José Pastore e Magnus Ribas Apostólico
Este artigo oferece sugestões de conduta para as empresas no enfrentamento do difícil problema do burnout e outros transtornos psicossociais e, com isso, atender exigências recentes do Poder Público.
Em 2023, o INSS concedeu cerca de 290 mil benefícios por incapacidade no trabalho relacionados com transtornos mentais, dentre os quais, o mais frequente é o “burnout”. Houve um crescimento de 38% em relação a 2022.1 E, esse número é muito maior ao se computar os afastamentos de menos de 15 dias, remunerados pelas empresas e sem interferência do INSS.
A explosão de afastamentos por distúrbios psicossociais se acentuou de modo expressivo a partir de 2019 quando a OMS – Organização Mundial da Saúde oficializou a síndrome do burnout como decorrente do trabalho. Logo em seguida, o Brasil aprovou a lei 14.457/22 cujo capítulo 7 fixa várias formas de combate ao assédio sexual e a violência como dois dos principais responsáveis pelos transtornos mentais ligados ao trabalho.2
Em 2024 o governo publicou a portaria 1.419 que mudou a NR-1 – Norma Regulamentadora 1, passando para as empresas a responsabilidade de controlar os fatores psicossociais que afetam a saúde dos empregados no exercício do seu trabalho. Com isso, as empresas têm de apresentar a sua estratégia de prevenção dos transtornos psicossociais no ambiente de trabalho até 26/5/25.
Causas dos problemas psicossociais
O estudo da influência dos fatores psicossociais no trabalho tem sido objeto de muitas pesquisas e recomendações.3 Todas indicam ser muito difícil estabelecer com precisão o nexo causal entre trabalho e os distúrbios psicossociais como ansiedade, burnout, depressão e outros. Os estudos médicos indicam que esses problemas ocorrem com frequência durante as principais transições da vida como um divórcio, o falecimento de ente querido, uma perda financeira, etc.4 Os médicos dizem que os problemas psicossociais são causados por uma combinação de fatores sociais, psicológicos e biológicos. Neste caso, pesam muito a hereditariedade, os desequilíbrios neuroquímicos, as doenças físicas, o uso de substâncias, a dieta desbalanceada, a ansiedade pós-parto e os problemas familiares.5
O Ministério Público do Trabalho também entende que os fatores psicossociais estão relacionados a doenças musculoesqueléticas e cardiovasculares, transtornos mentais e comportamentais, abuso de drogas e até distúrbios gastrointestinais.6
Isso posto, é desafiadora a determinação das causas dos transtornos psicossociais. O ser humano é um só no enfrentamento dos problemas pessoais, familiares e de saúde e no atendimento de suas obrigações laborais. As crises psíquicas costumam se misturar com as situações de trabalho. A própria OIT – Organização Internacional do Trabalho reconhece haver uma combinação de fatores – extra laborais – que afetam o stress, a ansiedade e o burnout no ambiente de trabalho.7
Os principais sintomas do burnout e da depressão em geral são humor deprimido; alterações do afeto; tristeza; pensamentos negativos; sensação de cansaço; perturbações do sono; modificação do apetite com perdas ou ganhos de peso; uso excessivo de bebidas alcoólicas e outras drogas. Em casos mais graves, ocorrem comportamentos compulsivos e obsessivos, crises de desesperança e pânico, fobias, manias e desordem afetiva.8
A responsabilização das empresas no Brasil
Mesmo antes da referida regulação específica, as boas empresas, de modo formal ou informal, observavam atentamente pensamentos, sentimentos, atitudes e comportamentos dos seus colaboradores por serem eles prejudiciais ao trabalho e aos empregados. Mas, é claro que, isso tudo pode ser afetado pela sobrecarga de atividades; cobrança excessiva; discriminação; tratamento grosseiro de gestores e colegas; e várias formas de assédio.
Apesar da dificuldade para identificar a causação, por força de leis e atos administrativos, as empresas do Brasil passaram a ser obrigadas a elaborar medidas de prevenção desses problemas até 26/5/25. A partir dessa data, elas receberão fiscalizações direcionadas para constatar a presença de transtornos psicossociais causados pelo trabalho. O Ministério do Trabalho e Emprego lançará em breve um guia de orientação nesse campo.
O que fazer?
