O tempo de serviço rural corresponde ao período trabalhado no campo, podendo ser reconhecido de diferentes formas para fins previdenciários. Esse reconhecimento é essencial para a concessão e revisão de benefícios, permitindo sua contagem e possibilitando, em muitos casos, a antecipação de aposentadorias ou o aumento do valor dos benefícios.
O período de atividade rural pode ser validado por diferentes categorias de trabalhadores, como os segurados especiais, empregados rurais com vínculo formal e contribuintes individuais.
Nesse contexto, é comum o reconhecimento do tempo de serviço de todos os membros do grupo familiar, incluindo, em muitas situações, os filhos que, desde muito cedo, se veem envolvidos nas atividades rurais para auxiliar na manutenção da casa e na sobrevivência da família.
O trabalho precoce dos filhos no campo é uma realidade frequentemente negligenciada, mas profundamente enraizada na história das famílias rurais brasileiras. Em pequenos estabelecimentos agropecuários, onde a mão de obra familiar é essencial, a participação de crianças e adolescentes torna-se uma necessidade para a subsistência.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram a relevância dessa dinâmica no cenário rural. No Brasil, existem 2.543.681 propriedades com até 10 hectares, totalizando 7,993 milhões de hectares [1]. Além disso, foram identificados 77.037 estabelecimentos agropecuários sem área definida, cujos produtores desenvolvem atividades como o extrativismo e a apicultura [2], o que reforça a presença de pequenos agricultores que dependem do trabalho de todos os membros da família para garantir sua produção e sustento.
Idade mínima, flexibilidade no STF e Tema nº 219/CNU
Relatos frequentemente chegam aos escritórios de advocacia, com segurados afirmando que, quando tinham apenas 6, 7 ou 8 anos de idade, já estavam trabalhando no campo ao lado de seus pais, sem a oportunidade de frequentar a escola de maneira regular. Para muitos desses trabalhadores, a infância foi marcada por jornadas extenuantes de trabalho no campo, sendo o lazer e a educação, frequentemente, um luxo inacessível.
A impossibilidade de estudar, devido à exigência de trabalhar para garantir o sustento da família, é uma realidade que perpassa muitas dessas histórias. Para essas crianças, as atividades rurais e os cuidados com a casa substituíram o tempo de brincadeira, um elemento essencial do desenvolvimento infantil.
Nesse contexto, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) fixa a idade mínima de 12 anos para o reconhecimento do tempo de serviço rural para fins de aposentadoria e revisão de benefícios. Esse critério estabelece um limite formal que, no entanto, não condiz com a realidade de inúmeras famílias que dependem da atividade agrícola desde idades ainda mais precoces.
O Judiciário, por sua vez, tem adotado uma postura mais flexível, permitindo o reconhecimento do tempo de serviço rural anterior aos 12 anos. Contudo, esse entendimento pode variar conforme a instância, evidenciando a necessidade de um olhar mais atento às condições de vida dessas crianças e ao caráter essencial desse trabalho no contexto familiar.
Nesse sentido, em 23/06/2022, a Turma Nacional de Uniformização (TNU) julgou o Tema nº 219 (Pedilef nº 5008955-78.2018.4.04.7202/SC e Pedilef nº 0007460-42.2011.4.03.6302/SP), consolidando a possibilidade de cômputo do tempo de labor rural para menores de 12 anos. Na ocasião, foi firmada a seguinte tese: “É possível o cômputo do tempo de serviço rural exercido por pessoa com idade inferior a 12 (doze) anos na época da prestação do labor campesino.”
Esse entendimento já vinha sendo adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, como demonstrado no julgamento do AREsp nº 956.558/SP[3]. A decisão reflete uma maior sensibilidade ao contexto das crianças que, desde muito cedo, são impelidas a trabalhar no meio rural, reconhecendo que não podem ser duplamente prejudicadas: primeiro, ao serem submetidas ao labor árduo desde a infância e, depois, ao terem esse tempo desconsiderado no momento da concessão ou revisão de sua aposentadoria.
