Eduardo Koetz
Se a tecnologia redistribui tarefas, por que não redistribuir tempo?
A discussão sobre o futuro do trabalho, impulsionada pela IA – Inteligência Artificial, ganhou um novo fôlego nos últimos meses graças à proposta do senador norte-americano Bernie Sanders.
Ele defende a redução da jornada semanal para 32 horas, distribuídas em quatro dias de trabalho, sem redução salarial, como forma de enfrentar os impactos da automação e da IA na substituição de postos de trabalho. A medida, conhecida como escala 4×3, visa equilibrar a equação entre produtividade crescente e bem-estar dos trabalhadores.
Mas como essa proposta, de origem norte-americana, pode dialogar com o Brasil e, mais especificamente, com o setor jurídico? O cenário é oportuno para refletirmos: se a tecnologia já está liberando tempo dos profissionais, não seria o caso de pensarmos também em redistribuir esse tempo em benefício da qualidade de vida e da inovação?
A lógica de Sanders: Produtividade x tempo de trabalho
De acordo com dados citados por Sanders, a produtividade do trabalhador médio nos Estados Unidos cresceu mais de 400% desde 1940, mas os salários não acompanharam esse salto.
Ao contrário, os norte-americanos trabalham, em média, 200 horas a mais por ano do que seus pares europeus, evidenciando uma contradição: a tecnologia gera ganhos, mas estes não são necessariamente revertidos em mais tempo livre ou melhor remuneração.
Esse raciocínio ecoa em um debate antigo da teoria econômica. Adam Smith já observava, em A Riqueza das Nações, que o aumento da produtividade deveria ser distribuído entre capital e trabalho.
Karl Marx, por outro lado, alertava para o risco de que a mais-valia fosse apropriada exclusivamente pelo capital, ampliando desigualdades. A proposta de Sanders é, portanto, uma tentativa contemporânea de corrigir essa assimetria, agora potencializada pela IA.
Se a máquina faz mais, e com mais precisão, por que insistimos em manter jornadas humanas rígidas e extenuantes?
O impacto da IA nos empregos: números globais e brasileiros
O Fórum Econômico Mundial projeta que até 2027 cerca de 23% dos empregos serão impactados por automação e IA. O efeito será mais visível em tarefas administrativas e repetitivas, tradicionalmente mais fáceis de padronizar e automatizar.
No Brasil, o Dieese já identificou reestruturações em setores de serviços, incluindo o jurídico, em função de softwares de automação e inteligência artificial. Não se trata de uma ameaça futura: a realidade já está posta. Escritórios de advocacia que antes destinavam profissionais para conferência manual de prazos, protocolo físico de documentos ou atendimento inicial de clientes, hoje realizam essas tarefas em segundos, via plataformas digitais e assistentes virtuais.
Nesse cenário, a advocacia brasileira precisa encarar um dilema: se parte do tempo foi liberada pela tecnologia, como reaproveitá-lo de forma estratégica?
A advocacia como caso emblemático de transformação
A prática jurídica, historicamente marcada por longas horas de trabalho e por um certo romantismo do “escritório sempre aceso”, encontra-se em transformação. O uso de inteligência artificial na gestão de processos, atendimento e análise documental já é realidade em muitos escritórios.
Exemplos:
Softwares que analisam milhares de decisões judiciais em minutos, oferecendo insights estratégicos;
Plataformas de gestão que reduzem em até 70% o tempo gasto em tarefas administrativas;
Atendimentos iniciais realizados por chatbots treinados em linguagem jurídica, com alto índice de satisfação do cliente.
Jornada reduzida: Viabilidade no contexto jurídico brasileiro
No entanto, transportar a ideia de Sanders para o Brasil exige cautela. Nossa realidade econômica, marcada por alta informalidade e legislação trabalhista complexa, é distinta da norte-americana. Contudo, isso não significa que o debate não seja pertinente.
No setor jurídico, três dimensões devem ser consideradas:
Sustentabilidade financeira dos escritórios;
A redução da jornada só é viável se os ganhos de produtividade da IA forem convertidos em eficiência real. Um escritório que adota ferramentas de automação e gestão estratégica pode atender mais clientes com a mesma equipe, abrindo margem para redistribuir tempo de trabalho sem perda de receita;
Bem-estar dos profissionais;
A advocacia é uma das profissões com maior índice de burnout. Jornadas exaustivas, pressão por resultados e contato constante com conflitos humanos tornam a carga emocional elevada. Reduzir a jornada pode significar maior retenção de talentos, redução de afastamentos e um ambiente mais criativo;
Qualidade do serviço prestado;
Menos horas de trabalho não significa necessariamente menos qualidade. Pelo contrário, estudos apontam que profissionais descansados e com tempo para atividades pessoais produzem com mais clareza e inovação. No caso da advocacia, isso pode significar petições mais criativas, estratégias mais ousadas e maior empatia com o cliente.
