Doutora em Educação, Lucimar Rosa Dias coordena grupo de estudos étnico raciais da UFPR. Políticas públicas também devem considerar gênero e classe social, argumenta.
Por Ana Krüger, g1 PR* — Curitiba
Em média, no Paraná, uma mulher negra ganha, por mês, menos da metade do que um homem não negro. É o que revela análise do Dieese, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, sobre as dificuldades da população negra no mercado de trabalho.
O estudo baseia-se nos dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do 2º trimestre de 2023. Veja:
- Renda mensal média entre mulheres negras (pretas e pardas): R$ 1.935;
- entre mulheres não negras (amarelas, brancas e indígenas): R$ 2.798;
- entre homens negros (pretos e pardos) R$ 2.717;
- entre homens não negros (amarelos, brancos e indígenas): R$ 3.895.
No Brasil, a desigualdade salarial é ainda maior:
- Renda mensal média entre mulheres negras: R$ 1.908;
- entre mulheres não negras: R$ 3.096
- entre homens negros R$ 2.390;
- entre homens não negros: R$ 4.013.
Jennifer Firmino Vitoriano tem 37 anos. Mulher, negra, mãe de três filhos, ela trabalha como ajudante de motorista fazendo entregas para uma empresa de cerveja. O emprego, conta ao g1, foi conseguido a partir de política afirmativa da companhia de destinar vagas exclusivas para pessoas negras.
Esse é o emprego com carteira assinada. Ela também é trancista, trabalha com eventos e como segurança quando surgem oportunidades, e ainda estuda.
Já adulta, ela conseguiu terminar o ensino médio e está quase terminando um curso de técnico de enfermagem. Para concluir, faltam “só” as 200 horas de estágio obrigatório, que tem feito à noite em uma Unidade Básica de Saúde da capital.
Sem contar o trabalho doméstico que, hoje, é compartilhado com os filhos. Os quatro vivem no bairro Caximba, em Curitiba. Quando mudou para lá, lembra, não tinha água nem luz. Foi construindo tudo aos poucos.
“Não é fácil para a gente em nenhum momento. Eu acho que, também, é que nem diz amigo meu: ‘A gente que é preto já tem uns dez passos atrás, a gente tem que correr para frente, né, não pode errar”, diz.
Uma desigualdade em cima da outra
A doutora em Educação Lucimar Rosa Dias coordena o ErêYá, o Grupo de Estudos e Pesquisas em Relações Étnico-raciais da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ela analisa que a mulher negra e pobre acaba sustentando a pirâmide social brasileira por ser o grupo mais afetado na estrutura de profunda desigualdade, que a coloca, muitas vezes, em situações extremas de vulnerabilidade.
“Elas estão sustentando o Brasil em relação a trabalho, as condições de fazer esse desenvolvimento econômico andar. Mas elas recebem muito pouco em troca. Então, eu acho que uma das alternativas importantes que as políticas, todas elas, as políticas sociais precisariam fazer o recorte de gênero”, analisa.
Entre os dados analisados pelo Dieese estão os de subutilização. A taxa considera a quantidade de pessoas desempregadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas e a força de trabalho potencial. Novamente, a condição da mulher negra é apontada como a mais crítica:
- taxa de subutilização entre mulheres negras: 16,8%;
- entre mulheres não negras: 11,2%;
- entre homens negros: 8,6%;
- entre homens não negros: 7,2%.
Condições mais justas
A coordenadora do grupo de estudos defende que ações afirmativas, como as políticas de cotas em universidades, em empresas, ou concursos públicos, ajudam a construir um cenário mais justo de oportunidades.
“Por que é legítimo que as ações afirmativas sejam usadas por nós, mulheres negras? E isso não é demérito, isso não quer dizer que você tem menos capacidade em relação às outras mulheres, quer dizer que a gente está criando uma situação de justiça”, cita.
Jennifer Firmino relembra que na infância e na adolescência não teve muitas oportunidades de estudar. Ela e as duas irmãs viveram em um orfanato e, quando tinha dez anos, a mãe as buscou de volta.
