Panorama comparado mostra que a União Europeia avançou com diretriz geral sobre trabalho em plataformas.
Da Redação
O debate sobre o trabalho mediado por aplicativos ganhou dimensão global. O que começou como um fenômeno de inovação tecnológica hoje mobiliza tribunais, parlamentos e organismos internacionais.
De motoristas e entregadores a tradutores e desenvolvedores, o chamado “trabalho em plataformas” se expandiu rapidamente durante a pandemia, tornando-se fonte de renda e, ao mesmo tempo, um desafio para o direito do trabalho.
No Brasil, o STF discute se motoristas de aplicativos devem ser reconhecidos como empregados sob a CLT.
Na Europa, o tema já superou a disputa entre táxis e aplicativos e chegou ao centro da agenda regulatória da União Europeia.
Saiba como o Velho Continente tem enfrentado o desafio de regular o trabalho digital – e o que o Brasil pode aprender com essa experiência.
União Europeia já regulamentou trabalho por aplicativos. Estados-membros têm até 2026 para incorporar regramento.
Diretiva Europeia
A União Europeia foi o primeiro bloco econômico do mundo a criar regras específicas para o trabalho mediado por plataformas digitais.
Em entrevista ao Migalhas, o sociólogo Murillo van der Laan, integrante do grupo de pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses e pós-doutorando do Departamento de Sociologia da Unicamp, afirmou que a Diretiva UE 2024/2.831, conhecida como Platform Work Directive (2024), estabelece presunção de vínculo e regras rígidas para a gestão algorítmica do trabalho, exigindo transparência nos critérios de distribuição de corridas e entregas.
As novas normas criam um padrão de proteção social e de responsabilidade tecnológica para empresas como Uber, Deliveroo, Glovo, Bolt e tantas outras que operam com base na intermediação digital de trabalho.
Segundo o pesquisador, a diretiva europeia prevê, entre outros pontos, que decisões automatizadas das plataformas estejam submetidas à supervisão humana, que trabalhadores sejam consultados sobre alterações nos sistemas e que dados e algoritmos sejam auditáveis por autoridades públicas e representantes da categoria.
“A promulgação da Diretiva da União Europeia é a legislação mais forte que a gente tem de regulamentação do trabalho de plataforma até agora”, destaca Van der Laan.
Veja a entrevista: https://youtu.be/qOCY83ryjbQ
Estatuto profissional
A diretiva parte de um diagnóstico: milhões de trabalhadores em plataformas na Europa são formalmente classificados como autônomos, embora muitos estejam submetidos a controle direto e dependência econômica típicos de relação de emprego.
O texto reconhece que essa “classificação incorreta” vem gerando desequilíbrio concorrencial e desigualdade de proteção social entre trabalhadores.
Seu objetivo é, portanto, assegurar o estatuto profissional correto e garantir direitos equivalentes a todos os tipos de relação de trabalho, coibindo fraudes e padronizando o tratamento jurídico entre os países da União Europeia.
O art. 4º institui uma presunção legal de vínculo empregatício entre o trabalhador e a plataforma quando se verificarem elementos de subordinação, como:
Controle de horários e locais de trabalho;
Supervisão do desempenho;
Determinação da remuneração;
Restrições à liberdade de aceitar tarefas;
Regras sobre aparência, comportamento ou conduta;
Sanções ou bloqueios decididos unilateralmente pela plataforma.
Quando esses indícios estiverem presentes, presume-se a existência de relação de trabalho, cabendo à empresa provar o contrário – ou seja, demonstrar que o prestador atua com verdadeira autonomia.
Essa presunção deve ser incorporada pelos Estados-membros em suas legislações nacionais até 2026, com regras claras sobre o procedimento de reclassificação e os meios de prova.
Algoritmos
Outro eixo central da diretiva é a regulação da gestão algorítmica.
Os arts. 6º a 10º impõem obrigações inéditas de transparência sobre o funcionamento dos sistemas automatizados usados por plataformas para monitorar, avaliar e atribuir tarefas.
