NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

O trabalho de cuidado constitui-se na realização das tarefas associadas à criação de condições para a sobrevivência humana e em sociedade e à manutenção do sistema capitalista.[1] Tendo por base tal pressuposto, o presente artigo pretende analisar se o desempenho destas funções pode ser afetado pela crise ambiental, e se, em havendo alguma relação entre um e a outra, pode a tributação impactá-la positiva ou negativamente.

As funções de cuidado são historicamente atribuídas às mulheres[2], validando sua existência perante a sociedade, mediante o custo de prejuízos financeiros e socioemocionais. Ademais, dão sustentação ao desenvolvimento do capitalismo, pois liberam os trabalhadores para vender sua força de trabalho, criando condições para produção de capital, acumulação de riqueza, circulação de bens e renda, consumo etc.[3]

Dados estatísticos apontam que mulheres e meninas dedicam por volta de 2,5 vezes mais horas por dia ao trabalho de cuidado não remunerado do que os homens, representando dois terços das pessoas que trabalham nesse setor.[4] Se a atividade de cuidado fosse remunerada, ela ultrapassaria 40% do PIB em certos países. Essa disparidade afeta o conquista/obtenção dos direitos e oportunidades de mulheres e meninas e impacta o alcance do desenvolvimento sustentável. Cerca de 80% do trabalho doméstico pago no mundo são do sexo feminino.[5]

Silvia Federici aponta que a conquista do trabalho produtivo pela mulher não a libertou do reprodutivo e das funções correlatas, gerando, inclusive uma certa penalização em razão desta acumulação.[6] No que interessa à análise proposta, a interlocução entre o trabalho de cuidado e o meio ambiente foi pensada pelo ecofeminismo, para o qual o controle das mulheres e a dominação da natureza têm a mesma matriz: a cultura patriarcal de dominação, exploração e hierarquização, que subjuga corpos e meio ambiente em prol da acumulação de capital e da manutenção do poder masculino.

A consolidação desse movimento ocorreu na segunda onda do feminismo, com preocupações relativas à preservação do meio ambiente, a partir de reflexões acerca dos direitos reprodutivos, superpopulação e expansão industrial, e sob a perspectiva dos direitos das mulheres.[7] Sob a perspectiva ecofeminista, as mulheres são mais afetadas pela crise ambiental, especialmente em razão do trabalho de cuidado que desempenham.[8]

O uso de agrotóxicos[9], por exemplo, causa inúmeros danos ao meio ambiente, bem como danos comprovados à saúde. Ao considerar que as mulheres respondem essencialmente pelo cuidado dos enfermos e que são responsáveis pela administração dos recursos domésticos como garantidoras da comida e da água potável, a escassez desses recursos faz com que elas precisem assistir as vítimas de acidentes ambientais, além de serem obrigadas a se deslocarem ainda mais para acessá-los. Ainda, a ONU aponta que, estatisticamente, a violência de gênero também aumenta em casos de crises climáticas.[10]

Somado a isso, segundo o relatório Gender Snapshot 2024, até 2050, as mudanças climáticas podem levar até 158 milhões de mulheres e meninas para a pobreza. Trata-se de 16 milhões a mais do que o número total de homens e meninos. Hoje, porém, 47,8 milhões de mulheres a mais enfrentam insegurança alimentar e fome do que os homens.[11]

É preciso também assentar que tais cenários afetam diferentemente a população feminina a partir de recortes específicos, sendo mais graves para mulheres pobres, racializadas, indígenas, idosas, crianças e adolescentes, com deficiência, migrantes, LGBTQIAPN+, e aquelas que vivem em áreas rurais, remotas e vulneráveis, propensas a conflitos e desastres.[12]

Ao considerar que o trabalho de cuidado preserva direitos humanos, cumpre ao Estado a adoção de políticas públicas capazes de reconhecê-lo e redistribuí-lo, garantindo recursos e estrutura para que o seu exercício, seja de forma direta, com creches, hospitais, escolas, etc., seja por meio de benefícios financeiros, proteção social e tributação dirigida, dentre outros.

Tendo em vista que uma das razões determinantes para o impacto adicional da crise ambiental sobre as mulheres é justamente o trabalho de cuidado que elas exercem, deve o Estado implementar políticas tributárias ambientais, também sob a ótica da igualdade de gênero. Contudo, o cenário brasileiro apresenta disfuncionalidades tributárias, que tendem a acentuar a crise ambiental e, logo, a desigualdade de gênero.

Veja-se, por exemplo, a inclusão dos agrotóxicos na lista de produtos beneficiados com a redução de 60% da alíquota base do IBS e da CBS[13]; a falta de incentivo tributário à economia verde; a ausência de oneração tributária para os grandes emissores de carbono; a renúncia fiscal sobre combustíveis fósseis, dentre outros.

