Não é a dificuldade do trabalho, nem exatamente o seu volume, que massacra os trabalhadores atualmente, mas sobretudo a falta de sentido no que se faz – afirma o sociólogo Aaron Benanav. No entanto, analisando o futuro do trabalho, ele percebe que a fragmentação, a falta de autonomia e a impossibilidade de decidir o que e como produzir são fatores que poderiam ser profundamente transformados com a apropriação, pelos trabalhadores, dos mesmos meios tecnológicos que hoje são usados da submetê-los.
Essa análise, que devolve à dimensão do poder – logo da política – a primazia sobre o aspecto tecnológico, é fruto de pesquisas que Benanev tem dedicado a entender a situação do trabalho no contexto das transformações tecnológicas do mundo contemporâneo.
Em sua coluna na New Left Review e em livros como Automation and the Future of Work [Automação e o futuro do trabalho], ele analisa o atual estágio do capitalismo e desvenda alguns dos mecanismos que o sustentam. Por exemplo, ele procura dar uma resposta à frustração da expectativa de que desenvolvimentos tecnológicos – como a inteligência artificial – tornariam o trabalho obsoleto, enquanto hoje o que observamos é, pelo contrário, um aumento das horas trabalhadas e a deterioração das condições laborais, dos salários e dos direitos.
Isso passa por entender por que, mesmo sem base real, continua-se a crer no fundamento da tecnocracia, a “ideia de que um pequeno grupo de pessoas inteligentes possa apresentar soluções que vão chegar para consertar tudo”, como sintetiza Benanav. “Na verdade, as empresas tecnológicas estavam inventando tecnologias que ainda dependiam de pessoas trabalhando e que muitas vezes incorporavam novas formas de vigiar e gerir os trabalhadores e manipular os consumidores”, diz o sociólogo.
Nesta entrevista, o pesquisador argumenta que, ao contrário do que se crê, hoje os aportes tecnológicos não trazem grandes ganhos de produtividade, diferente do que se observou no setor industrial em séculos passados. Um robô normalmente é usado para carregar um peso muito grande, mas não produz um ganho de escala significativo. Talvez aí haja um ponto cego para a esquerda global, inclusive os movimentos sindicais: as lutas têm dificuldade de incorporar mudanças qualitativas nas condições de trabalho e priorizam as lutas salariais – relacionadas com a lógica da eficiência –, pois sobre essas constroem-se consensos mais facilmente. Mas o resultado tem sido deixar de lado questões estratégicas – e mesmo decisivas. Mais que trazer ganhos de produtividade, as tecnologias hoje são usadas para aumentar o controle do capitalista sobre os trabalhadores e, com grande ênfase, em fragmentar o trabalho, praticamente bloqueando as dinâmicas sociais que favorecem a formação de vínculos de classe.
É com essas questões no horizonte que a esquerda e os movimentos sociais precisariam se apropriar de ferramentas como a IA e repensá-las por uma lógica que tenha como objetivo não a “eficiência”, que na prática significa nortear a produção exclusivamente pela ampliação do lucro dos acionistas das empresas, mas sim buscar melhorias concretas nas condições de trabalho e no poder de decisão das pessoas sobre o seu trabalho.
Aaron Benanav destrincha estes e outros argumentos na entrevista a seguir, concedida a Amélia Horgan, do site Common Wealth.
Amélia Horgan: O que é a teoria da automação conforme você a descreve em Automation and the Future of Work [Automação e o futuro do trabalho] (Verso, 2020)?
Aaron Benanav: Na década de 2010, havia muito entusiasmo com a ideia de que as novas tecnologias – digitalização, conectividade à Internet, robôs, automação e inteligência artificial – iriam acabar com o trabalho tal como o conhecemos. O Vale do Silício deveria nos lançar em um tipo totalmente novo de existência humana – um mundo pós-escassez. No final da década de 2010, e certamente em 2018, assistimos ao início de uma grande reação contra o Vale do Silício, baseada num reconhecimento crescente de que, na realidade, os empregos não estavam desaparecendo devido à automatização.
