No último dia 18 de março, o TST (Tribunal Superior do Trabalho) abriu um período de 15 dias para o recebimento de manifestações escritas sobre o fenômeno da “pejotização”, tema de um incidente de recurso repetitivo no processo E-RRAg-373-67.2017.5.17.0121. Esse movimento do tribunal evidencia a dimensão que o problema alcançou na sociedade brasileira contemporânea, tornando-se um ponto crítico para a compreensão das transformações nas relações de trabalho. Contudo, para além do debate jurídico pontual, é fundamental analisar como chegamos a este cenário de fragilização sistemática das relações laborais e qual o significado histórico da normalização de práticas como a pejotização no contexto do capitalismo brasileiro.
A análise do direito como campo de disputas onde se materializam os conflitos sociais nos permite compreender que fenômenos como a pejotização expressam não apenas uma estratégia patronal, mas também os limites e possibilidades da resistência dos trabalhadores. Esta perspectiva metodológica, que recusa o formalismo jurídico e busca na materialidade histórica as raízes das transformações normativas, é essencial para captar o significado profundo das mudanças em curso nas relações de trabalho no Brasil contemporâneo.
No caso específico da pejotização, estamos diante de um processo que se articula com outras formas de precarização do trabalho, como a terceirização e as diversas modalidades de contratação atípica. O sociólogo Ricardo Antunes identifica este fenômeno como parte do que denomina “nova morfologia do trabalho”, caracterizada pela “expansão do trabalho precarizado, parcial, temporário, terceirizado, informalizado etc., além dos elevados níveis de desemprego estrutural” (Antunes, 2018, p. 123). Segundo Antunes, estas formas de contratação não representam anomalias ou desvios, mas constituem características estruturais do capitalismo contemporâneo em sua fase de acumulação flexível.
Flexibilização do trabalho e sua legitimação
A jurista Gabriela Neves Delgado, ao analisar o fenômeno da pejotização, ressalta que “o que se observa é a tentativa de afastar, a qualquer custo, a aplicação de regras de proteção ao trabalho, como forma de reduzir os custos e potencializar os lucros das empresas, sem que haja uma efetiva transferência de parte dos ganhos econômicos aos trabalhadores” (Delgado, 2015, p. 189). Esta constatação demonstra como o direito pode servir para ocultar relações reais de exploração sob o manto de categorias formais pretensamente neutras, revelando a dimensão ideológica das construções jurídicas que legitimam práticas precarizantes.
O processo histórico que conduziu à normalização da pejotização no Brasil está intrinsecamente ligado às transformações do capitalismo global nas últimas décadas. A socióloga Graça Druck, ao estudar as diversas dimensões da precarização do trabalho, aponta que “a flexibilização é uma imposição da nova ordem mundial sob a mundialização do capital e da lógica financeira que impõe processos de trabalho e de mercado de trabalho ‘flexíveis’” (Druck, 2013, p. 59). Neste contexto, a pejotização emerge como uma das expressões jurídicas da flexibilização, apresentada ideologicamente como “modernização” das relações laborais.
A inércia institucional diante deste fenômeno não pode ser compreendida apenas como falha técnica, mas como expressão de escolhas políticas orientadas por concepções econômicas específicas. O economista Marcio Pochmann, ao analisar as transformações do trabalho no Brasil contemporâneo, destaca que “o abandono do projeto de industrialização nacional foi acompanhado pela desestruturação do mercado de trabalho organizado entre as décadas de 1930 e 1970” (Pochmann, 2012, p. 35). Este processo criou as condições para que práticas como a pejotização encontrassem justificativas no discurso da “competitividade global” e da “modernização econômica”.
Fenômeno ‘inevitável’ e até mesmo ‘desejável’
O recurso repetitivo em análise pelo TST revela, portanto, mais do que uma questão técnico-jurídica: expõe as contradições de um modelo econômico que, para sustentar-se, precisa constantemente reduzir o custo da força de trabalho e ampliar a disponibilidade de trabalhadores em condições cada vez mais precárias. Como afirma o jurista Jorge Luiz Souto Maior, “para reduzir o campo de incidência da rede de proteção jurídica de cunho social e minar a efetividade dos direitos trabalhistas que impõem limitações à exploração do trabalho, das mais diversas estratégias se vale o capital” (Souto Maior, 2011, p. 668). A pejotização representa, neste sentido, uma dessas estratégias.
