Na justificativa do recente Projeto de Lei nº 152/2025, há menção a um trecho do meu livro “De Vidas e Vínculos: existem muitas e infinitas lentes para olhar o trabalho de motoristas plataformizado”. Existe mesmo um mosaico de muitas lentes para olhar o trabalho dos trabalhadores plataformizados, porque as situações reais que já existem na atividade de transporte individual e de entregas não são todas iguais.
O trabalho autônomo pode ser uma dessas lentes. Mas para que seja trabalho autônomo, não basta a possibilidade de recusar chamados e decidir o horário. A própria CLT regula diversas formas de emprego que já preveem flexibilidade de horário e possibilidade de recusa de corridas/chamados nos artigos 235-C, §13º da CLT e artigo 452-A, §3º da CLT:
Art. 235-C, §13º. Salvo previsão contratual, a jornada de trabalho do motorista empregado não tem horário fixo de início, de final ou de intervalos.
Art. 452-A, §3º A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente.
Autonomia requer domínio sobre o próprio negócio
A autonomia real significa que o trabalhador tem o domínio sobre o seu negócio. No mínimo é preciso que se assegure:
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Preço do serviço: o trabalhador precisa ter autonomia de fixar o preço ou, pelo menos, poder negociar o valor diretamente com o cliente, como já acontece em algumas plataformas;
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Clientela: hoje a plataforma controla exclusivamente os clientes e os motoristas não podem nem entregar um cartão seu ao passageiro/cliente.
É preciso que a lei impeça a plataforma de aplicar qualquer sanção ou proibir o trabalhador de estabelecer tratativa com o cliente para serviços futuros.
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Bilateralidade na definição dos critérios de pagamento: custos e regras que não podem ser sujeitas a alteração unilateral, como acontece em alguns casos em que o trabalhador sequer sabe qual o percentual que a plataforma vai reter.
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Liberdade de definição e escolha dos modos de prestação de serviço. A apresentação pessoal, vestimentas, cabelo, barba do motorista e entregador, a questão de balas, água, o modo de prestação do serviço não podem ser controladas pela empresa-plataforma. O entregador tem que ter liberdade na entrega, o trabalhador não pode ser obrigado a usar e muito menos a adquirir a “bag” com logomarca específica do Ifood ou Uber Eats, por exemplo.
Se o modelo de negócio escolhido pela empresa de transporte/ pela empresa-plataforma exige controlar esses aspectos, então o trabalho que ela demanda não é autônomo.
Marco regulatório do trabalho de transporte e entrega
Há algumas sugestões mais amplas para o marco regulatório do trabalho de transporte e entrega intermediado por plataformas, com uma certa inspiração no modelo da recente da lei do Uruguai.
A lei uruguaia, que foi aprovada ainda no governo anterior, é interessante porque traz três capítulos: um com disposições comuns a todos os tipos de contratação, são normas sobre proteção de dados, reputação digital, transparência e não discriminação dos critérios do algoritmo e das regras contratuais, além da segurança e prevenção de riscos no trabalho e também a negociação coletiva que é direito de todo trabalhador. Tudo isso independente de ser empregado ou não.
Essa estratégia da lei uruguaia nos ensina que, em uma realidade que é plural, não cabe ao legislador engessar os modelos de negócio num só.
Diferentes modelos de negócio em contratação
Hoje, existem mais de 705 plataformas de transporte no Brasil, e a plataforma “V3”, da cidade de Vitória, contrata trabalhadores via CLT, e a “Urbano Norte” não cobra taxa do motorista por corrida. Portanto, a lei não pode ser pensada apenas para o modelo de negócios adotado pela Uber e 99 ou iFood.
E, do ponto de vista da proteção dos trabalhadores, há todo o debate sobre a aplicação ou não da CLT. Porém, é preciso lembrar duas possibilidades de enquadramento jurídico à disposição do legislador:
O trabalho avulso, que é uma situação fática muito similar a dos trabalhadores plataformizados, prevista na Constituição. Os trabalhadores avulsos decidem trabalhar ou não e concorrem às chamadas. As empresas somente pagam por tarefa efetiva e há formas de provisionamento e organização de férias e outros direitos. Eles não são CLT, não são empregados, e quem administra a mão de obra é uma entidade das empresas, o “OGMO”, que organiza a contratação, seleciona, faz cadastro, registro e disponibiliza a mão de obra para cada tomador.
A outra possibilidade, hoje, está na CLT, mas pode ter uma adaptação legislativa. É o intermitente de plataforma, porque o cliente é da plataforma, quem define o valor do serviço e da corrida ou entrega é a empresa-plataforma, mas o trabalhador que decide se aceita ou não o serviço. E é o trabalhador quem decide os horários de trabalho. Cabe ao legislador regular aspectos específicos de limites de jornada, formas de remuneração, transparência e proteção de dados, gamificação no gerenciamento algorítmico, dentre outras.
A Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é membro desde a sua criação, decidiu que vai editar em poucos meses uma convenção sobre o trabalho em plataforma, e esta convenção da OIT vai balizar a regulação desse mercado em todo o mundo. Muitos aspectos ainda vão ser decididos em maio de 2026. Mas é interessante que já existe todo um conjunto de consensos entre governos, empresas e trabalhadores sobre determinados conceitos (de trabalhador de plataformas digitais, plataforma digital de trabalho, remuneração, pagamento) e é recomendável que o marco legislativo brasileiro já esteja em sintonia com essas definições.
A OIT já definiu também que os países precisam regulamentar todo o trabalho em plataformas, tanto autônomo, mas também o empregado.
Para finalizar, o mosaico de lentes que temos para olhar o trabalho em plataformas, nós também temos com relação as lideranças de trabalhadores. No meu livro “De Vidas e Vínculos”, fiz um mapeamento das entidades sindicais e também reconheci a existência das lideranças de associações e cooperativas e também as lideranças informais. A lei precisa contemplar o reconhecimento das entidades coletivas dos trabalhadores, porque é um direito constitucional de todos os trabalhadores e também precisa contemplar a negociação coletiva como uma excelente forma de definição das normas jurídicas que vão reger as relações entre empresas e trabalhadores de cada setor econômico e profissional.
Referências
LEME, Ana Carolina Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos motoristas da Uber. São Paulo: LTr, 2019.
LEME, Ana Carolina Reis Paes. De vidas e vínculos: as lutas dos motoristas plataformizados por reconhecimento, redistribuição e representação no Brasil. São Paulo, LTr, 2023.
VIDIGAL, Viviane; MAIOR, Nívea M. S. S.; LEME, Ana C. R. P.; BRAGA, Cynthia R.. Do estilingue ao drone laser: a disputa de projetos de classe entre trabalhadores/as e empresas-plataforma. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Campinas, v. 7, p. 1-22, 2024.