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DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Quando um trabalhador despende a sua força física trabalhando, o mínimo que se espera do empregador ou tomador de serviços é que haja formalização do contrato e pagamento das verbas deste decorrentes.

Rosangela Rodrigues Lacerda e Silvia Teixeira do Vale

No último dia 13 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do RE nº 1.298.647, em que se discute à luz dos artigos 5º, II, 37, XXI e § 6º, e 97 da Constituição a legitimidade da transferência ao ente público tomador de serviço do ônus de comprovar a ausência de culpa na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas devidas aos trabalhadores terceirizados pela empresa contratada, para fins de definição da responsabilidade subsidiária do Poder Público, Tema nº 1.118 da Tabela de Repercussão Geral.

O acórdão ainda não foi publicado, mas, segundo a tese fixada, em regra, não há responsabilidade subsidiária da administração pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviços contratada, se amparada exclusivamente na premissa da inversão do ônus da prova, findando “imprescindível a comprovação, pela parte autora, da efetiva existência de comportamento negligente ou nexo de causalidade entre o dano por ele invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público”.

Não há um só artigo no texto constitucional que trate sobre ônus da prova, sendo a temática, portanto, matéria infraconstitucional, mais precisamente prevista no artigo 373 do Código de Processo Civil, bem assim no artigo 818 da Consolidação das Leis do Trabalho. Apesar de tal realidade, a Corte Maior decidiu que caberá ao empregado terceirizado e que prestou serviços ao ente estatal o ônus da prova em relação ao comportamento negligente deste, o que, em outras palavras, leva o trabalhador a ter que fazer prova negativa de fato.

Na prática, milhares de trabalhadores terceirizados, que prestaram serviços ao ente estatal, ficarão alijados de receber as parcelas salariais e remuneratórias decorrentes da contratação, quando o empregador deixar de pagar tais verbas e desaparecer, deixando a conta aberta para a administração pública.

Formalização do contrato e pagamento

Quando um trabalhador despende a sua força física trabalhando, o mínimo que se espera do empregador ou tomador de serviços é que haja formalização do contrato e pagamento das verbas deste decorrentes. Mas basta assistir a um dia de audiências nas varas trabalhistas de todo o território nacional para perceber que a terceirização de serviços ao Estado deixa um rastro imenso de dívidas não pagas. E, diante de tal realidade, sempre foi uma grande preocupação do Poder Judiciário trabalhista fazer com que o trabalhador não ficasse sem a paga pelo seu trabalho, daí porque tanto debate sobre quem pagará a conta ao final.

A tese fixada pelo STF encerra anos de debate acerca do ônus da prova em relação à falha da administração pública em fiscalizar, com efetividade, os contratos de terceirização e coloca a responsabilidade por isso nas mãos do trabalhador, que claramente não possui qualquer aptidão para provar que o ente estatal foi “negligente”.

A referida tese também estabelece que o autor da ação, para conseguir fazer valer a responsabilidade da administração pública pelo pagamento de suas verbas trabalhistas, pode comprovar o comportamento negligente do ente estatal ou “nexo de causalidade entre o dano por ele invocado e a conduta comissiva ou omissiva do poder público”.

De logo, é preciso registrar que, quando alguém trabalha e não recebe a paga pelo respectivo trabalho, isso, por si só, já é considerado dano patrimonial. Caso contrário, o Estado passará a admitir a prestação de trabalho escravo e degradante e estará na contramão de normas internacionais protetivas do mínimo para se vender a força de trabalho em um mundo capitalista. Para além disso, a Constituição permite a venda da força de trabalho de seres humanos, mas também impõe a paga por quem toma o serviço, seja de forma direta ou intermediada. Quando um trabalhador despende a sua força de trabalho e não recebe por isso, o dano já existe por si só e a conduta do Estado, tomador de serviços, é, no mínimo, omissiva.

Provas do trabalhador

Mais uma vez se questiona: como o trabalhador provará a “omissão” ou o ato comissivo do Estado? O dano já é, em si, o não pagamento das verbas trabalhistas, mas, de acordo com a tese, o trabalhador deverá comprovar que há nexo de causalidade pelo não pagamento e ato omissivo ou comissivo do Estado. É dizer, o trabalhador terceirizado poderá comprovar a negligência do ente estatal ou que este agiu de forma omissiva ou comissiva para a existência do dano.