A pesquisadora Magda Biavaschi, ao estudar as transformações recentes nas relações de trabalho no Brasil, identifica que “as reformas de cunho liberal no campo trabalhista têm como pressuposto a eliminação de barreiras legais supostamente impeditivas da ampliação da competitividade em um mundo globalizado” (Biavaschi, 2007, p. 310). Este discurso, que encontra ampla ressonância nos meios empresariais e em setores da mídia, cria as condições ideológicas para a aceitação de práticas como a pejotização como “inevitáveis” ou mesmo “desejáveis”.
Primazia da realidade
O processo de normalização da pejotização no Brasil não ocorre, contudo, sem resistências. Trabalhadores, sindicatos, advogados progressistas e parte da magistratura trabalhista têm atuado no sentido de reafirmar o princípio da primazia da realidade sobre a forma, essencial para o reconhecimento do vínculo empregatício em situações de fraude. Esta resistência, muitas vezes fragmentada e insuficiente, demonstra que mesmo em condições adversas, os trabalhadores não são meros objetos passivos da dominação, mas sujeitos históricos que atuam dentro das possibilidades concretas de seu tempo.
A questão que se coloca, a partir da abertura do prazo para manifestações pelo TST, é qual o horizonte possível para o enfrentamento deste problema. A experiência histórica nos mostra que a efetividade dos direitos sociais nunca depende exclusivamente de sua consagração formal, mas da correlação de forças entre os atores sociais envolvidos. No caso da pejotização, estamos diante de um fenômeno que, para ser efetivamente combatido, exigiria não apenas decisões judiciais favoráveis, mas uma reconfiguração mais ampla das relações entre capital e trabalho.
O que está em jogo, portanto, transcende o debate técnico-jurídico sobre a caracterização do vínculo empregatício em situações específicas. Trata-se, na verdade, de definir qual modelo de sociedade e de desenvolvimento queremos construir. A normalização da pejotização expressa uma escolha política que privilegia a rentabilidade do capital em detrimento da dignidade do trabalho, escolha esta que se materializa não apenas nas decisões judiciais, mas nas políticas econômicas e na própria organização produtiva.
A análise histórica deste processo revela que a precarização do trabalho, da qual a pejotização é apenas uma expressão, não resulta de uma evolução natural ou inevitável das relações econômicas, mas de escolhas políticas específicas, amparadas por construções ideológicas que naturalizam a exploração e individualizam os riscos sociais. Reconhecer o caráter político destas escolhas é o primeiro passo para vislumbrar alternativas.
A superação da pejotização como estratégia de precarização exige, portanto, mais do que reformas pontuais na legislação ou decisões judiciais favoráveis aos trabalhadores. Requer um projeto alternativo de desenvolvimento que coloque o trabalho digno no centro de suas preocupações, reconhecendo que a valorização do trabalho não é apenas uma questão de justiça social, mas condição necessária para a construção de uma economia sustentável e de uma democracia efetiva.
O momento atual exige, portanto, não apenas respostas técnico-jurídicas ao problema específico da pejotização, mas uma reflexão mais profunda sobre os rumos do trabalho na sociedade brasileira. O reconhecimento da centralidade do trabalho como elemento estruturante da cidadania e da própria democracia é condição necessária para a superação de um modelo que, sob o discurso da “modernização”, reproduz e aprofunda formas arcaicas de exploração.
Diante deste cenário, a mobilização social em torno da defesa dos direitos trabalhistas assume um caráter estratégico que vai além da proteção de interesses corporativos para se configurar como luta pela preservação de um patrimônio civilizatório duramente conquistado. A história nos ensina que os direitos nunca são concedidos graciosamente, mas sempre resultam de processos complexos de luta e negociação social.
Referências
ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
BIAVASCHI, Magda Barros. O Direito do Trabalho no Brasil – 1930-1942: A Construção do Sujeito de Direitos Trabalhistas. São Paulo: LTr, 2007.
DELGADO, Gabriela Neves. Direito Fundamental ao Trabalho Digno. São Paulo: LTr, 2015.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 17. ed. São Paulo: LTr, 2018.
DRUCK, Graça. A precarização social do trabalho no Brasil: alguns indicadores. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 55-73.
GOMES, Ângela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
KREIN, José Dari. As transformações no mundo do trabalho e as tendências das relações de trabalho na primeira década do século XXI no Brasil. Revista NECAT, v. 2, n. 3, p. 6-25, 2013.
POCHMANN, Marcio. Nova Classe Média? O Trabalho na Base da Pirâmide Social Brasileira. São Paulo: Boitempo, 2012.
SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Curso de Direito do Trabalho: Teoria Geral do Direito do Trabalho. Vol. 1. São Paulo: LTr, 2011.
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: A Origem da Lei Negra. Tradução Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum: Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional. Tradução Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.