A semana passada, o ministro do Trabalho e Emprego avocou para si a competência da autuação da JBS Aves e suspendeu a entrada da empresa no Cadastro de Empregadores, a Lista Suja do Trabalho Escravo, após fiscalização com a participação do Ministério Público do Trabalho e de auditores fiscais do trabalho resgatar dez trabalhadores de situação análoga à de escravidão na coleta de frangos em granjas fornecedoras da empresa, em abril desse ano, incluindo condições degradantes, jornadas exaustivas de até 16 horas diárias, servidão por dívida e trabalho forçado.
A avocação pelo ministro do Trabalho e Emprego expõe uma ferida profunda no Estado de Direito: a captura do devido processo legal pelo poder econômico. O episódio não é apenas mais um caso de interferência política – é o sintoma de um sistema que protege grandes corporações enquanto abandona trabalhadores à própria sorte.
Em setembro, a Consultoria Jurídica do Ministério do Trabalho emitiu parecer revelador. Ao justificar a avocação, não invocou questões técnicas ou jurídicas, mas explicitamente citou o “impacto econômico” e os “possíveis desdobramentos internacionais” da punição à JBS Aves. Em outras palavras: a empresa é grande demais para ser punida.
A Conjur/MTE justifica o injustificável como se fosse possível revestir de legalidade a subversão dos princípios fundamentais da fiscalização trabalhista. Fala-se em “reavaliação estratégica” quando se pratica interferência política. Menciona-se “segurança jurídica” ao criar insegurança para trabalhadores.
Este raciocínio perverte a lógica do direito do trabalho. Justamente as grandes corporações, com maior capacidade de cumprir a lei, receberiam tratamento privilegiado quando flagradas em violações gravíssimas.
A Convenção 81 da OIT, ratificada pelo Brasil, não deixa margem para interpretações: a fiscalização trabalhista deve ser independente de influências políticas. Não é recomendação – é obrigação jurídica. Quando o Ministro avoca processos baseados em cálculos políticos e econômicos, viola frontalmente esse tratado internacional.
A contradição normativa se evidencia na tensão entre os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro em matéria de direitos humanos e trabalho digno e a prática administrativa que permite tratamento diferenciado baseado na relevância econômica do autuado. Tal dicotomia compromete a credibilidade do Brasil perante os mecanismos internacionais de monitoramento, uma vez que a aplicação das sanções administrativas passa a ser mediada por considerações políticas e econômicas que relativizam a gravidade das violações a direitos humanos.
O Supremo Tribunal Federal já enfrentou situação similar na ADPF 489/DF. Na ocasião, a relatora foi categórica: condicionar decisões técnicas sobre trabalho análogo à escravidão à vontade política de ministros enfraquece toda a estrutura de combate a essa prática. O STF compreendeu o óbvio: quando a política se sobrepõe à técnica em matéria de direitos fundamentais, a proteção se torna ficção.
A avocação ministerial cria sistema dual de justiça administrativa. Pequenos empregadores enfrentam o rigor da fiscalização técnica. Grandes corporações acedem à instância política, onde considerações econômicas pesam mais que a dignidade humana. É a institucionalização da desigualdade perante a lei.
O argumento da “relevância econômica” esconde escolha política clara: priorizar interesses corporativos sobre direitos trabalhistas. Aceitar que empresas poderosas merecem tratamento diferenciado é admitir que o Estado brasileiro se curva ao capital, mesmo quando este escraviza.
Auditores fiscais do trabalho, servidores concursados e tecnicamente preparados, identificaram indícios robustos de trabalho escravo. Seu trabalho, construído com independência técnica garantida por lei e tratados internacionais, sofre ameaça por decisão política baseada em “repercussões econômicas”. Que mensagem isso envia aos fiscais que arriscam suas vidas combatendo o trabalho análogo à escravidão em fazendas e fábricas Brasil afora?
Este caso não é isolado. É parte de processo sistemático de enfraquecimento das instituições de proteção trabalhista. Quando o combate ao trabalho análogo à escravidão se subordina a cálculos políticos e econômicos, abandonamos qualquer pretensão civilizatória.
A questão transcende o caso JBS Aves. Trata-se de definir se o Estado de Direito e a Lei vale para todos ou se o poder econômico pode subverter a legislação e adquirir impunidade.
A resposta do sistema jurídico e político a este caso definirá o futuro do combate ao trabalho análogo à escravidão no Brasil. Aceitar a avocação política é legitimar a ruptura do Estado de Direito. É dizer aos trabalhadores que sua dignidade vale menos que a imagem das grandes empresas.
Quando permitimos que o poder econômico determine a aplicação da lei, não perdemos apenas embates jurídicos, perdemos a própria possibilidade de justiça.
Luciano Aragão Santos é coordenador Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho
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