NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Carlos Eduardo Carrusca Vieira

A atualização da NR-1 exige a proteção da saúde mental. Contudo, até que ponto as empresas estão dispostas a frear decisões rentáveis em nome do bem-estar do trabalhador?

O presidente e o diretor de finanças de uma organização convocam reunião com os gestores de cada um dos departamentos. Anunciam robustas mudanças organizacionais com o objetivo de melhorar a posição da empresa no mercado, a sua produtividade e o rendimento do seu capital. Os negócios vão bem, mas é necessário aperfeiçoar. Então, por que não?

Com base na análise dos dados contábeis e no escrutínio das planilhas, anunciam a necessidade de redução de pessoal. Mantras corporativos são evocados: “é preciso fazer mais com menos gente”, “é importante ter resiliência”. Além disso, é possível imaginar o seguinte diálogo:

– Vamos enfrentar a insatisfação dos colaboradores – alguns afirmam.

– Mas as pessoas se adaptam com o tempo – outros dizem.

– E, afinal, qual é o papel de vocês como líderes? – pergunta o diretor de finanças.

– Exatamente – responde o senhor presidente.

O diretor de finanças prossegue:

– Contribuir para que o plano de reestruturação seja levado a cabo, com o mínimo desgaste para a empresa – essa frase recebe apoio do Marketing e Branding e do Departamento Jurídico.

– Aliás, o pessoal do RH pode cuidar disso – ressalta o presidente, dirigindo-se ao gestor do RH. Você poderia fazer um planejamento de palestras voltadas para a saúde mental dos colaboradores. Observem: temos Janeiro Branco, Setembro Amarelo e a SIPAT para abordar a importância do autocuidado com a saúde mental. É bom estabelecer essa “nova cultura da prevenção”, mudar o mindset – acrescenta.

Reunião encerrada. Registre-se e cumpra-se.

Essa caricatura da reunião corporativa permitiria, obviamente, variações no enredo. No entanto, a preponderância do critério econômico sobre a saúde mental, a despolitização da luta pela saúde e a posição impotente do setor de recursos humanos em relação às finanças permaneceriam, em inúmeros casos, muito próximas, senão idênticas.

De longa data, na verdade, observa-se sistematicamente a conversão das disfunções, das patologias e dos vícios organizacionais, geradores de sofrimento e de adoecimento psíquico, em questões individuais. Problemas do mundo material e social são transformados, assim, em problemas individuais. “Crise do trabalho” torna-se “crise individual de saúde mental”, ocultando as raízes dessa temática.

As falácias, largamente disseminadas na sociedade e no mundo corporativo, despolitizam a luta pela saúde e reduzem o adoecimento a aspectos individuais, sobretudo, ao subtraírem do quadro da inteligibilidade do processo de saúde-doença a exigência de compreender as tensões entre capital-trabalho, as relações de poder e as contradições sociais experimentadas pelos trabalhadores. Sem essas discussões, a nova cultura organizacional conduz a medidas superficiais de abordagem da saúde mental relacionada ao trabalho.

Entre essas medidas, verifica-se a tentativa de rastrear sintomas psicológicos que indiquem fragilidades emocionais dos trabalhadores, os quais se tornam tanto mais descartáveis para uma organização quanto mais se observem suas incapacidades de suportar condições adoecedoras (metas inatingíveis, recursos escassos junto a exigências crescentes, jornadas extenuantes, assédios moral e sexual, excessivas e rigorosas vigilâncias, entre outros).

Para atacar os graves problemas de saúde relacionados ao trabalho, muitos programas corporativos de QVT – Qualidade de Vida no Trabalho limitam-se a oferecer mindfulness, palestras motivacionais, dias de embelezamento, atividades físicas, ambientes descontraídos e descolados. Evitam, contudo, discutir o essencial: os reais desafios, os paradoxos e as contradições da realidade laboral nas organizações. Intervenções paliativas, como as citadas, não costumam resultar em melhoria das condições laborais e da saúde dos trabalhadores. E não são inofensivas, pois ampliam a pressão sobre o trabalhador, transformado no único responsável pela própria saúde mental. As organizações reafirmam, desse modo, a ideia de que “muito já é feito pelos funcionários”.