Para que haja justiça ambiental de gênero, faz-se necessário que ocorra uma transformação da economia política para eliminar sua estrutura baseada na divisão sexual do trabalho. Erradicar a exploração, a marginalização e a privação das mulheres requer a abolição da desigualdade no trabalho por gênero, tanto remunerado, como reprodutivo[14].

É por tais razões que, sob a perspectiva ecofeminista da tributação, reivindica-se um modelo tributário sensível a gênero e ao meio ambiente. É preciso pensar políticas fiscais capazes de conter o avanço da crise ambiental, diminuindo, também, o fardo que se torna o cuidado para a maioria das mulheres que o exerce quase que solitariamente.


[1] FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e dominação primitiva. São Paulo. Elefante, 2023.

[2] Segundo a OIT, as mulheres respondem majoritariamente pelo trabalho de cuidado não remunerado, sendo que elas destinam 3,2 vezes mais tempo e esforço do que os homens. Em termos de tempo para elas, este trabalho corresponde a 201 dias úteis de trabalho, enquanto que para os homens, isso representa apenas 63 dias úteis, sendo que a contribuição econômica do cuidado compõe entre 15,9% e 25,3% no PIB dos países. Disponível em: ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Prestação de cuidados: trabalho e profissões para o futuro do trabalho digno, 2019, p.59. Disponível em https://www.ilo.org/sites/default/files/wcmsp5/groups/public/@europe/@ro-geneva/@ilo-lisbon/documents/publication/wcms_767811.pdf. Acesso em 22/05/25. Às 21:20 horas.

[3] FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e dominação primitiva. São Paulo: Elefante, 2023.

[4] UN WOMEN. Progress on the Sustainable Development Goals: The gender snapshot 2023. UN Women – Headquarters. Disponível em: https://www.unwomen.org/en/digitallibrary/publications/2023/09/progress-on-the-sustainable-development-goals-the-gendersnapshot-. Acesso em: 21 jun. 2025.

[5] Idem.

[6] FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.

[7] PULEO, Alicia H. Ecofeminismo para otro mundo posible. Madrid: Ediciones Cátedra, 2011. Disponível em: https://www.solidaridadobrera.org/ateneo_nacho/libros/Alicia%20H%20Puleo%20-%20Ecofeminismo%20para%20otro%20mundo%20posible.pdf. Acesso em: 05 maio 2025.

[8] Corte IDH. OC 23/2017. Parecer consultivo sobre meio ambiente e direitos humanos, de 15-11-2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/infografia-por.pdf. Acesso em: 22 maio 2025.

[9] É importante ressaltar que, por força do artigo 2‚ inciso XXVI da lei 14.785/2023, a expressão “agrotóxico” designa todos os produtos utilizados na agropecuária, sejam eles de origem química ou biológica, inclusive aqueles ambientalmente seguros. A expressão aqui utilizada, contudo, serve apenas para designar os produtos que causam danos comprovados à saúde e ao meio ambiente.

[10] Disponível em: https://spotlightinitiative.org/sites/default/files/publication/2025-05/Colliding%20Crises%20How%20the%20climate%20crisis%20fuels%20gender-based%20violence.pdf. Acesso em: 09 maio 2025.

[11] BRASIL. UFRJ. A crise climática tem gênero. Conexão UFRJ, 2023. Disponível em: https://conexao.ufrj.br/2023/04/a-crise-climatica-tem-genero/. Acesso em; 22 jun. 2025.

[12] Disponível em: https://www-unwomen-org.translate.goog/en/articles/explainer/how-gender-inequality-and-climate-change-are-interconnected?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt&_x_tr_pto=tc. Acesso em: 07 maio 2025.

[13] BRASIL. Emenda Constitucional 132, artigo 9, 1, XI e BRASIL, Lei complementar 214, de 2025, Anexo IX, item 6.

[14] FRASER, Nancy. Justiça interrompida: reflexões críticas sobre a condição “pós-socialista”. São Paulo: Boitempo, 2022.

Melissa Demari é mestre em Direito. Doutora em Ciências Sociais. Professora universitária e advogada. Integrante do Grupo de Pesquisa de Tributação e Gênero da FGV Direito SP e PGFN

Tatiana Aguiar é mestre e doutora pela PUC-SP. Especialista em Direito Homoafetivo e de Gênero. Professora do IDP, da FGV Direito SP e do IBET. Integrante do Grupo de Pesquisa de Tributação e Gênero da FGV Direito SP e PGFN

DM TEM DEBATE

https://www.dmtemdebate.com.br/interlocucoes-entre-ecofeminismo-trabalho-de-cuidado-e-tributacao/