Dois anos após o governo federal se comprometer a apresentar uma proposta de regulamentação para os entregadores por aplicativo, a profissão segue sem regras definidas. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) reconhece que a atividade é precarizada, e mediou as negociações entre trabalhadores e as empresas, mas houve um impasse envolvendo, especialmente, a proposta de remuneração mínima e a contribuição para o INSS.
Os entregadores denunciam que enfrentam riscos de acidente e episódios de violência do trabalho, além de estarem expostos a jornadas exaustivas, que podem chegar a 80 horas por semana. Frustrados com a demora, as lideranças da categoria decidiram formular uma regulamentação própria e enviá-la diretamente ao Congresso Nacional. A proposta foi entregue à Câmara dos Deputados e, na quinta-feira passada, foi convertida no Projeto de Lei (PL) 2.479/2025, com a assinatura de deputados de nove partidos. Eles também reclamam da falta de posicionamento do governo federal, e esperam avançar a discussão no Legislativo a partir de agora. Já as plataformas e o MTE afirmam que não abandonaram a discussão e continuam dispostos a avançar na regulamentação.
“Não avançamos. As empresas não estão dispostas a ceder um milímetro em prol de remuneração justa, defesa de nossa saúde e de nossa segurança. Nesse meio-tempo, triplicaram suas receitas”, contou ao Correio Nicolas Souza Santos, uma das lideranças da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativo (ANEA). O coletivo atuou na organização dos Breques dos Aplicativos, a paralisação nacional da categoria, que começou em 2020. A última edição ocorreu em 31 de março de 2025. O governo iniciou uma negociação sobre o tema em maio de 2023, e criou um Grupo de Trabalho (GT) em junho do mesmo ano — com reuniões periódicas ouvindo tanto as empresas quanto os entregadores. Inicialmente, o debate incluiu os motoristas de transporte por aplicativo, como o feito por Uber e 99, mas as propostas foram separadas após ficar claro que os trabalhos possuem naturezas, custos e riscos distintos.
Para os motoristas, houve acordo e o presidente Lula assinou um projeto de lei em março de 2024 durante evento no Palácio do Planalto. Apesar da pompa e da circunstância no anúncio, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 12/2024 está parado na Câmara desde julho daquele mesmo ano. Para os entregadores, não houve consenso, por dois motivos principais: o valor da remuneração mínima; e a contribuição para a Previdência, que daria o direito a benefícios do INSS. Sobre o pagamento, os entregadores rejeitaram a proposta das empresas que vai de R$ 6,54 a R$ 10,86 por hora efetivamente trabalhada — eles defendem que o pagamento leve em conta o tempo de espera entre entregas, e que seja feito por quilômetro rodado, não por tempo. Já sobre a Previdência, o governo defende que os trabalhadores sejam incluídos no regime mediante o pagamento de uma contribuição social, mas os entregadores avaliam que a taxação não vale a pena, mesmo com os benefícios previdenciários, pois consideram que a contribuição come uma porção grande de seus ganhos. Eles teriam que pagar um valor que gira em torno de 11% do salário mínimo (R$ 1.518). As empresas, por sua vez, dispuseram-se a acatar a proposta do governo. Elas também pagariam parte da contribuição.
A discussão não parou. O MTE continuou atuando como mediador mesmo após o fim do GT, mas não tomou um posicionamento firme sobre o tema, frustrando os profissionais. “Fica claro que o governo, do Partido dos Trabalhadores, não consegue assumir firmemente a posição de defender os trabalhadores. Não faz nenhum sinal nesse sentido de forma concreta. Temos diálogo, é claro, mas falta pulso contra as empresas”, avaliou Nicolas. Para ele, essa indecisão beneficia as plataformas, que contam com muito mais recursos e contatos em Brasília para manter a situação como está. Na quinta-feira passada, por exemplo, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) foi filmado cantando samba em uma festa oferecida pelo CEO do iFood, Diego Barreto, em clima de confraternização — a imagem gerou revolta nos entregadores. Frustrados com a indecisão do governo, os trabalhadores decidiram buscar diretamente o Congresso Nacional e apresentaram na semana passada uma proposta própria.
Solução no Legislativo?