As empresas passam a ser obrigadas a informar aos trabalhadores e seus representantes sobre:
Quais dados são coletados e como são utilizados;
Como funcionam os sistemas de atribuição de corridas, avaliações e remunerações;
Quais critérios são aplicados para decisões automatizadas;
Quais medidas são adotadas para prevenir vieses e erros.
A diretiva proíbe expressamente o tratamento de dados sensíveis, como informações sobre estado emocional, saúde, origem étnica, opiniões políticas, crenças religiosas ou atividade sindical.
Supervisão humana
Para evitar decisões injustas ou discriminatórias, a diretiva estabelece que todas as decisões automatizadas com impacto significativo – como suspensão, bloqueio de conta ou rescisão contratual – devem ser revisadas por um supervisor humano qualificado.
Essas decisões precisam ser motivadas por escrito e abertas à contestação, garantindo o direito de defesa do trabalhador.
Os supervisores humanos também passam a ter proteção especial contra retaliações, quando questionarem decisões tomadas por algoritmos.
Dever de informação e cooperação
As plataformas passam a ter obrigações de transparência institucional.
Devem comunicar às autoridades laborais de cada país dados sobre trabalhadores ativos, tipo de serviço, volume de tarefas e critérios de remuneração, especialmente quando operarem de forma transnacional.
A diretiva reforça a cooperação entre autoridades nacionais, permitindo troca de informações e fiscalização conjunta para assegurar o cumprimento das normas trabalhistas no espaço europeu.
Proteção de dados
O texto estabelece garantias alinhadas ao RGPD – Regulamento Geral de Proteção de Dados, reforçando que nenhuma decisão puramente automatizada pode afetar negativamente a pessoa sem intervenção humana efetiva.
Também reconhece o direito à portabilidade dos dados de desempenho e avaliação, permitindo que o trabalhador migre de uma plataforma para outra sem perder seu histórico profissional – uma inovação importante para a mobilidade e autonomia do trabalhador digital.
Sanções e aplicação
Cada Estado-membro deve definir sanções proporcionais, efetivas e dissuasivas para o descumprimento da diretiva.
Essas medidas podem incluir multas administrativas, suspensão de operações ou indenizações individuais aos trabalhadores afetados.
Os países deverão ainda atualizar seus mecanismos de inspeção e negociação coletiva, garantindo a participação de sindicatos e representantes dos trabalhadores nas discussões sobre transparência e uso de algoritmos.
País a país
Embora a diretiva represente um marco regulatório recente, a maioria dos países europeus já vinha enfrentando o tema antes mesmo de sua aprovação. França, Espanha, Alemanha, Itália e Portugal seguiram trajetórias distintas – algumas marcadas por decisões judiciais pioneiras, outras por reformas legislativas.
Veja uma análise de como o tema é tratado por alguns Estados-membro.
França
De acordo com estudo do Ipea (2024), a legislação francesa reconhece apenas duas categorias jurídicas: empregado ou trabalhador por conta própria.
Esse modelo binário não abarca plenamente as novas formas de trabalho surgidas na 4ª Revolução Industrial, especialmente as mediadas por plataformas. Para lidar com o novo cenário, a Lei El Khomri (2016) criou mecanismos de proteção a trabalhadores de plataformas, ainda que sem vínculo formal.
A norma estabeleceu que as plataformas devem oferecer seguros contra acidentes e doenças profissionais, reconhecendo uma relação de dependência econômica, ainda que sem subordinação direta.
Em 2019, a LOM – Lei de Orientação das Mobilidades ampliou essas garantias, assegurando autonomia aos prestadores e proibindo retaliações por recusas de corridas ou horários.
Apesar dos avanços, as reformas francesas não criaram uma terceira categoria jurídica.
Pesquisadores como Daugareilh, Degryse e Pochet (2019) consideram que a Lei El Khomri acabou, na prática, instituindo um “terceiro status disfarçado”, ao impor deveres de proteção típicos do empregador sem alterar a natureza jurídica da relação.
Há críticas ao modelo francês por basear a proteção em seguros privados, e não na seguridade social pública, o que pode fragmentar a solidariedade do sistema tradicional.