Nesse cenário, a cultura da prevenção ao adoecimento e da promoção da saúde é reduzida a um discurso com ações pouco efetivas sobre a raiz dos problemas. Insiste-se, assim, em debater a crise da saúde mental, sem pautar a discussão sobre a crise social do trabalho, que tem resultado em diversas patologias laborais.

Em face disso, no âmbito corporativo, o RH segue, geralmente, a reboque das decisões gerenciais, tomadas em outras instâncias e com base em critérios econômico-financeiros que não são, necessariamente, compatíveis com a proteção da saúde dos trabalhadores. Quando se trata de discutir e de agir sobre as condições laborais causadoras de agravos à saúde mental, o RH opera, frequentemente, de maneira reativa. Sem real poder de transformar a realidade organizacional e o cotidiano laboral, por maior que possa ser a coragem individual de seus profissionais, o RH permanece constrangido por outras instâncias, ditas mais importantes e racionais, que cuidam dos negócios. A racionalidade gerencialista, porém, não incorpora em seu horizonte de atuação a proteção da saúde mental e os custos humanos que suas decisões acarretam para as pessoas. De outro lado, o RH acumula dados relativos ao sofrimento, que se refletem em licenças médicas, absenteísmos, rotatividades e que evidenciam o ônus financeiro da desumanização.

Em tal contexto, marcado pela notória incidência de transtornos mentais e comportamentais associados ao trabalho, a NR-1 – Norma Regulamentadora 1 é atualizada e impõe a necessidade de cuidar da saúde mental dos trabalhadores; do nosso ponto de vista, isso exige cuidar do trabalho. Em sua recente atualização, essa norma incorpora a obrigatoriedade de prevenir os riscos psicossociais relacionados ao trabalho que possam impactar a saúde mental dos trabalhadores. A NR-1 demanda que as organizações identifiquem, avaliem e controlem os fatores de risco, incluídos os riscos psicossociais, por meio do GRO – Gerenciamento de Riscos Ocupacionais. Estaria remediada a situação crítica da saúde mental relacionada ao trabalho? Certamente não.

A compreensão do que está em jogo nos contextos corporativos ressalta que a implementação dessa norma será um desafio. Mais ainda, evidencia que a proteção da saúde mental, exigida pela NR-1, encontra-se em uma encruzilhada marcada por contradições estruturais. Afinal, entre dois pesos e duas medidas, qual lugar restará para construir medidas efetivas de proteção da saúde mental – que permanece subordinada ao critério econômico, de maior peso para as organizações?

Profissionais das corporações e consultores têm repetido que, em razão da NR-1, as organizações terão de estabelecer uma nova cultura. Será preciso, conforme o jargão corporativo, mudar o mindset. Nesse sentido, indagam se as organizações estão preparadas para implementar a NR-1 e para produzir uma nova cultura. Ocorre que, em várias situações, essa nova cultura resume-se a reiterar antigas fórmulas e práticas, ou seja, a programas de qualidade de vida que abandonam os dramas do trabalho e que não integram a participação dos trabalhadores, reais conhecedores dos desafios e dos paradoxos da realidade.

Por tudo isso, é preciso lembrar: cuidar do trabalho, com o objetivo de cuidar da saúde mental, não equivale a preencher formulários e a elaborar diagnósticos de fragilidades individuais. Também não se reduz às palestras motivacionais, ao mindfulness ou às palestras do Janeiro Branco e do Setembro Amarelo. O cuidado dissimulado, conhecido como wellbeing washing, não logra transformar as condições laborais das quais decorrem os problemas de saúde mental relacionados ao trabalho, tais como quadros de ansiedade, de depressão, de estresse pós-traumático e de esgotamento profissional.

A saúde não se estabelece por decreto, nem por respostas protocolares. Na verdade, implica ações efetivas, com a participação incontornável dos coletivos profissionais, a fim de compreender os desafios e os problemas experimentados no trabalho real, bem como de construir soluções em face das contradições materializadas no âmbito laboral. Dessa maneira, para além das perguntas já feitas, outras parecem importantes para dar a real dimensão dos obstáculos impostos pela implementação da NR-1.