Ora, a CLT é bem clara quando trata de aptidão para a prova, afirmando em seu artigo 818, parágrafo 1º que “nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos deste artigo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juízo atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”.

A tese fixada pela Corte Maior acabou com a possibilidade de se reconhecer quem tem mais aptidão para a prova e estabeleceu que caberá ao trabalhador fazer a prova negativa, realidade que claramente é ofensiva às regras processuais, que, repita-se, não se constitui em matéria constitucional e, por tal motivo, sequer deveria ter sido objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal.

Ainda explorando um pouco mais da literalidade da tese, percebe-se que os períodos foram separados pela conjunção coordenativa alternativa “ou”, significando dizer que o trabalhador, com o objetivo de responsabilizar o Estado pelo não pagamento de parcelas trabalhistas decorrentes da terceirização, deverá comprovar a negligência do ente estatal ou que há nexo causal entre o dano por não receber pela paga decorrente do trabalho e o ato comissivo ou omissivo do Estado. Ou seja, vale um ou outro caminho, mas ambos alcançam aquilo que é vedado pela norma processual: a prova negativa de fato.

Negligência da administração pública

A fim de ser explicativa, a aludida tese ainda esclarece que haverá comportamento negligente quando a administração pública permanecer inerte após o recebimento de notificação formal de que a empresa contratada está descumprindo suas obrigações trabalhistas, enviada pelo trabalhador, sindicato, Ministério do Trabalho, Ministério Público, Defensoria Pública ou outro meio idôneo. Aqui, com todo o respeito, a definição do que vem a ser ato negligente não é de atribuição de uma Corte constitucional. Nem o Código Civil ousou fazê-lo!

Ainda se chama a atenção para o fato de que o Supremo Tribunal Federal, julgando o Tema nº 698, de repercussão geral, afirmou que o Poder Judiciário não ofende o princípio da separação dos poderes quando, a fim de estabelecer premissas de políticas públicas, age, digamos, mais positivamente, indicando o caminho que o Estado pode seguir, para fazer valer direitos fundamentais.

Todavia, a própria Corte Maior estabeleceu que, no caso de serviços de saúde, o déficit de profissionais pode ser suprido por concurso público ou, por exemplo, pelo remanejamento de recursos humanos e pela contratação de organizações sociais (OS) e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip).

Eureca! O Poder Judiciário até pode intervir para dar efetividade aos direitos fundamentais, mas a regra do concurso público, tão cara ao Estado e ao texto constitucional, pode ser flexibilizada pela contratação de empresas privadas, que costumeiramente deixam um rastro de dívidas a serem pagas e trabalhadores sem o recebimento de verbas salariais.

O casamento interpretativo de uma tese com a outra só nos leva ao caminho de que o Estado poderá ignorar a contratação pela via do concurso público quando houver urgência para a aplicação de políticas públicas, e que o trabalhador contratado de forma terceirizada, quando não tem a sua paga, ainda terá que fazer prova negativa do seu direito.

Rosangela Rodrigues Lacerda é procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 5ª Região, professora adjunta da Universidade Federal da Bahia, mestre em Direito Público pela UFBA, doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP, professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, Cers, Ucsal, Unifacs e das escolas judiciais do TRT da 5ª, 6ª, 7ª e 16ª Regiões.

Silvia Teixeira do Vale é juíza do Trabalho no TRT da 5ª Região, mestra em Direito pela UFBA, doutora pela PUC-SP, pós-doutora pela Universidade de Salamanca, professora convidada do curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, Ematra5, Cers, Cejas, Ucsal e escolas judiciais de TRTs. Diretora da Ematra5 (biênio 2019/2021), membra do conselho editorial da revista eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região e da Revista Vistos Etc. e do conselho acadêmico da Enamatra, órgão de docência da Anamatra, coordenadora acadêmica da Ejud5 (biênio 2021/2023), autora de livros e artigos jurídicos e ex-professora substituta da UFRN.

DM TEM DEBATE
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