O entendimento consolidado pelos tribunais superiores é no sentido de reconhecer a atividade rural sem estabelecer uma idade mínima, cabendo ao julgador analisar, caso a caso, as provas que demonstram a prática da prática campesina.
As decisões de primeira instância têm se alinhado ao entendimento firmado pelo TRF-4, TNU (Tema 219), STF e STJ, no que se refere ao reconhecimento da atividade rural exercida por menores, especialmente quando evidenciado o trabalho campesino desde a tenra idade, ou seja, antes dos 12 anos.
No contexto atual, os juízes de primeira instância, ao seguirem essa jurisprudência, têm reconhecido que o trabalho rural de menores de 12 anos deve ser considerado quando ficar comprovada a perda da infância devido ao trabalho compulsório, seja por imposição familiar ou por pressão de terceiros. A esse respeito, destaca-se a decisão proferida pela 2ª Vara Federal de Jaraguá do Sul (SC), que ilustra claramente a aplicação dessa linha de entendimento.
“(…)
O entendimento firmado nessa decisão é de que não se faz necessária uma situação excepcional para o reconhecimento do trabalho infantil rural. O aspecto relevante é a substituição da infância pelo trabalho compulsório, independentemente da produtividade da criança ou da sua capacidade física. A tese reforça que não reconhecer esse período significaria impor uma dupla punição ao trabalhador, que perdeu a infância em razão do labor e ainda teria negado o reconhecimento desse tempo para fins previdenciários.
Inicialmente, havia uma discussão sobre a necessidade de comprovar que o trabalho infantil efetivamente contribuía para a subsistência familiar. No entanto, ao analisar o Tema 219 da TNU, observa-se uma flexibilização desse entendimento, permitindo que o reconhecimento do labor rural infantil ocorra sem a exigência de tal comprovação. Afinal, é inviável, passados tantos anos, aferir o vigor físico da criança e o impacto de sua força de trabalho na economia familiar.
A jurisprudência dos tribunais superiores consolidou o entendimento de que a capacidade física da criança não é um critério determinante para o reconhecimento do tempo de serviço. O que importa é que o menor foi privado do direito à infância e, independentemente de sua produtividade, exerceu atividade rural em substituição ao lazer e às oportunidades próprias da idade. A produtividade reduzida, própria da imaturidade física, não implica menor desgaste fisiológico, podendo, inclusive, ser proporcionalmente maior do que o de um adulto [4]. (…).”
Embora o entendimento consolidado reconheça a possibilidade de averbação desse tempo de serviço rural independentemente da idade em que o segurado iniciou suas atividades campesinas, observa-se que, em sede recursal, tem prevalecido um critério mais restritivo. Nessas instâncias, exige-se a comprovação de que essa tarefa desempenhada pela criança era indispensável para a subsistência da família ou para seu desenvolvimento socioeconômico. Dessa forma, não basta demonstrar a participação nas lides rurais; é necessário evidenciar a essencialidade dessa contribuição para a manutenção do núcleo familiar.
Nesse sentido, foi o entendimento da 2ª Turma Recursal de Santa Catarina, que, nos autos do processo nº 5003548-31.2022.4.04.7209[5], reafirmou a necessidade desse requisito para o reconhecimento do labor rural infantil.
Essa exigência impõe ao segurado um ônus probatório ainda mais rigoroso, especialmente considerando as dificuldades na obtenção de documentos formais que comprovem sua atividade rural na infância. Em muitos casos, a prova testemunhal torna-se o principal meio de demonstração, embora nem sempre seja devidamente considerada.
