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DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

No último dia 18 de março, o TST (Tribunal Superior do Trabalho) abriu um período de 15 dias para o recebimento de manifestações escritas sobre o fenômeno da “pejotização”, tema de um incidente de recurso repetitivo no processo E-RRAg-373-67.2017.5.17.0121. Esse movimento do tribunal evidencia a dimensão que o problema alcançou na sociedade brasileira contemporânea, tornando-se um ponto crítico para a compreensão das transformações nas relações de trabalho. Contudo, para além do debate jurídico pontual, é fundamental analisar como chegamos a este cenário de fragilização sistemática das relações laborais e qual o significado histórico da normalização de práticas como a pejotização no contexto do capitalismo brasileiro.

O fenômeno da pejotização representa uma das estratégias mais sofisticadas do capital para reduzir o campo de incidência da proteção jurídica trabalhista. Trata-se da contratação de serviços pessoais, exercidos por pessoa física, de forma subordinada, não-eventual e onerosa, formalizada mediante a constituição de pessoa jurídica, com o objetivo deliberado de mascarar a relação de emprego e, consequentemente, afastar a aplicação dos direitos trabalhistas. Essa prática, que se intensificou no Brasil a partir dos anos 1990 com o avanço das políticas neoliberais, não pode ser compreendida como mero detalhe técnico-jurídico, mas como expressão concreta das lutas de classes no campo normativo.

A análise do direito como campo de disputas onde se materializam os conflitos sociais nos permite compreender que fenômenos como a pejotização expressam não apenas uma estratégia patronal, mas também os limites e possibilidades da resistência dos trabalhadores. Esta perspectiva metodológica, que recusa o formalismo jurídico e busca na materialidade histórica as raízes das transformações normativas, é essencial para captar o significado profundo das mudanças em curso nas relações de trabalho no Brasil contemporâneo.

A análise desta questão exige, portanto, uma abordagem que considere a historicidade das relações de trabalho no Brasil. Como observa a historiadora Ângela de Castro Gomes, “os direitos do trabalho no Brasil foram instituídos como dádiva, e não como conquista, numa operação político-ideológica que teve profundas e duradouras consequências para a cultura política do país” (Gomes, 2005, p. 27). Esta característica fundacional criou um terreno fértil para que, em momentos de crise e reconfiguração do capitalismo global, os direitos trabalhistas fossem apresentados como “privilégios” ou “entraves” ao desenvolvimento econômico, facilitando sua desconstrução progressiva.

No caso específico da pejotização, estamos diante de um processo que se articula com outras formas de precarização do trabalho, como a terceirização e as diversas modalidades de contratação atípica. O sociólogo Ricardo Antunes identifica este fenômeno como parte do que denomina “nova morfologia do trabalho”, caracterizada pela “expansão do trabalho precarizado, parcial, temporário, terceirizado, informalizado etc., além dos elevados níveis de desemprego estrutural” (Antunes, 2018, p. 123). Segundo Antunes, estas formas de contratação não representam anomalias ou desvios, mas constituem características estruturais do capitalismo contemporâneo em sua fase de acumulação flexível.

Flexibilização do trabalho e sua legitimação

A jurista Gabriela Neves Delgado, ao analisar o fenômeno da pejotização, ressalta que “o que se observa é a tentativa de afastar, a qualquer custo, a aplicação de regras de proteção ao trabalho, como forma de reduzir os custos e potencializar os lucros das empresas, sem que haja uma efetiva transferência de parte dos ganhos econômicos aos trabalhadores” (Delgado, 2015, p. 189). Esta constatação demonstra como o direito pode servir para ocultar relações reais de exploração sob o manto de categorias formais pretensamente neutras, revelando a dimensão ideológica das construções jurídicas que legitimam práticas precarizantes.

O processo histórico que conduziu à normalização da pejotização no Brasil está intrinsecamente ligado às transformações do capitalismo global nas últimas décadas. A socióloga Graça Druck, ao estudar as diversas dimensões da precarização do trabalho, aponta que “a flexibilização é uma imposição da nova ordem mundial sob a mundialização do capital e da lógica financeira que impõe processos de trabalho e de mercado de trabalho ‘flexíveis’” (Druck, 2013, p. 59). Neste contexto, a pejotização emerge como uma das expressões jurídicas da flexibilização, apresentada ideologicamente como “modernização” das relações laborais.

Um aspecto crucial para compreender a persistência e expansão da pejotização é o papel do Estado e dos tribunais em sua legitimação. Como observa o jurista Mauricio Godinho Delgado, “o Direito do Trabalho vive uma crise de identidade e, mais do que isso, uma crise de legitimação e efetividade” (Delgado, 2018, p. 112). Esta crise se manifesta na hesitação dos tribunais em aplicar o princípio da primazia da realidade sobre a forma, base histórica do direito laboral, quando se trata de reconhecer vínculos de emprego em situações de pejotização fraudulenta.

A inércia institucional diante deste fenômeno não pode ser compreendida apenas como falha técnica, mas como expressão de escolhas políticas orientadas por concepções econômicas específicas. O economista Marcio Pochmann, ao analisar as transformações do trabalho no Brasil contemporâneo, destaca que “o abandono do projeto de industrialização nacional foi acompanhado pela desestruturação do mercado de trabalho organizado entre as décadas de 1930 e 1970” (Pochmann, 2012, p. 35). Este processo criou as condições para que práticas como a pejotização encontrassem justificativas no discurso da “competitividade global” e da “modernização econômica”.