Entretanto, há um risco concreto: o da tecnologia ser usada como “chicote digital”, intensificando a exploração. Em vez de liberar tempo, muitos escritórios e empresas utilizam softwares para impor metas inalcançáveis, monitorar cada minuto de trabalho e aumentar a pressão sobre os profissionais.
Nesse cenário, a IA, em vez de libertar, aprisiona. O ganho de produtividade é capturado apenas pelo capital, enquanto o trabalhador continua preso a jornadas longas e sufocantes. O resultado é uma contradição perversa: temos máquinas cada vez mais inteligentes e trabalhadores cada vez mais esgotados.
A advocacia não está imune a esse risco. Plataformas de monitoramento de desempenho, se mal aplicadas, podem transformar o advogado em um mero “executor de tarefas”, corroendo a essência criativa da profissão.
Caminhos possíveis: redistribuir, reinventar, reencantar
O debate sobre a jornada reduzida no Brasil, especialmente na advocacia, passa por três movimentos estratégicos que já encontram respaldo em práticas modernas de gestão:
1. Redistribuir o tempo
Se a IA já cuida daquilo que é repetitivo, o advogado pode trabalhar menos horas sem perder produtividade. Essa redistribuição pode ser formal (como a jornada 4×3) ou informal (flexibilização de horários, trabalho remoto, intervalos ampliados).
2. Reinventar modelos de negócio
Escritórios que se prendem ao modelo de cobrança por hora tendem a resistir à redução de jornada. Mas, se a lógica passa a ser a entrega de valor ao cliente, não importa se a tarefa leva dez horas ou dez minutos. O importante é o impacto gerado.
Aqui novamente o Taskscore se mostra estratégico: ao substituir a métrica de horas por entregas, os gestores jurídicos conseguem planejar, precificar e avaliar equipes com base no resultado concreto entregue ao cliente. Essa mudança de paradigma abre espaço para modelos de remuneração mais justos e sustentáveis, alinhados ao valor percebido pelo contratante e não ao tempo “gasto” pelo advogado.
3. Reencantar a profissão
A advocacia pode, finalmente, recuperar o que tem de mais humano: o raciocínio crítico, a ética e o cuidado com o cliente. Menos tempo gasto em burocracia significa mais tempo para pensar o Direito em sua dimensão transformadora.
Ao adotar métricas de produtividade baseadas em entregas e não em horas, como faz o Taskscore, cria-se um ambiente que favorece o engajamento intelectual e humano do advogado. Ele não é mais avaliado pelo tempo que permanece conectado, mas pela qualidade e consistência do que entrega. Isso reduz a pressão por “mostrar presença” e aumenta a motivação para inovar, estudar, dialogar com o cliente e construir teses diferenciadas.
E no Brasil, é possível uma escala 4×3?
Adotar formalmente a escala 4×3 no Brasil demandaria alterações legislativas profundas e um debate coletivo entre OAB, sindicatos e sociedade. Mas a advocacia, por ser uma profissão liberal e relativamente autônoma, pode liderar esse movimento de forma pioneira.
Escritórios de vanguarda já experimentam semanas reduzidas em períodos de baixa demanda ou a adoção de dias dedicados à inovação e estudo em vez da rotina processual. Ainda não é a escala 4×3 plena, mas aponta para a mesma direção: reconhecer que o tempo é um recurso tão valioso quanto o dinheiro.
O futuro do trabalho jurídico é humano e tecnológico
A proposta de Bernie Sanders nos provoca a refletir sobre um ponto essencial: a tecnologia não deve servir apenas para aumentar lucros, mas para melhorar a vida das pessoas.
Na advocacia, onde a inteligência artificial já libera milhares de horas de tarefas repetitivas, a oportunidade está posta. Podemos escolher entre dois caminhos: usar a IA como chicote, intensificando a exploração, ou como alavanca, abrindo espaço para uma advocacia mais humana, criativa e sustentável.
A escala 4×3 pode parecer, hoje, uma utopia distante no Brasil. Mas toda transformação começa como uma utopia. Talvez, no futuro próximo, olhemos para trás e nos perguntemos: se as máquinas já faziam tanto, por que demoramos tanto para trabalhar menos e viver mais?
Eduardo Koetz
Eduardo Koetz é advogado, sócio-fundador da Koetz Advocacia e CEO do software jurídico ADVBOX . Especialista em tecnologia e gestão, ele também se destaca como palestrante em eventos jurídicos.
MIGALHAS
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