O aquecimento global tornou as altas temperaturas cada vez mais comuns. Além disso, as ondas de calor são cada vez mais intensas e frequentes [1].
O ano de 2024 foi o mais quente da história, desde que a Organização Mundial de Meteorologia começou a fazer suas medições, em 1850 [2]. A lista com os dez anos mais quentes é composta apenas por períodos compreendidos entre 2014 e 2024 [3]. Ademais, a temperatura ficou 1,55º C acima dos níveis pré-industriais [4].
Nesse sentido, mostra-se urgente repensar as normas e os procedimentos referentes ao trabalho a céu aberto. Afinal, o trabalhador que labora nessas condições está muito mais exposto aos efeitos do aquecimento global.
São inúmeras as atividades laborais realizadas a céu aberto: na construção civil, na agropecuária, em pedreiras, garis, carteiros, entregadores de panfletos, motoboys, bikeboys, atletas profissionais, etc.
E a proteção da vida e da incolumidade física dessas pessoas precisa ser repensada diante da nova realidade que se impõe.
Segundo os pesquisadores Kauê Augusto Oliveira Nascimento, Niro Higuchi e Fabiano Emmert [5], o conforto térmico laboral se encontra entre os 20º C e os 24º C.
Ocorre que temperaturas superiores a 24º C são extremamente comuns nas atividades a céu aberto.
Para se analisar o efeito da temperatura ambiente no ser humano é ainda preciso lembrar que o ser humano é um animal homeotérmico, ou seja, cuja temperatura corporal é constante, independentemente da temperatura ambiente. Assim, para regular sua temperatura, o ser humano precisa que a equação calor metabólico mais calor ambiental menos a perda de calor seja igual a 36,5º C.
Quando o ser humano necessita laborar, seu calor metabólico aumenta se comparado ao repouso. E quanto mais intensa a atividade, maior o calor metabólico gerado.
Desse modo, quanto mais intensa a atividade, mais baixa é a temperatura ambiente máxima que o trabalhador pode suportar.
Não é por outra razão que no Brasil, conforme dispõe o Anexo III da NR 9, o limite de exposição ocupacional ao calor é de 33,7º C para os trabalhos mais leves. Ou seja, aqueles que são realizados em repouso, na posição sentado. Isso porque essa atividade tem uma taxa metabólica de apenas 100 watts.
Contudo, para as tarefas mais pesadas, o limite de exposição ocupacional é de 24,7º C. É o caso do trabalho pesado com o corpo, na posição em pé. Essa atividade tem taxa metabólica de 630 watts.
Estresse térmico
Assim, quando a perda de calor por meio da pele, do suor e da respiração não se mostra suficiente, alcança-se o cenário de estresse térmico [6].
Matthew Lindsley e Maureen Cadorette expõem que o estresse térmico pode interferir não apenas no rendimento da produção, mas expõe o trabalhador ao risco de acidentes, doenças ocupacionais e morte [7].
A OIT informa que no mundo cerca de 2,41 bilhões de trabalhadores estão expostos por ano ao risco do calor excessivo, sendo que existem cerca de 22,85 milhões de infortúnios ocupacionais ao ano relacionados ao tema e aproximadamente 18.970 mortes por ano [8].
Trabalho a céu aberto
Diante desse cenário, no qual existe comprovação científica de que o trabalho intenso a céu aberto em temperaturas elevadas pode causar mortes e que as ondas de calor são cada vez mais frequentes e intensas, o direito precisa se atualizar.
Em alguns países árabes, já faz mais de uma década que o trabalho a céu aberto é vedado, especialmente na construção civil, durante os horários de maiores temperaturas no verão. No Bahrein, por exemplo, em 2014 foi vedado trabalhar nessas condições entre as 12h e 16h durante o período de 1º de julho e 31 agosto, conforme o artigo 1º da Resolução Ministerial nº 3 de 2013 daquele país [9]. No Qatar, a partir de 2021 estabeleceu-se a vedação no trabalho a céu aberto entre as 10h e as 15h30 durante o período de 1º de junho a 15 de setembro [10].
Em 2023, a Espanha passou a adotar norma similar em decorrência de alteração do Real Decreto 486/1997 pelo Real Decreto-ley 4/2023.
Agora, em 2025, foi a Itália que começou a editar normas semelhantes.
Diversas regiões italianas editaram nos últimos meses normas vedando o trabalho a céu aberto durante o horário das 12h30 às 16h no verão nos dias em que a autoridade em matéria de trabalho apontava como de alto risco em decorrência do calor.
Uma dessas normas, por exemplo, é a Ordinanza del Presidente della Giunta Regionale 150 de 30/06/2025 da Região da Emilia-Romagna, onde fica Bolonha. Ela vedou o trabalho durante o horário das 12h30 às 16h nas atividades físicas intensas a céu aberto dos setores da construção civil, logística e agricultura (incluindo o cultivo de flores) no período compreendido entre 02/07/2025 e 15/09/2025 nos dias em que a autoridade de trabalho (Inail — Istituto Nazionale per l’Assicurazione contro gli Infortuni sul Lavoro) indicasse até as 12h do mesmo dia no site específico como de alto risco. A norma prevê como exceções apenas as atividades de emergência e de utilidade pública.