No caso mencionado (autos n° 5003548-31.2022.4.04.7209), observa-se que, durante a audiência, com a oitiva das testemunhas, ficou evidenciado que a família era numerosa, composta por cerca de nove crianças, e que, embora o trabalho fosse leve, ele era essencial para a subsistência do núcleo familiar. Ficou claro também que a participação das crianças, especialmente a da recorrente, possibilitava que os adultos se dedicassem a tarefas mais árduas, assegurando a manutenção da economia doméstica. Além disso, apesar de ser exercido em meio período, o labor na roça era contínuo e obrigatório, reforçando sua grande importância para a sobrevivência da família.
Todavia, os relatos testemunhais, embora fundamentais para comprovar a realidade vivida pela família, não foram devidamente considerados como prova substancial. A turma recursal manteve seu entendimento de que o trabalho da criança não era indispensável, tratando-o apenas como uma forma de auxílio, sem reconhecer sua essencialidade para a subsistência da família.
Comprovação da prática
No entanto, surge a questão: como, na prática, comprovar que o labor infantil rural era indispensável para a subsistência da família? Considerando que se trata de um período remoto, geralmente desprovido de registros formais, quais elementos poderiam ser aceitos como indícios dessa essencialidade? Seria suficiente a prova testemunhal ou seria necessária a apresentação de quais outros documentos.
A realidade e as provas testemunhais para essa comprovação devem ser priorizadas, tendo em vista a dificuldade em obter provas que demonstrem o efetivo trabalho da criança no meio rural, sobretudo na forma como exigido pela 2ª Turma Recursal de Santa Catarina em seu voto.
Ao estar inserida no núcleo familiar, há de ser presumido que a criança trabalhou com os pais e parentes na agricultura, em regime de economia familiar, não havendo, para tanto, um limite etário, mas uma situação real que exigiu, de fato, o exercício de atividade rural.
Até mesmo porque já se mostra difícil, por vezes, comprovar por via documental, o período de labor dos pais, dado o decurso do tempo, bem como a precariedade com que eram mantidos os registros de venda e compra de produtos ou outros documentos necessários à comprovação. Logo, não é possível que se exija documentos ou ampla dilação probatória para tal matéria, quando existem testemunhas, bem como o conhecimento regional de que naquela localidade o trabalho da criança na agricultura era comum e habitual, inclusive com tenra idade
Essas questões evidenciam a lacuna presente na legislação, que carece de uma abordagem mais clara sobre os meios de prova adequados para comprovar as atividades rurais exercidas por crianças. A falta de uma normativa específica dificulta a uniformização do reconhecimento dessa realidade, deixando espaço para interpretações diversas.
Aliás, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região consolidou o entendimento de que o início de prova material não precisa abranger todo o período cuja comprovação se busca, sendo suficiente que seja contemporâneo aos fatos alegados. Nesse sentido, “a relação de documentos prevista no artigo 106 da Lei nº 8.213/1991 [6] é meramente exemplificativa, permitindo que, como início de prova material, sejam aceitos quaisquer documentos que indiquem, direta ou indiretamente, o exercício da atividade rural no período em questão, inclusive se emitidos em nome de outros membros do grupo familiar, conforme estabelece a Súmula nº 73 do Tribunal Regional Federal” [7].
A comprovação da prática rural exercida por uma criança, que iniciou seu trabalho na agricultura antes dos 12 anos, deve se fundamentar, principalmente, em provas testemunhais que evidenciem que a criança foi compelida a participar das atividades rurais para garantir a subsistência de sua família. Isso se deve ao fato de que, até o momento, não existe uma legislação que estabeleça documentos específicos ou substanciais para comprovar essa prática, o que torna a análise das provas testemunhais ainda mais relevante.
A ausência de uma legislação específica torna essas provas orais ainda mais necessárias, pois elas ajudam a preencher a lacuna deixada pela legislação, assegurando que a verdade material seja preservada e que a justiça seja feita, considerando o contexto de vulnerabilidade em que essas crianças estavam inseridas.
Portanto, as Turmas Recursais devem adotar uma análise flexível e criteriosa ao avaliar os casos de crianças que trabalharam na agricultura desde idades muito precoces, como 6, 7 ou 8 anos. Essa abordagem mais atenta e sensível é essencial, pois considera o contexto de vulnerabilidade em que essas crianças estavam inseridas e as dificuldades que enfrentaram.