Na verdade, as empresas tecnológicas estavam inventando tecnologias que ainda dependiam de pessoas trabalhando e que muitas vezes incorporavam novas formas de vigiar e gerir os trabalhadores e manipular os consumidores. Esse momento também abriu uma questão política sobre o que estas novas tecnologias podem fazer e para fazer o que serão utilizadas se as empresas puderem explorá-las sem restrições. Será que estamos caminhando para um mundo em que a tecnologia liga as pessoas de uma forma que lhes facilita o trabalho conjunto de uma forma democrática, ou as tecnologias serão utilizadas de uma forma que separa e atomiza os trabalhadores e torna muito mais difícil para eles se organizarem e construirem solidariedade?
AH: Por que a tese do fim do trabalho pela automatização, apesar da possibilidade de estar errada, tem tanto apelo?
AB: Em primeiro lugar, há uma espécie de mentalidade moldada por uma Mecânica Popular, que muita gente ainda tem, a de que o que faz a nossa sociedade avançar e mudar é a tecnologia. Quando ficamos pessimistas quanto às oportunidades de mudança social, recorremos à tecnologia para nos levar a um lugar mais feliz, especialmente quando desconfiamos do poder, da política e da capacidade de outras pessoas de nos conduzirem nessa direção.
Penso que o entusiasmo pela tecnologia está relacionado – embora nunca tenha descoberto exatamente como descrever isto em pormenores precisos – à crença na tecnocracia, à ideia de que um pequeno grupo de pessoas inteligentes possa apresentar soluções que vão chegar para consertar tudo. Romper essas crenças é realmente danoso para muitas pessoas. Penso muito sobre isso em relação às teorias da conspiração – sobre a Covid-19 e até mesmo sobre o 11 de Setembro em uma época anterior. O que acontece quando as pessoas que acreditavam que as tecnologias e a tecnocracia iriam salvá-las perdem a fé nessas entidades e começam a acreditar que elas podem estar fazendo mais mal do que bem?
AH: Por que, apesar de toda a aparente maravilha que são as tecnologias – as incríveis e esplendorosas tecnologias que temos, afinal todos podemos ter conversas pelo Zoom, ter iPhones e usar o ChatGPT –, a história de que a automação vai acabar com o trabalho está errada?
AB: Existem duas maneiras de abordar essa questão. Em meu livro, abordei o tema por uma perspectiva econômica. As estatísticas econômicas ajudam-nos a ter uma melhor noção da rapidez com que as novas tecnologias são adotadas em toda a economia. O que essas estatísticas mostram, sem dúvida, é que a adoção dessas tecnologias está ocorrendo de forma muito lenta e gradual e que realmente não vivemos numa época de transformação econômica particularmente rápida.
Vivemos numa era de quase estagnação econômica, definida por uma surpreendente ausência de mudanças tecnológicas rápidas e de base ampla — pelo menos do ponto de vista econômico. Esse é um problema que as pessoas têm tido muita dificuldade em entender. Na minha opinião, em última análise, tem a ver com o fato de muitas das tecnologias geniais do passado terem sido aplicadas para transformar o setor industrial; o setor industrial foi concebido e preparado para esta transformação porque é um ambiente inteiramente criado pelo homem, no qual as pessoas realizam tarefas muito repetitivas.
Como tal, está realmente preparado para um rápido crescimento da produtividade, economias de escala e todo esse tipo de coisas. Mas, desde a década de 1970, a economia industrial tem diminuído em termos de emprego, e temos assistido ao crescimento de um enorme setor de serviços, que é definido por taxas muito baixas de crescimento da produtividade – é muito difícil utilizar a tecnologia para tornar essas atividades mais eficientes. À medida que a economia se desloca para os serviços, todas as tecnologias geniais que estamos desenvolvendo não se difundem na economia da forma que as pessoas esperam. Nem sequer estão se difundindo pela indústria de transformação da forma que as pessoas esperavam, porque a indústria de transformação tem sofrido com o fato de cada vez mais empresas e cada vez mais países estarem lutando para produzir o mesmo tipo de coisas.
Na década de 2010, quando Vale do Silício falava dessa nova era de robôs e de como iriam transformar tudo, o setor industrial nos EUA tinha um crescimento de produtividade nulo; foi a pior década para o crescimento da produtividade desde que se começou a contabilizá-la. Essa é uma maneira de dizer que a história da automação não está funcionando – sabemos que realmente não está funcionando porque não conseguimos vê-la funcionar nas estatísticas econômicas.