Desafios práticos irão se apresentar, sobretudo em relação aos pesos e às medidas de determinados critérios que presidem as tomadas de decisão. No binômio composto por produtividade-saúde, sabe-se que o ponto de vista econômico, em detrimento da saúde, pesa mais. Nesse sentido, a tarefa de proteger a saúde mental não pode ser simplesmente transferida ou realizada pelo RH. Por mais corajosos que sejam esses profissionais, eles continuam, com frequência, sem poder para decidir sobre aspectos (econômicos) que realmente impactam a saúde mental.

Para pensar em mudanças, seria indispensável que as organizações, por meio das suas políticas contábil e de gestão de RH, incorporassem a saúde mental não apenas como horizonte e cultura, de forma abstrata, mas como critério inegociável. Não temos nenhuma ingenuidade, ao contrário, temos clareza das restrições impostas a isso em uma economia que se orienta justamente pelo imperativo da valorização do valor. De qualquer modo, façamos um exercício de reflexão: se a saúde mental fosse assumida nas organizações como critério inegociável, o que tal escolha significaria na prática?

Ter a saúde como critério inegociável implicaria impor limites à obsessão pela maximização dos resultados econômicos, ou seja, à gestão do “custe o que custar”. Significaria ainda que uma decisão econômica potencialmente rentável poderia ser impedida se causasse impactos sobre a saúde. Então, a pergunta não seria simplesmente: as organizações estão prontas para implementar a NR-1? A pergunta é: as organizações estão preparadas para frear decisões mais rentáveis ou mais econômicas que possam impactar gravemente a saúde mental dos trabalhadores?

Nessa linha de raciocínio, exemplificamos um pouco mais: as empresas estão aptas a dar um passo atrás nas tentações de reduzir o quadro de pessoal, isto é, de produzir “mais, com menos” e, assim, a proteger a saúde dos trabalhadores? Estão dispostas a reduzir jornadas de trabalho extenuantes, sem depauperar a renda dos funcionários? Estão prontas para ampliar os recursos humanos, tecnológicos e materiais à disposição dos trabalhadores, porque isso pode resultar em prevenção ao adoecimento? Ou continuarão a reduzir a infraestrutura e os recursos humanos aos limites mínimos ou ainda menores, ignorando os impactos nocivos para a saúde? Seguirão o lema do “adapte-se quem quiser, ou peça para sair”, ou vão defender a adaptação do trabalho às características psicofisiológicas dos trabalhadores, como preconiza a NR-17? Vão parar de dizer por decreto o que é a saúde para os trabalhadores e de impor programas de QVT com pouca utilidade para transformar o trabalho? Irão escutar os funcionários, entender o que os adoece e mata, antes de propor ações? Estão dispostas a mudar efetivamente o papel do RH, tão relegado ao papel de ministrar cuidados paliativos?

Os impasses e as dificuldades são evidentes, pois no sistema econômico atual a economia e a saúde não caminham de mãos dadas. A saúde, o tempo e a energia vital dos trabalhadores são consumidos e sacrificados em nome da rentabilidade financeira de poucos. O desgaste, o sofrimento e o esgotamento profissional são distribuídos para muitos, como expressões sociais do antagonismo entre dois pesos e duas medidas.

No plano jurídico, de um lado, impõem-se balizas à ação predatória do capital, de outro, alimenta-se a insaciável serpente com a modernização das relações de trabalho, que já se fantasiou de reforma trabalhista e hoje se apresenta com diferentes roupagens (pejotização, empreendedorismo, colaboradores, parceiros), aprofundando a precarização laboral.

No fundo, vale destacar, sabemos que não está em jogo apenas a aplicação de normas, mas o projeto de sociedade que desejamos e que defendemos. Contudo, por ora, voltemos nossa atenção ao momento presente e à questão essencial para iniciar um real debate sobre a proteção da saúde mental: quais decisões de baixo custo e de alta rentabilidade, potencialmente nocivas, as organizações estão dispostas a frear em nome da saúde mental de seus trabalhadores?

Carlos Eduardo Carrusca Vieira
Pós-doutor em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas. Doutor e Mestre em Psicologia pela UFMG. Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas.

MIGALHAS
https://www.migalhas.com.br/depeso/442251/dois-pesos-duas-medidas–nr-1-e-a-saude-mental-do-trabalhador