“A gente não teve muito estudo, muito ensinamento de muita coisa. E eu fui sair cedo de casa, por isso que eu tenho que trabalhar, né? Procuro bico ali, bico lá! Minha mãe não era muito de ensinar a gente, até hoje eu não sei muita coisa, aí eu bato a cabeça para ensinar os meus filhos”, relata.
Ela afirma que só passou a diminuir a quantidade de serviços que pegava quando, de tanto cansaço, “cochilou” duas vezes enquanto dirigia a moto que usa para se locomover.
Uma chance de querer mais
No último domingo (19), Jennifer prestou um concurso público para ser técnica de enfermagem. É a oportunidade de conseguir um emprego melhor, afirma.
Para chegar até aqui, conta, já passou por infinitas dificuldades. Relatou a dificuldade de fazer a filha dormir quando a criança estava com fome e não tinha nada para alimentá-la – a próxima refeição da menina seria a oferecida na creche.
“Eu corria atrás de serviço e dava com a cara na porta, né? Foi assim que eu comecei a pegar serviço de limpeza. Agora, com 37 anos, eu voltei a estudar e eu estou tentando procurar uma vaga melhor, porque também eu não quero ficar trabalhando noite e dia, noite e dia, o resto da vida, eu quero mais.”
Em um contexto como o vivido por Jennifer, as políticas afirmativas podem ser uma estratégia para diminuir as desigualdades, por exemplo, entre quem busca uma vaga de emprego.
“As ações afirmativas ajudam a ajudam a melhorar esses índices que são, eu diria, tenebrosos, porque eles vão realimentando a desigualdade social brasileira e mantendo a maioria da população brasileira em condições perversas de vida. O ideal seria não ter ações afirmativas, mas eu acredito que, no nosso país, no Brasil, a desconstrução da desigualdade racial se dará por das ações afirmativas”, afirma a professora Lucimar Rosa Dias.
Tais políticas, explica a doutora em Educação, abrem portas e conseguem mudar a vida das pessoas e da sociedade brasileira.
“Quando a gente tem mais gente, por exemplo, com o ensino superior, não é bom só para aquela família, para aquela comunidade, é bom o país inteiro”, diz.
Uma vez observadas as condições de entrada e permanência no mercado de trabalho, a professora destaca ser preciso pensar além das cotas.
“Na hora de contratar essa mulher, ela é contratada em espaços aquém da sua condição, da sua qualificação, então, elas ganham menos com a mesma qualificação. É preciso ter cotas, ações afirmativas, que reconheçam a importância, por exemplo, de mulheres negras em espaços de comando”, afirma.
Esses avanços não vão surgir espontaneamente, afirma Dias. É preciso que haja discussões e ações focadas.
“Na medida em que as mulheres negras vão ocupando o espaço de trabalho, elas vão conquistando postos de comando? Não, não vão, as pesquisas estão mostrando que não”, diz.
Mais negros com a caneta na mão
Jennifer tem esperança de que os três filhos tenham mais oportunidades que ela.
“Eu me dobro para tentar dar o melhor para eles. E eu mostro sempre para eles estudarem e crescerem. Eu não quero que eles se dobrem tanto quanto eu, né? Eu quero que eles tenham uma vida, eu quero que eles curtam a vida deles. Eu não curti minha vida, a minha vida é trabalhar. Agora que eu quero viver pouco mais.”
Para a esperança de mulheres negras como Jennifer ter a possibilidade de virar realidade, a coordenadora do grupo ErêYá reforça a importância de haver negros e negras, comprometidos com a pauta racial, ocupando cargos de poder público.
“As políticas elas são feitas por pessoas, por gente, e tem uma teórica, a Patricia Hill Collins, estadunidense, que ela fala sobre as experiências com a produção de conhecimento. Mesmo que eu não tenha vivido exatamente o que aquela outra pessoa viveu, esse corpo é político”, frisa.
A professora da UFPR conta que teve a experiência de, por oito meses, ocupar uma diretoria do Ministério da Educação.
“Estar ali, um corpo negro discutindo, trazendo elementos para os colegas, pra sustentar determinadas políticas, determinadas propostas, faz uma diferença brutal. Então, é muito importante que a gente tenha cada vez mais pessoas negras ocupando esses espaços de poder.”
G1