Mas há uma segunda abordagem, que tem sido seguida de forma mais produtiva por um grupo do MIT, o grupo Work of the Future [Trabalho do Futuro]; ela consiste em ir ver como essas tecnologias estão sendo implementadas na produção e observar os seus limites – não apenas de uma perspectiva econômica, mas de uma perspectiva tecnológica. Apesar do incrível crescimento no uso de robôs, a maioria dos robôs é usada para realizar um número muito pequeno de tarefas em apenas alguns setores; a maioria dos robôs é usada para mover coisas pesadas de um lugar para outro. O robô Kiva, nos armazéns da Amazon, transporta coisas muito pesadas de um lugar para outro. Os robôs também são usados para fazer coisas como soldar peças de metal, pintar e cortar.
Em geral, os tipos de tarefas nos quais os robôs estão sendo usados atualmente são os mesmos onde costumavam estar antes. Muitas das novas tecnologias que entusiasmam as pessoas – a Internet das Coisas, robôs colaborativos, todo esse tipo de coisas – não foram adotadas por razões técnicas. E, em muitas pequenas e médias empresas, que representam uma parte muito substancial da produção, basicamente não existem robôs, porque, mesmo com a queda dos preços, ainda é muito caro programar robôs. Se você trabalha em um setor que exige muitas personalizações, é muito caro reprogramar esses robôs continuamente.
As tecnologias de IA também sofrem de problemas técnicos na sua utilização. Muitos dos grandes avanços ocorreram nos processos de linguagem natural – é nisso que o ChatGTP é bom –, mas esses avanços aconteceram porque os pesquisadores de IA abandonaram o esforço para fazer com que os computadores entendessem a lógica e pensassem de maneira racional. As novas tecnologias estão ficando muito boas em fluência, mas, até certo ponto, são fluentes em besteiras.
Quando você faz perguntas que exigem raciocínio simbólico, como questões de matemática ou de lógica, ou mesmo pede que gerem estudos e citações, eles não entendem o que isso significa. Eles não entendem a diferença entre o que é real e o que não é real, então tendem a gerar muitas coisas que simplesmente não são verdadeiras. Não há como as tecnologias atuais resolverem esses problemas. Existem muitos campos na vida em que ser fluente em besteiras é uma ótima habilidade, e ter computadores fluentes em besteiras melhorará a produtividade em alguns setores limitados da economia, mas às vezes o que é necessário é o raciocínio real – a programação de software tradicional, por exemplo, provavelmente ainda será a principal forma de programarmos sistemas.
AH: ChatGPT é divertido de brincar. É muito bom saber qual palavra deve vir a seguir, como conhecer a mecânica de uma música pop.
AB: É isso que ele faz – é programado para prever a próxima palavra ou uma palavra que falta ou uma sequência de palavras, e então dá-se a ele muita internet e um algoritmo complexo para prever a próxima palavra. Mas isso é tudo o que ele faz. Ele não tem lógica.
AH: O que você acha do pânico generalizado entre os professores universitários e, presumivelmente, também das escolas sobre o uso do Chat GPT pelos alunos?
AB: Isto está relacionado com questões relativas ao nosso sistema educativo em geral, penso eu. O nosso sistema educativo está tão desatualizado – é um sistema concebido, na sua maior parte, para convencer as crianças camponesas a tornarem-se operários nas fábricas, e não é muito bom para motivar as pessoas. Muitos estudantes aprendem com o sistema educativo que não serão recompensados por desenvolverem as suas próprias motivações internas para estudar, aprender e explorar, mas que serão recompensados por produzirem tudo o que os professores lhes dizem para produzir.
Tecnologias como o ChatGPT podem levar a uma crise produtiva do sistema de educação e que, assim espero, leve as pessoas que controlam as instituições educativas a ouvir os pesquisadores que estudam educação e, assim, a considerar quais os melhores métodos disponíveis. Ninguém acha que o atual sistema de avaliação é bom, por exemplo. Ele incentiva o tipo de respostas mecânicas e desmotivadas que o ChatGPT é bom em produzir.