[1] https://censoagro2017.ibge.gov.br/resultados-censo-agro-2017.html
[2] https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-10/censo-agropecuario-brasil-tem-5-milhoes-de-estabelecimentos-rurais
[3] Desta feita, não é admissível desconsiderar a atividade rural exercida por uma criança impelida a trabalhar antes mesmo dos seus 12 anos, sob pena de punir duplamente o Trabalhador, que teve a infância sacrificada por conta do trabalho na lide rural e que não poderia ter tal tempo aproveitado no momento da concessão de sua aposentadoria. Interpretação em sentido contrário seria infringente do propósito inspirador da regra de proteção. 6. Na hipótese, o Tribunal de origem, soberano na análise do conjunto fático-probatório dos autos, asseverou que as provas materiais carreadas aliadas às testemunhas ouvidas, comprovam que o autor exerceu atividade campesina desde a infância até 1978, embora tenha fixado como termo inicial para aproveitamento de tal tempo o momento em que o autor implementou 14 anos de idade (1969). 7. Há rigor, não há que se estabelecer uma idade mínima para o reconhecimento de labor exercido por crianças e adolescentes, impondo-se ao julgador analisar em cada caso concreto as provas acerca da alegada atividade rural, estabelecendo o seu termo inicial de acordo com a realidade dos autos e não em um limite mínimo de idade abstratamente pré-estabelecido. Reafirma-se que o trabalho da criança e do adolescente deve ser reprimido com energia inflexível, não se admitindo exceção que o justifique; no entanto, uma vez prestado o labor o respectivo tempo deve ser computado, sendo esse cômputo o mínimo que se pode fazer para mitigar o prejuízo sofrido pelo infante, mas isso sem exonerar o empregador das punições legais a que se expõe quem emprega ou explora o trabalho de menores. Agravo Interno do Segurado provido. (g.n.)” (STJ, AgInt do AREsp n. 956.558/SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, Julgamento: 02/06/2020, Publicação: 29/06/2020).
[4] Autos de n° 5003548-31.2022.4.04.7209/SC.
[5] (…) “Dessa forma, entendo que não há prova da exploração do trabalho infantil, da indispensabilidade de tal trabalho, da perda da plenitude da infância e do prejuízo ao aprendizado escolar. Nada há para além da convivência da parte autora com a sua família, conforme os costumes da época.
Frisa-se que, para fins de reconhecimento da parte autora como segurado especial, é imprescindível a comprovação de que sua atividade se mostrava indispensável à subsistência ou ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar, não bastando o mero auxílio da criança, o que não restou comprovado nos autos. Com efeito, acerca da questão, perfilho o entendimento que segue, proferido pela Juíza Federal Luísa Hickel Gamba, no julgamento do Recurso Cível n. 5000755-51.2020.4.04.7222/SC, conforme segue: ‘Por se cuidar de exercício de atividade rural ocorrida na infância, todavia, a participação ativa nela (conforme referido no § 6º do art. 11 da Lei 8.213/91) certamente demanda uma comprovação mais contundente, consideradas as naturais limitações decorrentes da tenra idade.’ (5000755-51.2020.4.04.7222, PRIMEIRA TURMA RECURSAL DE SC, Relatora Juíza Federal LUÍSA HICKEL GAMBA, julgado em 13/07/2021). Entendo, portanto, que apesar de inegável a vocação agrícola da família, não houve prova de que a parte autora tenha efetivamente desenvolvido de modo minimamente relevante atividade rural antes dos 12 anos, que possui caráter excepcional, como se viu.” (2ª Turma Recursal de Santa Catarina, Processo nº 5003548-31.2022.4.04.7209)” (…)
[7] TRF-4 – APELREEX 0020296-45.2015.404.9999, Rel. Rogério Favreto, julgado em 12.07.2016.