O marco decisivo veio do Judiciário, pela Corte de Cassação, que em 4 de março de 2020, reconheceu vínculo empregatício entre a Uber e um motorista, afirmando que o poder diretivo da empresa configurava subordinação.
Após a decisão, a ministra do Trabalho, Muriel Pénicaud, anunciou a busca por “um novo quadro jurídico que proteja todos os trabalhadores, assalariados ou não”.
Espanha
A pesquisa do Ipea aponta que, na Espanha, o Real Decreto-Lei 9, de 11 de maio de 2021, conhecido como Ley Rider, regulamentou a atividade com foco nos serviços de entrega de mercadorias.
Segundo o sociólogo Murillo van der Laan, antes da promulgação da lei o país vivia um cenário de insegurança jurídica, com decisões judiciais divergentes sobre o mesmo tema.
“Você tinha respostas por parte do judiciário contrastantes. Às vezes, trabalhadores da mesma empresa eram classificados como autônomos, e em outros, como empregados”, explica.
Essa instabilidade levou a questão à Suprema Corte Espanhola, que decidiu de forma unânime reconhecer o vínculo de emprego entre um entregador e a plataforma Glovo, destacando que a empresa organiza o processo de trabalho e exerce controle efetivo sobre os motoristas, ainda que tente mascarar a subordinação.
“A Corte mostrou como, nesses casos, a plataforma é o meio de produção principal e organiza […] através de sistemas de pontuação, através da organização dos pedidos, através de mecanismos de punição desses trabalhadores, controles por geolocalização, pelo GPS”, observa.
Após a decisão, o Parlamento espanhol se mobilizou para transformá-la em norma, consolidando a jurisprudência da Suprema Corte.
A principal inovação da Ley Rider foi justamente a presunção de relação de emprego entre as plataformas digitais e os entregadores. Na prática, isso obrigou as empresas a contratarem formalmente os trabalhadores, e não mais tratá-los como autônomos.
Outra inovação importante foi a transparência algorítmica: o decreto impôs às plataformas o dever de informar aos trabalhadores sobre os critérios e parâmetros usados nos sistemas automatizados de gestão e decisão – tornando a Espanha o primeiro país europeu a reconhecer a transparência algorítmica como direito trabalhista.
Nos primeiros meses de vigência, houve queda no número de entregadores ativos e dificuldades operacionais para restaurantes e consumidores, especialmente em horários de pico.
Uma das grandes empresas do setor chegou a encerrar suas operações no país, alegando inviabilidade econômica sob o novo regime jurídico.
Com o tempo, o mercado começou a se reorganizar: surgiram empresas terceirizadas de logística que passaram a atuar em parceria com as plataformas.
No último dia 2, o governo espanhol endureceu a aplicação da Ley Rider.
A ministra do Trabalho, Yolanda Díaz, anunciou que o país está preparado para processar criminalmente o Uber Eats por manter falsos autônomos, em violação à norma que presume vínculo entre plataformas e entregadores.
A medida segue a mesma linha adotada contra a Glovo, já obrigada a contratar 14 mil trabalhadores após investigação da Inspeção do Trabalho.
Alemanha
Assim como em outros países europeus, a proteção social na Alemanha é obrigatória e vinculada ao status laboral do indivíduo.
Segundo o relatório do Ipea, o sistema de seguridade alemão prioriza os trabalhadores dependentes (assalariados), que são abrangidos por todos os ramos da proteção social, como aposentadoria, seguro-desemprego, doença, maternidade e paternidade.
A pesquisa ainda informa que, diante desse cenário, o Parlamento alemão tem discutido uma série de propostas legislativas voltadas a estender a seguridade social aos trabalhadores de plataformas digitais.
Essas propostas buscam envolver as próprias plataformas e demandantes de serviços no financiamento das contribuições sociais, criando mecanismos para assegurar um nível de proteção semelhante ao dos empregados formais.
Como ainda não há uma lei definitiva que amplie o acesso à seguridade social para os trabalhadores de plataforma, as Cortes alemãs têm ocupado o espaço da regulação, decidindo caso a caso.