Durante essas horas, os empregados não podem trabalhar, mas recebem seus salários normalmente, pois o risco do negócio deve ser suportado pelo empregador.
Situações climáticas no Brasil
Traçando paralelos com o Brasil, é preciso assinalar que já existem situações climáticas que interrompem o serviço e nas quais o salário do empregado é pago normalmente. Exemplificativamente, nos dias nos quais os ventos ultrapassam 72 km/h, o trabalho em gruas é proibido, conforme item 18.10.1.34 da NR 18. E não existe dúvida no Brasil de que o salário do operador de grua deve ser normalmente pago ainda que ele não labore em decorrência dessa condição climática.
Assim, se adotássemos norma semelhante à da Emilia-Romagna, resta evidente que o salário deveria ser normalmente pago nos dias em que o calor fosse tão intenso que impusesse a paralisação das atividades.
Aliás, resta interessante assinalar que o Brasil deixou de considerar, em 2019, o calor no trabalho a céu aberto como uma situação ensejadora de pagamento de adicional de insalubridade.
Em recente estudo [11], tivemos a oportunidade de externar nossa opinião sobre o tema. Acreditamos que o adicional não seja a melhor solução, pois o trabalho sequer deveria ser prestado nessas condições.
Assim, acreditamos muito mais salutar a edição de norma como a da Emilia-Romagna. Ora, não se deve laborar em situação de calor extremo, que pode causar a morte. Se a situação é tão insalubre, o trabalho deve ser evitado. Não se deve pagar um valor para colocar a vida de outrem em risco se isso não for extremamente necessário.
E o fato é que na esmagadora maioria das situações não existe a extrema necessidade. Essas atividades, via de regra, podem ser realizadas antes das 12h30 ou após as 16h. Poderá até haver em alguns casos atraso, mas, via de regra, não existe a extrema necessidade.
Obviamente, se ocorrer uma situação de extrema necessidade o trabalho poderá ser prestado, como a própria norma autoriza. Ex: existindo o risco de uma estrutura do prédio em construção cair sobre a casa vizinha, o trabalho poderá ser prestado.
Mas esses casos são excepcionais e não a regra.
País deficitário na proteção à vida
Assim, o modelo brasileiro que acabou com o adicional de insalubridade em decorrência do calor a céu aberto, mas não vedou expressamente o trabalho nessas condições, apresenta-se como deficitário na proteção da vida e da incolumidade física doa trabalhadores.
Por isso, mesmo que defendemos no referido estudo [12] que caso prestado o trabalho nessas condições seja paga uma indenização de valor não inferior ao do adicional de insalubridade.
Entregadores por aplicativo
Como se a matéria não fosse complexa dentro da relação de emprego, há de se pensar também em uma categoria muito específica, a dos motociclistas e ciclistas entregadores por aplicativo.
Inicialmente, cumpre assinalar que a condição térmica do ciclista entregador é muito mais grave do que a do motociclista. Afinal, o ato de pedalar gera um calor metabólico intenso.
Na Itália, assim como no Brasil, eles não são considerados, via de regra, como empregados. São pouquíssimos os entregadores registrados em ambos os países. Contudo, em algumas regiões, houve vedação ao trabalho em dias de calor inclusive a esses entregadores não empregados. É o caso do Piemonte, conforme Ordinanza del Presidente dela Giunta Regionale 2/2025. Na norma há previsão expressa de que no setor de logística no qual é vedado o trabalho estão abarcadas inclusive as atividades daqueles que entregam mercadorias por conta de outrem em áreas urbanas com o auxílio de bicicletas ou veículos motorizados de duas rodas.
Relativamente a essa situação, está havendo na Itália uma intensa discussão sobre a livre iniciativa, uma vez que esses entregadores seriam, em tese, autônomos. Outrossim, eles não recebem nas horas em que o trabalho é vedado.
Por isso mesmo, discute-se no parlamento italiano a possibilidade de se criar um fundo para financiar um benefício para os dias nos quais esses entregadores não pudessem trabalhar.
Seria algo semelhante ao seguro defeso brasileiro pago aos pescadores artesanais.
Exemplo na Itália
Já nas regiões onde o trabalho dos entregadores não foi proibido, gostaríamos de narrar um interessante caso. Uma das plataformas de entrega, a Glovo, passou a ofertar adicionais para os trabalhadores laborarem nos horários dos dias mais quentes. Isso porque, apesar de o trabalho não ser vedado nessas regiões, o fato é que a maioria dos entregadores prefere não trabalhar nesses horários em decorrência do próprio risco percebido na pele por esses trabalhadores. Ou seja, existe uma baixa quantidade de entregadores que se sujeita a trabalhar nos horários escaldantes durante o verão.
