua própria obra: a vontade da vanguarda, ele nos diz, é uma base insuficiente para se levar adiante uma revolução. No Posfácio da edição de 1968 de seu famoso livro, György Lukács fará referência ao “sectarismo messiânico”[ii] que seu grupo social então representava. Mas não terá sido excessivamente severo o juízo de György Lukács sobre o texto que levou seu nome ao reconhecimento internacional?
Sem ter a pretensão de responder esta questão (que dividiu fortemente os comentaristas do filósofo), este breve escrito pretende apenas destacar a importância de uma obra que deixou visíveis marcas em alguns dos pensadores mais proeminentes do século XX. Seria possível escrever um volumoso livro sobre as repercussões de História e consciência de classe nas ciências humanas e na filosofia: Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin, Maurice Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre, Guy Debord, Lucien Goldmann, estes são apenas alguns dos nomes afetados pelo texto e que dele extraíram motivos para sua própria elaboração.
E do que trata esta obra seminal? De forma extremamente resumida, é correto afirmar que nos ensaios ali existentes György Lukács se posiciona em defesa do marxismo, diferenciando-o de pelo menos dois interlocutores distintos. O primeiro era o que ele nomeava como “marxismo vulgar” – versão simplificada e caricatural do pensamento de Marx – que exacerbava de tal maneira as determinações econômicas que findava por minimizar a importância da ação humana organizada.
O segundo conjunto de interlocutores de História e consciência de classe aparece como sendo a “ciência burguesa”; esta que fraciona e subdivide ao infinito seus objetos, numa prática que “faz de todo objeto histórico tratado uma mônada imutável, excluída de toda interação com as outras mônadas – concebidas da mesma maneira” (p. 315). Em ambos os casos, o que se perde é a dialética marxista, que investiga os nexos constitutivos e contraditórios de uma totalidade complexa. Não sendo viável expor aqui a densidade desta obra, gostaria apenas de colocar em evidência uma categoria desenvolvida num dos ensaios que teve um devir especialmente fecundo. Refiro-me à Verdinglichung, conceito habitualmente traduzido para a língua portuguesa como reificação ou coisificação (o núcleo Ding da palavra em alemão significa coisa).
Para formular as características da reificação, Lukács se apoia na teoria desenvolvida por Marx em O capital, particularmente na seção sobre o fetichismo da mercadoria. Recordemos que o texto marxiano coloca em evidência as características do fracionamento da produção de mercadorias, levada a cabo por produtores independentes, que desde o início dirigem sua atividade para a troca. Esta produção mercantil gera uma peculiar forma de objetividade, desconhecida em épocas anteriores. Nela, uma de suas características mais desconcertantes vem a ser que as relações entre os seres humanos produtores assumem a aparência de uma relação entre coisas que adquiriram vida própria. O surgimento da mercadoria, longe de revelar sua gênese no trabalho humano, afirma György Lukács nos rastros do texto marxiano, transforma-a num “invólucro reificado” (p. 197).
A estrutura da produção de mercadorias já havia sido radiografada com precisão por Karl Marx; sobre esta base, György Lukács aponta e desenvolve o enorme impacto subjetivo que a reificação exerce em todos aqueles que caem em suas malhas. Não que esta dimensão subjetiva estivesse ausente em Marx: já existe hoje uma consistente bibliografia que mostra o erro que é considerar o marxismo como um objetivismo filosófico. Mas György Lukács tomou a si a tarefa de desdobrar e aprofundar – imprimindo ao tema uma dicção autoral – aquilo que Nicolas Tertulian nomeou como uma “fenomenologia da subjetividade”.[iii]
A meu juízo, um dos momentos mais fascinantes de História e consciência de classe ocorre quando György Lukács examina as consequências da reificação na consciência de diferentes grupos e classes sociais, principalmente quando do advento de uma mecanização mais acentuada na produção: “essa mecanização racional penetra até na “alma” do trabalhador: inclusive suas qualidades psicológicas são separadas do conjunto de sua personalidade e são objetivadas em relação a esta última, para poderem ser integradas em sistemas especiais e racionais e reconduzidas ao conceito calculador” (p. 202).
