Reforma da NR1 e riscos psicossociais
Em 27 de agosto 2024 (Portaria MTE nº 1.419), o governo revisou a Norma Regulamentadora nº 1 (NR1), incluindo, pela primeira vez, diretrizes específicas para o mapeamento e controle de riscos psicossociais no ambiente de trabalho, referida norma só entra em vigor em 26 de maio de 2026 e obrigará às empresas a:
Identificar fatores como assédio moral, sobrecarga e pressão excessiva por
desempenho;
Adotar métricas para avaliar a saúde mental de seus colaboradores;
Implementar programas preventivos com estrutura, equipe e orçamento
compatíveis com os riscos identificados.
O que é carewashing?
Carewashing é o nome dado à prática corporativa de divulgar amplamente políticas de cuidado com o bem-estar do trabalhador, sem, no entanto, adotar medidas concretas e estruturantes para garantir essas promessas. Trata-se de uma “lavagem” da imagem institucional: marketing humanizado, eventos temáticos e selos internos de “empresa amiga do colaborador”, enquanto a realidade da jornada laboral continua marcada por estresse, vigilância algorítmica e metas inalcançáveis.
Na prática, o carewashing usa a saúde mental como bandeira institucional, mas falha em oferecer suporte psicológico acessível, autonomia real para líderes e alívio das pressões produtivas crônicas.
Romantismo do sobretrabalho e o taylorismo digital
Essa incongruência entre discurso e prática não é acidental. Está profundamente enraizada em uma cultura organizacional que ainda glorifica o sobretrabalho e adota tecnologias de gestão que atualizam, em roupagem digital, os fundamentos da Administração Científica de Taylor.
Sistemas de recursos humanos cada vez mais automatizados assumem o controle da performance, impõem metas ajustadas por algoritmos e retiram dos gestores humanos a capacidade de aplicar julgamento qualitativo ou adaptar rotinas. O ser humano vira métrica. O gestor vira executor de comandos da máquina. E o cuidado prometido vira performance encenada.
Essa lógica transforma o ambiente laboral em um campo de extração contínua da força de trabalho, em que “resiliência”, “engajamento” e “propósito” são usados como retórica de controle.
Livre desenvolvimento da personalidade: fundamento esquecido
O grande “guarda-chuva” para compreender essa problemática não é apenas sociológico ou gerencial. É constitucional. Trata-se do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, reconhecido implicitamente nos artigos 1º, III, e 5º, X da Constituição e explicitamente como direito fundamental pela Lei nº 13.709/2018 (LGPD — artigo Ar. 2º, VII, c/c Art. 5º, §2º, CF), mas pouquíssimo explorado no direito do trabalho.
Mais grave ainda é quando essa cobrança se dirige aos trabalhadores de base, ocupantes de postos de baixa qualificação, cujo trabalho representa apenas um meio de sustento familiar. Falar de “felicidade no trabalho” nesses casos é utópico — ou pior: é um desvio retórico que mascara precariedade.
Geração Z não compra essa narrativa
A geração Z não se satisfaz com gestos simbólicos. Seus valores — autenticidade, transparência, propósito real e saúde integral — a tornam resistente ao carewashing. Jovens profissionais rejeitam programas inconsistentes, desconectados da vivência diária, e questionam líderes que pregam bem-estar enquanto celebram jornadas intermináveis e metas inalcançáveis. Eles exigem:
- Recursos concretos, como acesso a apoio psicológico, pausas remuneradas e jornadas flexíveis;
- Autonomia para líderes, com liberdade de adaptar metas, reorganizar fluxos e priorizar pessoas;
- Dados transparentes, com relatórios de saúde mental, rotatividade e burnout como indicadores estratégicos.
Para essa geração, bem-estar não é uma promessa de RH, mas uma realidade verificável.
Para além da cosmética corporativa
Se o objetivo é, de fato, adequar-se à NR1 e promover um ambiente saudável, as empresas precisarão romper com o modelo de gestão orientado exclusivamente por métricas e aparência. Isso exige:
- Orçamento real para ações de prevenção e suporte psicológico contínuo;
- Revisão dos sistemas de metas, com limites de pressão e razoabilidade produtiva;
- Ouvidorias com escuta ativa e planos de ação efetivos;
- Reposicionamento do papel dos gestores humanos, devolvendo a eles autonomia, julgamento e responsabilidade relacional.
Conclusão
O carewashing é mais do que um modismo: é uma forma de neutralizar o avanço da consciência trabalhista por meio da estetização do cuidado. Frente às exigências normativas da NR1 e à crescente insatisfação das novas gerações, manter essa estratégia é não apenas ineficaz — é contraproducente.
Fingir que há cuidado onde só existe cobrança é o caminho mais rápido para o descrédito institucional. O direito do trabalho precisa resgatar a centralidade do sujeito — não do colaborador idealizado, mas do trabalhador real. E esse trabalhador, ao exigir o respeito ao seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade, está apenas lembrando ao mundo corporativo que ser humano não é opcional, nem performático.
- Bruno Milhorato Barbosaé advogado trabalhista, sócio fundador da Fabretti & Milhorato Advogados, especializado em Direito Individual e Processo do Trabalho pela Universidade de Cândido Mendes (Ucam) e pós-graduado em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV).
CONJUR
https://www.conjur.com.br/2025-ago-26/carewashing-quando-a-empresa-finge-que-se-importa/