AH: O pânico parece então referir-se a um conjunto real de crises. Uma delas diz respeito à falta de confiança dos professores nos alunos e vice-versa, mas também ao paradoxo estrutural que você está descrevendo.
AB: Em um sistema que fosse bom em motivar as pessoas a quererem aprender, o ChatGPT e coisas semelhantes seriam ferramentas incríveis. Mas num sistema em que se pede às pessoas que finjam estar interessadas, são perigosas. Espero que produza mudanças positivas. Acho que é uma ferramenta interessante e não acho que o fato de estar apenas inventando coisas a maior parte do tempo signifique que não será útil para as pessoas de nenhuma maneira.
AH: Nos debates sobre o trabalho, as questões da qualidade e da quantidade do trabalho são frequentemente separadas, apesar da sua interligação tanto conceitual como histórica. Através de que tipo de quadros práticos ou teóricos essas questões poderiam ser combinadas, se é que deveriam ser?
AB: Em todo o mundo, existe um velho problema que é não haver trabalho suficiente. Ao mesmo tempo, tem havido um impulso político para reformar os subsídios de desemprego e reduzir o acesso à assistência social e, em geral, criar um ambiente no qual as pessoas precisam de trabalhar para sobreviver. Essa procura frenética de trabalho e a insegurança no emprego incentivam então a qualidade do emprego a cair. Exceto quando se trata de trabalhadores altamente qualificados, como programadores de computador, os empresários não precisam prestar atenção às necessidades dos trabalhadores.
Parte da questão aqui é que é difícil saber como medir quantos empregos existem precisamente porque a economia está repleta de empregos de baixa qualidade, dos quais as pessoas entram e saem. Nos EUA, temos taxas de desemprego muito baixas. Mas, ao mesmo tempo, o número de pessoas empregadas continua a crescer, porque as pessoas passam diretamente da condição de estarem fora da força de trabalho para a de estarem empregadas, sem passarem por uma fase em que sejam contabilizadas como desempregadas.
Um aspecto importante a observar é a parcela do rendimento do trabalho, que funciona como uma medida global do equilíbrio de forças entre capital e trabalho. Há muito tempo que essa tendência tem diminuído em muitos países. Quando olhamos para estatísticas como esta, deveríamos pensar nelas como algo que nos fornece informação qualitativa. Porque quando os trabalhadores estão numa posição de negociação fraca, em termos de salários, também abdicam de muito em termos da qualidade do trabalho: tempos de pausa e segurança, perdem a capacidade de moldar a forma como as novas tecnologias são implementadas no seu local de trabalho (nos últimos meses, surgiram evidências de que os trabalhadores com salários mais baixos nas áreas urbanas viram o seu poder de negociação melhorar no rescaldo da crise da Covid, embora esta situação seja provavelmente temporária).
Nestas condições, os trabalhadores tiveram muito mais dificuldade em lutar para melhorar a qualidade do trabalho. Quanto à forma de reunir novamente as lutas relativas à quantidade e à qualidade do trabalho, penso que o que todos sabem é que um mundo onde os trabalhadores tenham mais poder de deixar o emprego, um mundo onde exista um rendimento básico ou subsídios de apoio aos desempregados muito mais fortes, bem como sindicalização e direitos de negociação coletiva mais fortes — uma situação com maior poder de saída e voz —, seria uma situação em que os trabalhadores teriam muito mais poder para moldar a qualidade do trabalho.
Há pesquisadores, principalmente no Reino Unido, que fizeram um trabalho muito bom ao pensar sobre quais são as qualidades do trabalho que as pessoas realmente desejam. Precisamos de um foco positivo nos tipos de qualidades de trabalho que as pessoas exigiriam – se tivéssemos mais poder, seja pela regeneração econômica ou por instituições políticas e trabalhadores capacitados.
Parte da razão pela qual isso é tão difícil é que exigências como aumentos salariais são coisas com as quais todos podem concordar, por isso os sindicatos têm historicamente enfatizado as exigências salariais em detrimento de outras exigências, especialmente para o que costumava ser chamado de “controle do chão de fábrica” (derrotas nas principais lutas sindicais no início do período pós-guerra também foram essenciais nesse caso). O dinheiro parece cobrir muitas das causas dos problemas que as pessoas enfrentam — como licença maternidade inadequada, cuidados com as crianças ou aluguéis altos —, mas há uma complexidade na vida de trabalho e não-trabalho das pessoas, há tantas situações diferentes em que as pessoas se encontram, que indicam uma gama mais ampla de mudanças qualitativas no trabalho que elas poderiam desejar, e as organizações trabalhistas que temos hoje efetivamente não foram concebidas para lidar com essa complexidade e diferenciação.