As empresas terão de tomar um cuidado extremo no tratamento dessa matéria e tudo fazer para evitar a sua judicialização. Esta é de grande risco, pois, os magistrados, sem poder separar os vários determinantes dos problemas psicossociais, tendem a atribui-los ao ambiente de trabalho, mesmo porque é muito difícil para as empresas provarem que a causa dos problemas é de origem externa e não interna. Prova negativa é sempre difícil de ser produzida. Ricardo Calcini e Leandro B. de Moraes apresentam vários casos de ações judiciais que enfrentaram essa dificuldade e que tiveram desfechos desfavoráveis às empresas.9
A tomada de providencias nesse campo é de grande importância para o sucesso econômico das empresas. Isso porque os transtornos mentais geram inúmeras despesas e perdas, dentre as quais, aumento de afastamentos, presenteísmo, rotatividade, desmotivação e queda de produtividade; dificuldades para reter e atrair bons talentos; multas administrativas e indenizações judiciais; aumento da alíquota do FAP – Fator Acidentário de Prevenção no caso de afastamentos frequentes; reflexos na alíquota do RAT – Seguro de Acidente de Trabalho; necessidade de cumprir estabilidade de 12 meses depois de afastamentos por doença; maculação da imagem e do status reputacional da empresa.
Medidas preventivas
Nesse campo, os especialistas recomendam uma série de ações, dentre elas: (1) assegurar um ambiente de trabalho saudável nas dimensões física, mental e social: (2) oferecer aos empregados atividades ligadas à saúde mental (yoga, meditação, jogos, etc.); (3) evitar carga de trabalho excessiva, prazos irrealistas e metas inalcançáveis; (4) prevenir situações de falta de apoio dos gestores e colegas; (5) ativar códigos de ética de conduta em relação a assédios e desrespeito à dignidade da pessoa humana; (6) atender prontamente as reclamações; (7) organizar e manter documentação adequada sobre ocorrências extraordinárias de natureza psicossocial no trabalho; (8) preparar os gestores para lidar com reclamações e trabalhar esse assunto junto aos membros da CIPA; (9) promover treinamentos continuados na área de medicina e segurança do trabalho, com ênfase nas síndromes psicossociais; (10) fazer cuidadosamente o PPP – Perfil Profissiográfico Previdenciário e o LTCAT – Laudo Técnico das Condições Ambientais de Trabalho.10
Em todas essas ações, porém, é importante afastar os excessos. Os exageros podem desvirtuar o ambiente de trabalho, transformando-o em espécies de clínica ou de círculos de debates etéreos -, o que compromete severamente a produtividade do trabalho. Ou seja, a utilização adequada das medidas preventivas é mais uma arte do que ciência.11
Limitações das medidas preventivas
Essas ações envolvem recursos econômicos e humanos que raramente são encontrados nas pequenas e médias empresas.12 Mesmo nas grandes, o desafio é enorme para se estabelecer claramente o NTEP – Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário nesses casos. Esse desafio chega aos peritos do INSS. Para ter segurança, eles precisam examinar em que medida o transtorno alegado pelo empregado é comum na sua atividade profissional ou na área e ramo em que atua; até que ponto as queixas referidas têm ligação com achados nos exames clínicos ou nos relacionamentos sociais dos empregados. Tudo isso, requer cuidado no diagnóstico, mesmo porque os afastamentos custam muito caro para a previdência social, cujo orçamento tem um déficit monumental – mais de R$ 300 bilhões anuais!
Perspectivas
Apesar de todo o esforço do lado da empresa e do lado dos especialistas e peritos, as queixas de burnout e outros transtornos psicossociais tendem a aumentar daqui para frente. A nova regulação, de um lado, disciplina o diagnóstico e, de outro, impulsiona nas pessoas o desejo de se testarem. Essas forças começaram a se formar a partir de 2019 quando a OMS classificou o burnout como doença ocupacional (ICD-11), deixando claro não ser uma condição clínica e sim laboral.13 Nasceu ali um grande desafio para as empresas e para os profissionais da saúde. Em seguida, o Brasil aprovou a lei 14.457/22 que propeliu a referida disparada de queixas e afastamentos de empregados.
Os números indicados acima são eloquentes.14 A aceleração é preocupante não só para as empresas e para os empregados, mas, sobretudo, para o orçamento do INSS onde os transtornos mentais passaram a ser o segundo motivo de afastamento do trabalho, depois dos problemas osteomusculares.
Recentemente, a aprovação da lei 14.831/24 e a portaria 1.419/24 que incluíram os distúrbios psicossociais no rol de doenças ocupacionais (mudança NR-1) estão fazendo disparar ainda mais os afastamentos, em especial, os de 3 a 14 dias, que correm por conta das empresas mediante atestado médico.15 Estamos no meio de uma verdadeira epidemia de burnout.16 Será que havia tantos problemas represados? Ou a disparada decorreu da própria regulamentação?
Seja o que for, cabe as empresas fazerem todo o possível para evitar que essa epidemia se propague. O uso da lei 14.831/24 que oferece o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental (concedido pelo Ministério da Saúde) pode ajudar na elevação do referido senso de corresponsabilidade das empresas e no preparo de medidas preventivas.