“O governo se desculpou, assumiu o erro. Mas, se for para voltar para a mesma situação, não faz falta nenhuma essa demora. Para ficar desse jeito, é melhor a gente nem estar na mesa”, explicou o presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), Edgar Francisco da Silva, o Gringo. Morador de São Paulo, ele esteve em Brasília na última quinta-feira e participou de uma audiência pública na Comissão de Trabalho da Câmara para discutir os impactos da entrega por aplicativos na saúde dos trabalhadores, proposta pela deputada Erika Kokay (PT-DF). A reunião também marcou a apresentação do Projeto de Lei (PL) 2.479/2025, cuja autoria inclui parlamentares de nove partidos: Psol, Rede, PCdoB, PDT, PP, PT, Republicanos, MDB e PSB. “Esse projeto, é bom deixar muito claro, é assinado tanto pela direita quanto pela esquerda. Foi feito pela categoria, com todas as nossas pautas, com as exigências que precisamos, e a gente se sente contemplado por ele. Falta muita coisa, mas a gente chegou a um acordo comum, e tem o apoio da rua. A gente espera conseguir o máximo de apoio possível e fazer ele passar. Porque ele não nada demais, tudo o que está lá é possível. Não é questão de aumento, é questão de dignidade”, disse Gringo.
O PL inclui não apenas os motociclistas, mas também trabalhadores que usam bicicleta ou carro para as entregas. Um dos principais pontos é a definição de um valor mínimo de R$ 10 por entrega de até 3km ou 4km, a depender do veículo, mais um adicional obrigatório de R$ 2,50 por quilômetro rodado e outro de R$ 0,60 por minuto após 10 minutos de atraso que não ocorra por culpa do entregador. Além disso, as plataformas ficariam proibidas de impor incentivos e sistemas de avaliação ou punição que influenciam o entregador a exceder os limites de velocidade, e obrigadas a fornecer um seguro contra acidentes de ao menos R$ 150 mil para danos pessoais, e R$ 50 mil para danos materiais. As empresas também precisariam manter ou subsidiar pontos de apoio para os motoristas com água, banheiro, área de descanso e tomadas. Ele não trata sobre a contribuição previdenciária dos entregadores, um dos pontos de discordância em relação ao proposto pelo governo federal e pelas empresas.
Para os entregadores, a situação atual, sem garantias trabalhistas, é insustentável. Eles destacam que enfrentam riscos de acidente, chegam a trabalhar 80 horas por semana e enfrentam casos de violência e ameaças com frequência, tanto no trânsito como por parte de clientes. De acordo com a pesquisa Caminhos do Trabalho 2023, publicado em parceria entre o MTE e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), 58,9% dos entregadores dizem já ter sofrido acidentes no trabalho. “A gente quer ser reconhecido como categoria, com respeito. E a gente vê que não tem nada para essa categoria. Não tem nada”, revelou Gringo. Ele também criticou a falta de debate sobre a regulamentação na população e na mídia. “Que situação que nós estamos vivendo, cara? Será que a sociedade não consegue ver o quanto a gente está gritando?”, perguntou.
Diálogo
Procurado, o Ministério do Trabalho destacou que, embora as negociações mediadas pelo Executivo não tenham dado frutos, o tema não foi abandonado. “Não houve consenso, especialmente porque as empresas participantes, como o iFood e outras, não chegaram a um acordo sobre a remuneração mínima nem sobre a contribuição social. Esse impasse impediu o avanço para a formalização de uma proposta de projeto de lei”, disse o MTE. A pasta afirmou ainda que acompanha a tramitação do PL 12/2024 — voltado aos motoristas — e que espera que os princípios incluídos no documento, como a proteção social e direitos mínimos, sejam estendidos aos entregadores. Para os motoristas, a proposta inclui uma remuneração mínima de R$ 32,10 por hora, carga horária máxima de 12 horas por plataforma por dia, e contribuição para direitos previdenciários como auxílio-doença e auxílio-maternidade. O ministério enfatizou também que “prossegue com as mesmas preocupações com qualquer empresa que atue ou venha a atuar contratando entregadores sem garantir direitos mínimos e proteção social”.
A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa as plataformas, incluindo iFood e 99 Foods, disse, em nota, que defende a regulamentação das novas formas de trabalho intermediadas por plataformas, e que participa das discussões com Executivo, Legislativo e com os trabalhadores. Segundo a associação, a falta de acordo foi resultado da falta de consenso especialmente sobre a proposta previdenciária apresentada pelo governo. “Caso fosse implementada, levaria a um alto custo a todas as partes envolvidas e incluiria poucos desses trabalhadores na Previdência”, comentou a Amobitec. Sobre a remuneração mínima, as empresas argumentaram que as propostas apresentadas por ela visaram a garantia de um ganho mínimo líquido superior ao salário mínimo por hora trabalhada, levando em conta os gastos dos entregadores e a manutenção de um modelo de negócios sustentável com autonomia e flexibilidade. “Continuamos atuando para o aprimoramento do trabalho por meio das plataformas digitais e apoiamos a sua regulação, visando a garantia de proteção social dos trabalhadores e a segurança jurídica da atividade”, acrescentou a Amobitec.
CORREIO BRAZILIENSE
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