AH: Como poderia uma agenda de trabalho democratizante ajudar a melhorar os direitos de deixar o trabalho e de voz?
AB: Autonomia no trabalho, ou seja, estar no controle do seu trabalho, é uma das qualidades que leva as pessoas a gostarem mais do que fazem. A democratização do trabalho pode parecer um grande projeto coletivo que, em última análise, trata da negociação coletiva a nível da indústria, mas também deveríamos nos interessar por questões relacionadas com o quanto as pessoas, enquanto indivíduos, se sentem capacitadas a tomar decisões por si próprias. Experimentos em empresas autogeridas indicam para formas interessantes de pensar o que significa democratizar o trabalho, em que a democracia não é indexada pelo número de reuniões que você tem, mas talvez pelo número de reuniões que você não precisa realizar porque há mais confiança e conexões informais entre os trabalhadores para descobrir como resolver os problemas.
AH: Como é que o debate sobre planejamento se relaciona com a democracia no trabalho? Que tipo de ferramentas seriam necessárias para planejar melhor o trabalho a nível empresarial e a nível social?
AB: Existe uma conexão muito forte entre os dois. Um mundo onde as pessoas tivessem mais opções de sair por conta de uma renda básica universal ou de serviços básicos universais, e no qual não fossem obrigados a trabalhar, seria um mundo em que as pessoas precisariam ser motivadas de forma diferente para realizar os tipos de trabalho que são necessários para a sociedade. Que tipos de motivação estão disponíveis para as pessoas trabalharem quando não elas não precisam fazê-lo? As pessoas que mais gostam de trabalhar geralmente consideram o trabalho intrinsecamente gratificante.
Existe um equívoco comum de que um trabalho inerentemente gratificante deve ser divertido ou agradável, pois uma boa parte desse trabalho é chata e difícil. Acredito que a chave para fazer com que o trabalho valha a pena tem menos a ver com o conteúdo desse trabalho, embora isso também seja importante, e mais a ver com a forma como o trabalho é realizado. Se sentirmos que temos muito controle sobre a forma como fazemos o trabalho, se conseguirmos utilizar as competências que desenvolvemos e, principalmente, se sentirmos que o trabalho é importante, quer para nós, quer para outras pessoas, então iremos encontrar muitas razões para trabalhar, mesmo que não precisemos trabalhar para sobreviver. Penso que descobriríamos que não é possível tornar o trabalho inerentemente valioso para a grande maioria das pessoas sem democratizá-lo de uma forma muito substancial.
A democratização do trabalho permitiria, fundamentalmente, que as pessoas fossem capazes de propor mudanças na forma como trabalham. As mudanças que as pessoas proporiam seriam, evidentemente, não apenas orientadas para tornar esse trabalho mais eficiente, mas também para tornar o trabalho mais significativo, aumentar a autonomia dos trabalhadores ou encontrar formas de as pessoas poderem trabalhar em conjunto que não pareçam incluir tanto trabalho penoso – ou envolvimento e esforço sem sentido (os trabalhadores também proporiam formas de transformar o trabalho para torná-lo mais sustentável do ponto de vista ambiental ou para promover ligações significativas numa comunidade mais ampla).
Existem limites reais para quantas mudanças desse tipo podem ser implementadas numa sociedade capitalista. As sociedades capitalistas abrem espaço para que alguns trabalhadores tenham um maior grau de controle sobre a forma como o seu trabalho é feito, mas apenas em situações em que os trabalhadores são muito procurados e quando é muito difícil controlá-los. Tomemos, por exemplo, os programadores de computador no Vale do Silício, ou os professores na era de ouro do crescimento da universidade, ou aqueles muitos exemplos famosos da Suécia no final dos anos 80, quando tinham um mercado de trabalho muito apertado e muitos problemas com o absenteísmo.