Dito de outro modo: para a produção capitalista poder ser levada a cabo, é preciso criar uma disposição determinada na subjetividade de seus agentes, que passam a introjetar e naturalizar as demandas oriundas de um sistema que funciona mediante a produção ininterrupta de mercadorias. Isso significa que muito antes de Norbert Elias e, anos depois, Pierre Bourdieu desenvolverem a teorização sobre o habitus – conjunto de disposições interiorizadas nos sujeitos – György Lukács já elaborava conceitualmente a existência de uma estrutura introjetada nos agentes sociais que fraciona sua própria subjetividade.
Como fenômeno geral, espraiado por toda a sociedade, a reificação submete os diferentes grupos e classes sociais envolvidos na produção de mercadorias. Isso posto, é preciso ter em conta que a classe dominante aufere benefícios – alguns deles muito visíveis – de sua situação alienada. Já no que diz respeito aos trabalhadores, a reificação vem somar-se à brutalidade da exploração capitalista.
Nas palavras de György Lukács, “a diferença quantitativa da exploração, que para os capitalistas tem a forma imediata de determinações quantitativas dos objetos do seu cálculo, deve aparecer para o trabalhador como as categorias qualitativas e decisivas de toda sua existência física, intelectual, moral etc.” (p. 337).
Enquanto para a classe proprietária a situação de seus trabalhadores é aferida em termos quantitativos, a depender do quantum de valor que eles agregam aos produtos, já na classe explorada esta condição é vivida qualitativamente em todo o seu impacto, no sofrimento cotidiano a que ela é submetida. Esta assimetria entre as classes permite a György Lukács fazer sua aposta na classe expropriada como o sujeito de uma contestação mais radical ao sistema: “essa transformação só pode ser o ato – livre – do próprio proletariado” (p. 411).
É possível divergir de vários aspectos de História e consciência de classe. Lendo-se hoje o texto, percebe-se por exemplo uma idealização do que György Lukács categoriza como consciência do proletariado, generalização que nem sempre encontra o pretendido suporte na realidade. Já sabemos que o próprio György Lukács foi muito severo com esta obra. E ele fez isso sem nenhuma autopiedade, sem nenhum lamento por ela, apontando com todas as letras para o seu “utopismo messiânico” (p. 28). Dito isso, permanece verdadeira a existência de fecundos vetores igualmente presentes no texto, que mantêm o seu vigor conceitual.
Diríamos que a forte vivência da revolução húngara – descrita em termos extremamente vívidos na passagem que abre o artigo – deixou marcas em nosso filósofo que se propagaram mesmo em sua obra posterior. Aqui, caberiam considerações sobre o que alguns autores nomeiam como o excesso de significação, propriedade de uma obra densa, estratificada, portadora de núcleos interpretativos que conseguem ultrapassar o momento imediato em que foram gerados e chegar até nosso tempo presente.
Talvez seja por isso que ainda hoje, ao andar nos transportes coletivos do nosso século XXI, e observar as pessoas como que hipnotizadas e ensimesmadas em seus aparelhos celulares – formas condensadas de um avanço tecnológico, mas também da alienação – recordo-me das duras palavras de György Lukács sobre a reificação: “Para a consciência reificada, essas formas do capital se transformam necessariamente nos verdadeiros representantes da sua vida social” (p. 211).
Maurício Vieira Martins é professor aposentado do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da UFF. Autor, entre outros livros, de Marx, Spinoza and Darwin: materialism, subjectivity and critique of religion (Palgrave Macmillan).
Fonte: A Terra é Redonda, por Lavra palavra
Data original da publicação: 09/04/2023
DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/100-anos-de-historia-e-consciencia-de-classe/