Segundo o Ipea, essas decisões vêm reconhecendo vínculos de subordinação em situações em que as plataformas exercem controle sobre o modo de trabalho, o preço e a relação com os consumidores, e funcionam, na prática, como referência regulatória provisória enquanto o debate legislativo avança.
O ponto de inflexão no cenário alemão ocorreu em dezembro de 2020, com a decisão 9 AZR 102/20 do Tribunal Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgericht).
O caso envolveu um trabalhador da plataforma Roamler, que realizava microtarefas – como checar estoques e fotografar produtos em supermercados – mediante ordens transmitidas por aplicativo.
A plataforma classificava o prestador como autônomo, mas o tribunal entendeu que havia relação de emprego conforme o §611a do Código Civil Alemão (BGB), que define o contrato de trabalho pela presença de subordinação pessoal e dependência econômica.
Os juízes observaram que o aplicativo determinava as tarefas, controlava tempo, local e modo de execução, avaliava o desempenho por meio de sistemas de pontuação e condicionava o acesso futuro a atividades mais rentáveis – características típicas de poder diretivo.
Segundo a pesquisadora Bruna da Penha de Mendonça Coelho, a decisão evidenciou a fragilidade contratual dos trabalhadores digitais e reforçou a importância de redefinir os critérios de subordinação em um contexto em que o controle se dá por algoritmos e não por supervisores humanos.
Nesse sentido, o Bundesarbeitsgericht inaugurou uma linha interpretativa que considera o controle algorítmico como manifestação contemporânea da subordinação clássica.
Itália
A Itália, por sua vez, reconheceu juridicamente uma categoria intermediária de trabalhadores, situada entre o emprego subordinado e o trabalho autônomo tradicional.
Essa figura, conhecida como “parassubordinação” (lavoro parasubordinato), surgiu no decreto legislativo 276/03 e tem servido de base para lidar com as novas formas de trabalho mediadas por plataformas digitais.
De acordo com o estudo de Fernando Passos e Rosane Teresinha Porto, apresentado no congresso International Experience Perugia – Itália, o modelo italiano tornou-se referência internacional por oferecer proteção previdenciária, sindical e contratual a trabalhadores que, embora formalmente independentes, são economicamente dependentes e sujeitos a controle por parte das plataformas
Recentemente, a lei 128/19 modificou o decreto legislativo 81/15 e regulamentou expressamente o trabalho em plataformas digitais, após uma série de decisões judiciais sobre o caso Foodora, empresa de entregas por aplicativo.
Em 2018, o tribunal de Turim havia negado o vínculo empregatício aos entregadores, mas reconheceu a necessidade de proteção mínima diante da dependência econômica e organizacional existente.
O caso subiu à Corte de Cassação, que em 2020 confirmou a existência de “subordinação atípica”, determinando a aplicação das normas de trabalho subordinado no que tange a salário mínimo, férias e previdência.
Com base nessa jurisprudência, a lei 128/19 passou a prever que entregadores de plataformas digitais (os chamados riders) têm direito a cobertura previdenciária obrigatória, seguro contra acidentes, remuneração proporcional ao tempo de conexão e proteção contra desligamento arbitrário.
A norma também introduziu regras de transparência algorítmica, exigindo que as empresas informem aos trabalhadores os critérios de gestão e avaliação utilizados pelos sistemas automatizados
O modelo também fortaleceu o papel das cortes trabalhistas, que passaram a aplicar testes de subordinação ampliada – incluindo critérios como controle algorítmico, avaliação por desempenho e impossibilidade de negociação individual.
Portugal
Em maio de 2025, o Supremo Tribunal de Justiça de Portugal proferiu decisão sobre o trabalho mediado por plataformas digitais.
No caso, envolvendo a empresa Glovo, os ministros seguiram a mesma linha interpretativa já consolidada na Espanha e na França, reconhecendo que a relação entre o entregador (ou estafeta, como é chamado em Portugal) e a plataforma configurava relação de emprego.