Há momentos em que as empresas capitalistas sentem que estão a enfrentar problemas reais em reter trabalhadores, especialmente trabalhadores qualificados, e depois as empresas concentram-se na melhoria da qualidade do trabalho. Mas fora dessas condições muito raras, as empresas capitalistas geralmente não conseguem fornecer e não fornecem esse tipo de ambiente. Grande parte da razão disso é que essas empresas têm de promover a eficiência, acima de tudo – seja por causa da concorrência seja por exigência dos acionistas. Não querem que as exigências dos trabalhadores por um trabalho de melhor qualidade ou por um trabalho mais seguro perturbem a mais ampla liberdade possível dos gestores organizarem o trabalho da forma mais eficiente e, portanto, mais lucrativa.
Existem limites realmente fortes para até onde pode chegar algo como a democratização do trabalho numa sociedade capitalista, mas mesmo numa sociedade capitalista, vemos momentos excepcionais, vislumbres do que esse trabalho democrático poderia alcançar em termos de tornar o trabalho mais autônomo e mais significativo para os trabalhadores, dando-lhes muito mais voz a respeito da ampla gama de formas de trabalho. Para que o trabalho fosse transformado, muitos mais critérios teriam que ser integrados nas decisões sobre investimento, ou seja, sobre a transformação do processo de trabalho, além da eficiência. Mas isso é muito difícil de fazer de forma ampla e sustentada no capitalismo, o que é alarmante, porque o resultado também é a destruição do planeta.
AH: É um conjunto de questões realmente interessante – o que acontece se eliminarmos o salário e que tipo de coordenação ocorreria sem ele – que não pode ser respondida desejando que as dificuldades se afastem e imaginando territórios ensolarados de pura liberdade.
AB: Existem duas grandes armadilhas da esquerda nos últimos duzentos anos. Uma delas é a ideia de que melhorar o trabalho significa torná-lo mais divertido. Acho que isso é um beco sem saída. Existem maneiras de tornar esse conceito viável se você expandir sua definição de brincadeira, porque “brincar também é sério”, mas não é isso que a maioria das pessoas entende por brincadeira. E acho que a outra é quando você pensa que democratizar o trabalho significa processos coletivos de tomada de decisão em que todos votam em tudo em grandes reuniões com debates abertos e intermináveis. Claro, isso é um elemento de um ambiente de trabalho democrático. Mas se isso for tudo o que se oferece, significa que acaba vigorando a lei dos que falam mais alto e por mais tempo e das pessoas que estão dispostas a permanecer no local por mais tempo.
Na realidade, é preciso pensar em como os trabalhadores com preocupações e problemas muito diferentes e com recursos limitados podem, em última análise, chegar a algum tipo de acordo sobre o que fazer que não sejam apenas reuniões longas e intermináveis. Essa é uma parte importante do livro no qual estou trabalhando.
AH: Você poderia nos contar sobre seu próximo projeto de livro?
AB: Estou escrevendo um livro sobre economia pós-escassez. Deixamos que os economistas nos dissessem o que significa escassez. Eles definem-na como o confronto entre os nossos recursos limitados e as necessidades e desejos humanos insaciáveis. Eu defendo que essa perspectiva leva àquela visão tecnológica de como superar os nossos problemas e do que a humanidade precisa. Há outra forma de pensar sobre a escassez, que é mais antiga do que a definição econômica: um período de escassez é aquele em que não se tem o suficiente para satisfazer as suas necessidades. O capitalismo generaliza esta experiência de insegurança ao criar um mundo onde a grande maioria das pessoas se sente muito insegura quanto à sua capacidade de fazer face às despesas porque são dependentes do mercado e inseguras quanto à sua capacidade de obter ou manter empregos que lhes permitam sobreviver.
O livro é sobre imaginar como seria um mundo com o fim da escassez no segundo sentido, um mundo no qual as pessoas sentem que têm um piso material muito forte sob elas, de modo que nunca precisam se preocupar com sua sobrevivência. É uma bela ideia que aparece em muita ficção científica e em relatos de futuros onde não precisamos mais nos preocupar com nossa sobrevivência.
