Em um país marcado por extrema desigualdade, como é o caso do Brasil, o salário mínimo cumpre um papel crucial, tanto do ponto de vista econômico quanto social. De acordo com o IBGE, cerca de 60% da população brasileira, incluindo aposentados, pensionistas e trabalhadores de baixa renda, depende diretamente dele.
Dada sua importância, nos últimos anos, o governo havia retomado a política de valorização real do mínimo, conectando seu reajuste ao crescimento do PIB. Contudo, em abril deste ano, o Congresso Nacional, sob pressão do setor financeiro privado, que é apoiado por uma coalizão parlamentar fiscalista, retirou do Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias a previsão de aumento real, restringindo o reajuste à reposição da inflação.
Mas qual a justificativa dos parlamentares para essa mudança? Contenção de gastos públicos. Em sua justificativa, os parlamentares partem da estimativa de que a cada R$ 1 de aumento no salário mínimo existirá um impacto recíproco sobre os benefícios previdenciários e assistenciais. No entanto, essa lógica desconsidera que o salário mínimo também é um dos principais indutores de crescimento econômico via consumo, além de funcionar como mecanismo redistributivo direto em uma sociedade marcada por extrema desigualdade e pobreza, como é a brasileira.
Na contramão do rigor aplicado ao salário mínimo, o Congresso preservou as desonerações fiscais, que de acordo com as projeções da Receita Federal, podem chegar a R$ 544,5 bilhões (4,8% do PIB) em 2025, ainda que algumas estimativas, como as do jornal Valor Econômico, indiquem que esse valor pode atingir R$ 800 bilhões.
A título de exemplo, o valor de R$ 544,5 bilhões corresponde a aproximadamente 2,2 vezes o orçamento da saúde (R$ 245 bilhões) e a 2,4 vezes o orçamento da educação (R$ 226 bilhões), ambos de 2025. Além de injustos do ponto de vista tributário e social, esses incentivos são pouco transparentes, beneficiam grandes empresas e setores que não geram contrapartidas econômicas claras, como geração de empregos ou inovação tecnológica.
Soma-se a isso o fato de que nenhuma apuração dos efeitos dos incentivos na economia nacional é realizada, nem pelo Estado nem pelos órgãos de controle, impossibilitando a verificação de sua efetividade no desenvolvimento da economia e perpetuando benefícios improdutivos à empresas ineficientes.
Apesar de alertas do Tribunal de Contas da União (TCU), que destaca a ineficiência de boa parte desses benefícios, há forte resistência política no Congresso Nacional para revê-los. A força dos lobbies empresariais e o oportunismo de setores que defendem a “manutenção da competitividade” se sobrepõem ao debate sobre justiça tributária.
O resultado é um orçamento que penaliza os mais pobres com contenção salarial, mas preserva privilégios fiscais para setores que, apesar de defenderem a eficiência econômica, se mostram pouco eficientes sem os referidos benefícios.
Para além dos valores exorbitantes das desonerações, a política monetária, comandada por um Banco Central independente, adiciona outra camada de restrição ao orçamento público. A taxa Selic, que atualmente está em 15%, impõe um altíssimo custo à dívida pública brasileira, que já ultrapassa R$ 7 trilhões. Estima-se que para cada ponto percentual da Selic, o Tesouro Nacional destine centenas de bilhões de reais ao pagamento de juros — recursos que deixam de ser aplicados em saúde, educação, infraestrutura ou redistribuição de renda.
De acordo com dados do Banco Central, em 2024, o governo pagou R$ 950,4 bilhões (8% do PIB) em juros nominais sobre a dívida pública consolidada (abrangendo União, estados, municípios e estatais). Se tomarmos como referência o déficit primário do governo em 2025, o gasto com juros foi aproximadamente 1,5 vez maior que o déficit primário, que foi de R$ 47,6 bilhões (0,4% do PIB).
Essa política monetária beneficia diretamente os detentores de títulos da dívida (em sua maioria bancos e grandes investidores), enquanto reprime o crescimento e o investimento público. A alta taxa de juros desincentiva o crédito, reduz o consumo e limita o crescimento do PIB, o que paradoxalmente também freia a arrecadação de tributos.
A combinação dessas três decisões — contenção do salário mínimo, preservação de desonerações e manutenção de juros altos — resulta em uma política fiscal regressiva. O ônus do ajuste recai sobre os que dependem de políticas públicas, enquanto as rendas do capital e os setores economicamente organizados mantêm seus privilégios.
No Brasil, de acordo com o relatório “Global Wealth Report 2023” do Credit Suisse, em 2022 o 1% mais rico da população concentrava quase 30% da riqueza nacional, enquanto, segundo o relatório “Desigualdade Mundial 2022”, elaborado pelo World Inequality Lab, os 50% mais pobres concentram apenas 10% da riqueza nacional.
É nesse contexto que a política fiscal deveria atuar para corrigir distorções, não ampliá-las. Adicionalmente, o sistema tributário brasileiro é um dos mais injustos do mundo. Mais de 50% da arrecadação total vem de tributos indiretos — que incidem sobre o consumo, penalizando, proporcionalmente, os mais pobres. Em contrapartida, a tributação sobre a renda e o patrimônio continua tímida e cheia de brechas, respondendo por aproximadamente 20% e 5% da arrecadação total, respectivamente.
Decisões sobre política fiscal não são apenas decisões técnicas — apesar de os políticos e os interessados utilizarem com frequência esse argumento para legitimarem as decisões que perpetuam seus privilégios — são escolhas políticas. A justificativa da austeridade seletiva, aplicada com rigor às despesas sociais e a tolerância às renúncias fiscais e ao rentismo, revela o pacto conservador que ainda sustenta as bases do orçamento público no Brasil.
Comparado a outros países, o Brasil lidera em desonerações fiscais, superando nações como Estados Unidos, Alemanha e Japão. Em 2023, enquanto a média global girava em torno de 2% do PIB, o Brasil gastava mais que o dobro desse percentual. Essa política reduz drasticamente a capacidade do Estado de investir em áreas essenciais.
Desonerações fiscais em países selecionados
País | Desonerações (% do PIB) | Fonte |
Brasil | 4,8% | Ministério da Fazenda (2024) |
Estados Unidos | 2,5% | OECD Tax Expenditures (2023) |
França | 2,9% (estimado) | IMF Government Finance Statistics (2023) |
Alemanha | 2,5% | OECD Tax Expenditures (2023) |
Índia | 1,5% | IMF Government Finance Statistics (2023) |
China | 1% | IMF Government Finance Statistics (2023) |
Canadá | 2,2% | OECD Tax Expenditures (2023) |
Japão | 1,8% | OECD Tax Expenditures (2023) |
México | 1,7% | IMF Government Finance Statistics (2023) |
Reino Unido | 2% | OECD Tax Expenditures (2023) |
Itália | 2% (estimado) | OECD Tax Expenditures (2023) |
Reverter esse quadro exige coragem política e comprometimento com a justiça social. Isso inclui retomar o aumento real do salário mínimo, revisar as desonerações e implementar uma política monetária mais equilibrada.
Mais do que discursos de austeridade seletiva, é hora de reposicionar o orçamento público como ferramenta de combate às desigualdades e promoção de um futuro mais justo para todos.
Antônio Sérgio Araújo Fernandes é professor do Núcleo de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da Bahia (NPGA/UFBA)
Robson Zuccolotto é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Contábeis da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGCON-UFES)
DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/o-brasil-que-congela-o-salario-minimo-e-protege-desoneracoes/