A ação teve origem em um procedimento instaurado pela ACT -Autoridade para as Condições do Trabalho, que constatou indícios de fraude contratual e de simulação de autonomia.
Diante disso, o Ministério Público português propôs uma “ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”, com o objetivo de assegurar aos entregadores os direitos trabalhistas correspondentes. O pedido havia sido rejeitado em 1ª instância e também no tribunal da Relação, até ser reformado pelo Supremo.
O colegiado fundamentou o reconhecimento do vínculo nos elementos clássicos de subordinação, como direção, supervisão e controle da atividade. O tribunal destacou ainda a inserção do trabalhador na estrutura algorítmica da plataforma, observando que o aplicativo e os sistemas digitais são integralmente administrados pela empresa, e que o desempenho do entregador depende de sua conexão e obediência às regras do sistema.
Segundo a decisão, a ausência de obrigação de resultado e de risco econômico, somada ao controle exercido pela empresa sobre as condições de trabalho e à possibilidade de suspensão ou desativação da conta, são traços inequívocos da relação laboral.
A Corte também afastou o argumento da flexibilidade de horários: o fato de o estafeta poder se conectar ou desconectar livremente não elimina a subordinação, já que o labor ocorre dentro de uma estrutura rigidamente definida pela plataforma.
O Supremo português ressaltou, por fim, que a prática de exigir pagamento de taxas ou firmar contratos de prestação autônoma não basta para descaracterizar o vínculo.
Tais cláusulas, advertiu o tribunal, têm sido usadas para mascarar relações de trabalho subordinado, fenômeno que as legislações europeias vêm combatendo ao reconhecer a presunção de laboralidade.
Comparativo
Veja, a seguir, um comparativo do panorama europeu, por país:
Panorama brasileiro
Depois de percorrer as diferentes experiências europeias – que vão da presunção de vínculo à transparência algorítmica, o debate sobre o trabalho por aplicativos ganha contornos próprios no Brasil.
Aqui, a ausência de regulação específica e a rápida expansão das plataformas criam um terreno fértil para disputas judiciais, pressões políticas e novos desafios sociais.
O pesquisador Murillo van der Laan citou levantamento do IBGE, em parceria com o MPT da 15ª região e o IFCH/Unicamp, que indica um quadro de intensificação da precarização no trabalho por aplicativos no Brasil.
Hoje, cerca de 1,5 milhão de pessoas atuam como motoristas e entregadores no país. A jornada é mais longa e a renda, menor, quando comparadas a ocupações equivalentes fora das plataformas.
Entregadores trabalham em média 47,6 horas por semana – quase cinco horas a mais – e recebem significativamente menos. Motoristas somam 47,9 horas semanais, cerca de 20% a mais de jornada, com ganho apenas 1% superior.
Segundo Van der Laan, o discurso de “disrupção” inaugurado pelas plataformas não representa uma mudança estrutural do processo de trabalho, mas uma gestão algorítmica baseada em controle e punições, sustentada, na fase de expansão, por subsídios do capital financeiro.
“Esses modelos se apoiaram em tarifas mais baixas aos clientes e repasses maiores aos trabalhadores, o que mascarou temporariamente a precarização. Agora, com o fim dos subsídios, vemos tarifas mais altas e compressão dos ganhos”, explica.
Outro ponto crítico é o tempo à disposição: mesmo conectados e aguardando chamadas, os trabalhadores não são remunerados, embora esse período integre a lógica de gestão e controle das plataformas.
Para o sociólogo, o problema não se restringe ao Brasil, mas tem raízes globais – especialmente nas economias periféricas.
“A gente não está diante de uma questão fácil, principalmente no Sul Global, onde há um histórico de informalidade e, agora, uma tendência de pejoratização do trabalho. O que vemos nas últimas décadas é um processo intenso de precarização”, avalia.
“Há, inclusive, setores patronais que já indicam o desejo de implementar essa “uberização” do trabalho sob uma propaganda de uma suposta flexibilidade para o trabalhador, mas implementar isso para os seus próprios setores. Portanto, essa decisão do STF agora se tornará paradigmática nesse sentido também, da tendência desse processo de uberização do trabalho para os demais setores.”