O livro é sobre como a sociedade teria de mudar para tornar essa visão possível, porque em muitos aspectos, como as pessoas rapidamente percebem, a pós-escassez seria incompatível com a forma como organizamos atualmente a nossa sociedade. Teríamos de pensar sobre essas questões fundamentais: sobre o que é a felicidade, o que motiva as pessoas e como as pessoas podem querer trabalhar num mundo onde já não estão sob o chicote da necessidade económica. O livro aborda muitas dessas questões sobre a democracia no local de trabalho e também como isso deveria ser visto no nível da sociedade como um todo.
As pessoas gostariam de transformar o trabalho de uma forma que não visasse apenas a aumentar a eficiência — e, portanto, expandir o nosso acesso a bens e serviços. Isto é obviamente crucial, especialmente num mundo onde tantas pessoas ainda vivem na pobreza, mas não é tudo. As pessoas também gostariam de transformar o trabalho para promover a ligação humana, atividades significativas, aumento do tempo livre, sustentabilidade ecológica, justiça social e muito mais.
É difícil trazer essas questões para dentro da conversa sobre como transformamos a economia porque a tomada de decisões sobre a economia tem sido restrita a um número muito pequeno de pessoas ricas que tomam decisões de investimento em torno das suas próprias preocupações de rentabilidade. Essa estrutura de tomada de decisão é fundamentalmente incompatível com um mundo onde as pessoas já não sofrem de escassez no sentido que descrevi. Mas transformar as estruturas de tomada de decisão para envolver mais pessoas e mais critérios de investimento, além da eficiência, seria extremamente complexo. Não funcionaria espontaneamente, então como faríamos isso? O livro que estou escrevendo oferece uma proposta exatamente para isso.
AH: Como você acha que será o retorno da estratégia industrial estatal aos EUA? Poderá restaurar a rentabilidade da produção?
AB: Há muitas razões para ser pessimista quanto ao resultado. Uma delas é que os EUA têm tradicionalmente tido muitas dificuldades em fazer política industrial, exceto quando se trata de financiamento amplo para avanços militares e médicos. A política industrial exige assumir riscos, e isso significa que muitos projetos financiados irão fracassar. Fazer uma política industrial forte, portanto, requer um elevado grau de unidade da elite, para que estes fracassos não sejam politizados. Nos EUA, tais fracassos são rotineiramente politizados, e consequentemente os partidos em geral não estão dispostos a correr riscos ao fazer política industrial de forma concertada.
Além disso, há muitas razões para nos preocuparmos com o fato desse esforço específico de política industrial verde não estar realmente orientado para resolver a crise climática porque não está tão fundamentado cientificamente. Por outro lado, talvez nos impulsione no caminho de uma transformação verde, podendo ser um primeiro passo nessa direção. Se estas políticas produzirem um boom econômico temporário, isso mudará o terreno em que terão lugar estas lutas pela democratização do trabalho e por um verdadeiro programa de desenvolvimento sustentável.
Poderia levantar a questão do que significaria passar do atual tipo de modelo tecnocrático de construção de um futuro mais sustentável para um modelo democrático no qual as pessoas têm mais voz sobre o que acontece, mas continuo pessimista quanto às suas possibilidades de sucesso.
AH: Você tem um livro ou artigo favorito sobre ou em torno da história do trabalho, do poder dos trabalhadores ou de questões de democratização do trabalho que você acha que as pessoas não leem o suficiente e que talvez devessem ler mais?
AB: Two Logics of Collective Action [Duas Lógicas de Ação Coletiva], de Claus Offe. Explica tanto a vasta gama de exigências qualitativas que os trabalhadores têm como por que, ao enfrentarem esse inimigo muito poderoso e unificado que é o capital, os sindicatos e outras organizações de trabalhadores são pressionados a tentar forçar os trabalhadores a terem um conjunto mais unificado de propostas, e como isso leva a uma simplificação real nos tipos de exigências que os trabalhadores fazem. O que significaria para a questão da democratização do trabalho não ter a pressão externa do inimigo unificado e unificador do capital? O que significaria estar fora disso?
Fonte: Outras Palavras, com Common Wealth
Texto: Amelia Horgan e Maurício Ayer
Tradução: Maurício Ayer
Data original da publicação: 21/12/2023
DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/automacao-e-futuro-do-trabalho-entrevista-com-aaron-benanav-2/