Fenômeno ‘inevitável’ e até mesmo ‘desejável’

O recurso repetitivo em análise pelo TST revela, portanto, mais do que uma questão técnico-jurídica: expõe as contradições de um modelo econômico que, para sustentar-se, precisa constantemente reduzir o custo da força de trabalho e ampliar a disponibilidade de trabalhadores em condições cada vez mais precárias. Como afirma o jurista Jorge Luiz Souto Maior, “para reduzir o campo de incidência da rede de proteção jurídica de cunho social e minar a efetividade dos direitos trabalhistas que impõem limitações à exploração do trabalho, das mais diversas estratégias se vale o capital” (Souto Maior, 2011, p. 668). A pejotização representa, neste sentido, uma dessas estratégias.

A pesquisadora Magda Biavaschi, ao estudar as transformações recentes nas relações de trabalho no Brasil, identifica que “as reformas de cunho liberal no campo trabalhista têm como pressuposto a eliminação de barreiras legais supostamente impeditivas da ampliação da competitividade em um mundo globalizado” (Biavaschi, 2007, p. 310). Este discurso, que encontra ampla ressonância nos meios empresariais e em setores da mídia, cria as condições ideológicas para a aceitação de práticas como a pejotização como “inevitáveis” ou mesmo “desejáveis”.

Uma análise histórico-materialista da pejotização requer, portanto, que se reconheça este fenômeno não apenas como desvio da norma, mas como parte de um processo histórico em que as próprias normas jurídicas são campos de disputa. Nesta perspectiva metodológica, as regras e categorias jurídicas não são neutras, mas penetram em todos os níveis da sociedade, efetuando definições verticais e horizontais dos direitos e do status dos trabalhadores. Neste sentido, a pejotização deve ser compreendida como expressão das relações de força entre capital e trabalho em um momento histórico específico.

Primazia da realidade

O processo de normalização da pejotização no Brasil não ocorre, contudo, sem resistências. Trabalhadores, sindicatos, advogados progressistas e parte da magistratura trabalhista têm atuado no sentido de reafirmar o princípio da primazia da realidade sobre a forma, essencial para o reconhecimento do vínculo empregatício em situações de fraude. Esta resistência, muitas vezes fragmentada e insuficiente, demonstra que mesmo em condições adversas, os trabalhadores não são meros objetos passivos da dominação, mas sujeitos históricos que atuam dentro das possibilidades concretas de seu tempo.

A questão que se coloca, a partir da abertura do prazo para manifestações pelo TST, é qual o horizonte possível para o enfrentamento deste problema. A experiência histórica nos mostra que a efetividade dos direitos sociais nunca depende exclusivamente de sua consagração formal, mas da correlação de forças entre os atores sociais envolvidos. No caso da pejotização, estamos diante de um fenômeno que, para ser efetivamente combatido, exigiria não apenas decisões judiciais favoráveis, mas uma reconfiguração mais ampla das relações entre capital e trabalho.

Opção política e a necessidade de uma alternativa

O que está em jogo, portanto, transcende o debate técnico-jurídico sobre a caracterização do vínculo empregatício em situações específicas. Trata-se, na verdade, de definir qual modelo de sociedade e de desenvolvimento queremos construir. A normalização da pejotização expressa uma escolha política que privilegia a rentabilidade do capital em detrimento da dignidade do trabalho, escolha esta que se materializa não apenas nas decisões judiciais, mas nas políticas econômicas e na própria organização produtiva.

A análise histórica deste processo revela que a precarização do trabalho, da qual a pejotização é apenas uma expressão, não resulta de uma evolução natural ou inevitável das relações econômicas, mas de escolhas políticas específicas, amparadas por construções ideológicas que naturalizam a exploração e individualizam os riscos sociais. Reconhecer o caráter político destas escolhas é o primeiro passo para vislumbrar alternativas.

A superação da pejotização como estratégia de precarização exige, portanto, mais do que reformas pontuais na legislação ou decisões judiciais favoráveis aos trabalhadores. Requer um projeto alternativo de desenvolvimento que coloque o trabalho digno no centro de suas preocupações, reconhecendo que a valorização do trabalho não é apenas uma questão de justiça social, mas condição necessária para a construção de uma economia sustentável e de uma democracia efetiva.

Neste sentido, o debate sobre a pejotização transcende as fronteiras do direito trabalhista para se inserir em uma discussão mais ampla sobre o modelo de sociedade que desejamos construir. A proliferação de formas precárias de contratação, longe de representar uma “modernização” inevitável, expressa uma regressão social que compromete não apenas os direitos dos trabalhadores diretamente afetados, mas a própria coesão social e a sustentabilidade do desenvolvimento econômico.

O momento atual exige, portanto, não apenas respostas técnico-jurídicas ao problema específico da pejotização, mas uma reflexão mais profunda sobre os rumos do trabalho na sociedade brasileira. O reconhecimento da centralidade do trabalho como elemento estruturante da cidadania e da própria democracia é condição necessária para a superação de um modelo que, sob o discurso da “modernização”, reproduz e aprofunda formas arcaicas de exploração.

Diante deste cenário, a mobilização social em torno da defesa dos direitos trabalhistas assume um caráter estratégico que vai além da proteção de interesses corporativos para se configurar como luta pela preservação de um patrimônio civilizatório duramente conquistado. A história nos ensina que os direitos nunca são concedidos graciosamente, mas sempre resultam de processos complexos de luta e negociação social.


Referências

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