No plano regulatório, Van der Laan defende que a CLT deve continuar sendo o parâmetro para o setor.
“As plataformas exercem poder diretivo e organizam o processo produtivo. Portanto, precisam se adequar à legislação trabalhista – com horas extras, 13º, férias e FGTS. Criar uma categoria intermediária só ampliaria a precarização”, alerta.
O pesquisador considera que o Brasil pode – e deve – se inspirar na experiência europeia, especialmente nas regras da Diretiva da União Europeia, que prevê presunção de vínculo e regulação da gestão algorítmica.
“A experiência da Diretiva da União Europeia é extremamente plausível de se efetuar aqui, seja para onde for que se caminhe essa perspectiva do reconhecimento ou não do vínculo empregatício. Mas implementar aqui uma regulamentação da gestão algorítmica do trabalho”, afirma.
Precauções
Pode não ser o caso agora, mas a história oferece um alerta: quando a Europa se antecipou em regular a internet, o zelo virou fardo. O continente que abrigou gigantes como Nokia e SAP acabou ficando para trás na corrida digital. O rigor normativo – com o GDPR, o Digital Services Act e o Digital Markets Act – trouxe ganhos em privacidade e transparência, mas também gerou custos elevados, afastou startups e freou a inovação. Estudos indicam que o tráfego online europeu caiu cerca de 5% após o GDPR, e que o continente investe bem menos em tecnologia do que os Estados Unidos e a Ásia.
A lição é conhecida: a regulação precoce pode proteger o presente, mas, às vezes, sacrifica o futuro. Que o mesmo zelo com o trabalho por aplicativos não resulte em mais um avanço que, no fim das contas, custe caro à inovação.
Debate institucional
Aliás, o tema está hoje no centro das atenções do STF, que iniciou o julgamento conjunto da Rcl 64.018 e do RE 1.446.336. As ações discutem se motoristas de aplicativos têm, ou não, vínculo empregatício com as plataformas digitais.
Após realizadas as sustentações orais, a análise foi suspensa e será retomada após reflexão dos ministros.
Paralelamente, o tema também avança no Congresso Nacional. A comissão especial da Câmara dos Deputados que analisa a regulamentação do trabalho por aplicativo (PLP 152/25) realizará audiência pública nesta terça-feira, 14, às 15h, para discutir a atuação das empresas operadoras de plataformas digitais de transporte de passageiros e de entrega de comida.
Diante de tantos interesses em jogo, a solução parece residir em um modelo intermediário, capaz de garantir segurança aos trabalhadores, sem sufocar os novos formatos de trabalho que a tecnologia possibilitou.
Se conseguir equilibrar esses interesses, o Brasil pode transformar esse impasse em uma excelente jabuticaba.
Referências
COELHO, Bruna da Penha de Mendonça. Work by digital platforms in Germany: an analysis on the labour market and the decision 9 AZR 102/20 of the Federal Labour Court (Bundesarbeitsgericht). Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 1-22, 2022. Disponível em: https://revistatdh.org/index.php/Revista-TDH/article/view/134. Acesso em: 6 out. 2025.
HIESSL, Christina; GONSALES, Marco; RONCATO, Mariana Shinohara; VAN DER LAAN, Murillo. Trabalho em plataformas: regulamentação ou desregulamentação? O exemplo da Europa. Tradução de Pedro Davoglio. Coordenação de Ricardo Antunes. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2024. 216 p.
PASSOS, Fernando; PORTO, Rosane Teresinha (orgs.). Relações laborais transnacionais e novas tecnologias: I International Experience Perugia (Itália). Florianópolis: CONPEDI, 2025. Disponível em: https://www.conpedi.org.br/publicacoes. Acesso em: 6 out. 2025.
RANGEL, Leonardo Alves et al. Proteção social dos trabalhadores de plataformas digitais: experiência internacional – América Latina e Europa. Brasília, DF : Ipea, jun. 2024. 38 p. (Texto para Discussão, n. 3004). DOI http://dx.doi.org/10.38116/td3004-port