Assim, a Glovo ofertou um adicional de 2% quando a temperatura estivesse entre 32º C e 36º C, 4% quando estivesse acima de 36º C até 40º C, e 8% quando estivesse acima de 40ºC.
Contudo, essa oferta não foi muito bem recebida entre a opinião pública italiana. O “adicional do calor” foi logo rebatizado de “adicional da vergonha”. Dias depois, a companhia voltou atrás e cancelou o adicional.
Não é demais lembrar que o sindicalismo italiano da década de 1970 é o berço do movimento “a saúde não se vende” [13]. Assim, já está sedimentada por lá a ideia de que se a condição é extremamente prejudicial, o trabalho não deve ser prestado. Trata-se de algo moralmente reprovável oferecer mais dinheiro para alguém se submeter ao trabalho que de fato não deveria ser sequer prestado.
Embora a empresa tenha cancelado o adicional, o fato é que a questão já havia sido judicializada. Por tal razão, a Justiça de Milão, na região da Lombardia, declarou a ilegalidade do adicional e determinou que a plataforma fornecesse diversos itens aos trabalhadores para o enfrentamento da questão (chapéu com viseira, óculos de sol com filtro UV, protetor solar de alto fator, garrafa térmica para água e sais minerais hidrossolúveis). Por fim ordenou que a empresa iniciasse negociações com os entregadores para discutir a questão do calor levando em conta idade, sexo, estado de maternidade ou gravidez, origem geográfica e tipo de contrato [14].
Falta de proteção a trabalhadores
Diante do exposto, concordamos com aqueles [15] que pregam que os lobistas que conseguiram convencer o legislador brasileiro a acabar com o adicional de insalubridade em decorrência do calor no trabalho a céu aberto em 2019 se utilizaram do slogan “a saúde não se vende” de forma tendenciosa, pois o adicional foi extinto, mas nenhuma outra medida legislativa foi adotada para proteger os trabalhadores, tal como a vedação ao trabalho nos horários mais quentes [16].
Assim, a experiência italiana tem muito a nos ensinar sobre o risco do calor no trabalho a céu aberto.
Ademais, o aquecimento global impôs uma nova realidade de trabalho. Se há 10 anos apenas o Bahrein se preocupava com a situação, agora é a Europa que se volta ao tema.
Portanto, já está na hora de o Brasil enfrentar a questão.
Calor não é frescura. Aliás, é o seu oposto.
Paremos de tapar o sol com a peneira.
[1] KOVATS, R. Sari; HAJAT, Shakoor. Heat stress and public health: a critical review. Annual Review of Public Health, San Mateo, v. 29, n. 1, p. 41-55, 2008.
[2]. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. ONU confirma 2024 como o ano mais quente já registrado, com cerca de 1,55ºC acima dos níveis pré-industriais. Disponível aqui..
[3] Ibidem.
[4] Ibidem.
[5] NASCIMENTO, Kauê Augusto Oliveira; HIGUCHI, Niro; EMMERT, Fabiano. A exposição de trabalhadores florestais ao calor durante o fenômeno El Niño Godzilla na Amazônia. BIOFIX Scientific Journal, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 84-90, 2018.
[6] JACKLITSCH, Brenda; WILLIAMS, Jon; MUSOLIN, Kristin; COCA, Aitor; KIM, Jung-Hyun; TURNER, Nina. Occupational exposure to heat and hot environments: revised criteria 2016. Cincinnati: National Institute for Occupational Safety and Health (NIOSH), 2016.
[7] LINDSLEY, Matthew; CADORETTE, Maureen. Preventing heat-related illness in the workplace. Workplace Health & Safety, Thousand Oaks, v. 63, n. 4, p. 192-192, 2015.
[8] INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION (ILO). Ensuring safety and health at work in a changing climate. Genebra: ILO, 2024.
[9] INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION (ILO). Regional Office for Arab States. Labour Inspection in Arab States: progress and challenges. Beirute: ILO, 2014, p. 9.
[10] QATAR. Ministry of Labour. Heat stress legislation in Qatar: a guide for employers. Doha: Ministry of Labour, 2023. Disponível aqui.
[11] WAKAHARA, Roberto. O risco do calor no trabalho a céu aberto em face do aquecimento global e o Programa de Gerenciamento de Riscos. In: MANNRICH, Nelson. Direito na fronteira das transições digital, demográfica e climática. Leme: Mizuno, 2025.
[12] WAKAHARA, Roberto. Op. cit.
[13] LIBERATO, Leo Vinícius. Poder operário na Itália. Disponível aqui.
[14] DALL’ASÉN, Massimiliano Jattoni. Glovo, il tribunale di Milano condanna il ‘bonus caldo’ per i rider (e imponi più rimborsi e protezioni). Disponível aqui.
[15] LIBERATO, Leo Vinícius. Op. cit.
[16] BELUTTO, Renan Martins Lopes. A insalubridade nas atividades a céu aberto e a invalidade da Portaria SEPT nº 1.359/2019. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, v. 25, n. 2, p. 86-95, 2021.