Mas nada disso é automático. O problema é complexo e exige a mobilização de muitos recursos e boas estratégias de ação. Entramos numa era que as boas relações do trabalho dependem de genuína compreensão, bom senso e acurada razoabilidade para que empregados e empregadores busquem criar um ambiente de trabalho sadio na base de um jogo de ganha-ganha e longe da judicialização e dos conflitos.
Uma palavra final à regulação da matéria. Neste campo há muito o que aperfeiçoar. A própria prática vai enaltecer os riscos de regras obscuras e punições indevidas. Mas, esse assunto fica para um outro artigo.
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1 “INSS: afastamento por saúde mental cresce 38% em um ano”, O Globo, 04/11/2024
2 A Convenção 155 da OIT, aprovada em 1981 e ratificada pelo Brasil, trata do assunto ao dizer que “o termo saúde com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de afecções ou doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e higiene do trabalho”. A Resolução 110 da OIT, aprovada em 2022, incluiu o ambiente de trabalho seguro e saudável no quadro dos princípios e direitos fundamentais no trabalho.
3 Ver, por exemplo, Sergio Edú-Valsania e colaboradores, “Burnout: A Review of Theory and Measurement”, International Journal of Environmental Research and Public Health, vol. 19, 2022; Anelisa Vaz Carvalho, “Terapia Cognitivo-comportamental na Síndrome de Burnout: Conceitualização e Intervenções”: Novo Hamburgo (RS), Editora Synopsis, 2019.
4 Anthony L. Komaroff, Harvard medical school family guide, New York: Simon & Schuster Source, 1999.
5 Aaron T. Beck e Brad A. Alford, Depressão: Causas e Tratamento, Porto Alegre, Editora Artmed, 2011;
Cleveland Clinic, “Depression”, https://my.clevelandclinic.org/health/diseases/9290-depression;
6 Ministério Público do Trabalho, “Nota técnica sobre a proposta governamental de alteração da NR 17”, Brasília, 2020.
7 OIT, “SOLVE: Integração da promoção da saúde nas políticas de segurança e saúde no trabalho”, Manual do Participante, Genebra: Organização Internacional do Trabalho, 2012.
8 Anthony L. Komaroff, Harvard medical school family guide, op. cit., pp 400-407.
9 Leandro B. de Moraes, “Burnout, ansiedade e depressão: a nova lista de doenças do trabalho”, Consultor Jurídico, 07/12/2023; Rodrigo S. Takano e colaboradores, Burnout and the legal impact on employment relationships in Brazil, International Bar Association, 2023.
10 Kelly P. Gabriel e Herman Aguinis, How to prevent and combat employee burnout and create healthier workplaces during crises and beyond, Business Horizons, vol. 65, nº 2, 2022;
11 Entretanto, o Conselho Federal de Psicologia pretende atribuir aos psicólogos a responsabilidade de realizar o processo de avaliação dos riscos psicossociais. Ver Resolução CFP 02/2022.
12 Os dados da RAIS de 2023 indicaram que o Brasil possuía 4,5 estabelecimentos com empregados. Destes, 2,5 milhões (57%) tinham até 4 empregados.
13 “Burnout an occupational phenomenon”: Geneve: International Classification of Diseases, World Health Organization, 2019.
14 “Por que os afastamentos por saúde mental continuam aumentando”? https://www.terra.com.br/economia/por-que-os-afastamentos-por-saude-mental-continuam-aumentando,f02ad580bf037c24525b74f418fdc86biv4xk4nl.html?utm_source=clipboard; Desirée Vilas Boas, “Afastamentos por saúde mental no Brasil”, São Paulo: Blog da Wellbe, 2023.
15 Segundo o INSS, em 2022, cerca de 209.124 pessoas se afastaram de seus postos de trabalho por transtornos psicológicos. Ver “Afastamentos por transtornos de saúde mental sobem 38%”, Associação Médica Brasileira, 2024; “Setenta e dois porcento dos brasileiros estão estressados no trabalho, revela pesquisa”, Isto é Dinheiro, 10/09/2023; “O Brasil enfrenta uma epidemia de burnout’?, BBC-News Brasil, 2024, https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnk4p78q03vo.
16 Jennifer Moss, The burnout epidemic, Cambridge (Mass): The Harvard University Press, 2021; Virginia Gewin, Pandemic burnout is rampant in academia, Revista Nature, nº 591, 2021
José Pastore
Professor de relações do trabalho da USP e membro do CAESP – Conselho Arbitral do Estado de São Paulo.
Magnus Ribas Apostólico
Especialista em Gestão Recursos Humanos, RTS e Negociações Coletivas. Foi Diretor de Relações do Trabalho da FEBRABAN, liderando a mesa nacional de negociações entre bancos e bancários por 22 anos.
MIGALHAS
https://www.migalhas.com.br/depeso/425580/uma-epidemia-de-burnout-ou-resposta-a-regulacao