OPINIÃO
Na língua inglesa, há uma expressão utilizada para se referir à oportunidade de se defender de críticas: “Have your day in court” [1], que, em tradução literal, seria como “ter seu dia no tribunal”. A partir dessa figura de linguagem, podemos imaginar um cidadão comum tendo a oportunidade de ter um dia da Justiça como sendo seu, com todo o aparelho judicial a seu dispor, para ouvir o que ele tem a requerer e, como resultado, receber um pronunciamento judicial sobre seu pleito, seja ele favorável ou não.
O que importa aqui é ter os ouvidos de uma autoridade judiciária atenta a seu requerimento, ponderando as evidências apresentadas em cotejo com as alegações de todas as partes envolvidas. Esse é o conceito de acesso à Justiça, de forma bastante singela.
Embora de fácil compreensão, o conceito de acesso à Justiça é de tamanha relevância que o constituinte originário de 1988 o elevou ao máximo estado possível a um direito: o de cláusula pétrea, inamovível da Carta Magna, restringindo o poder estatal e impedindo que qualquer norma inserta no sistema jurídico venha a excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. [2]
Nesse sentido, o povo, detentor soberano do poder constituinte, deixou claro que qualquer norma que impeça, ainda que indiretamente, o acesso do cidadão à Justiça deve ser reputado como contrária à Constituição e repelida do sistema.
Note-se que falamos de impedimentos indiretos ao acesso à Justiça, na medida em que, mesmo com o processo legislativo nas duas casas do Congresso Nacional, que visa a efetivamente burilar e extirpar eventuais inconstitucionalidade de normas, ainda assim se faz indispensável o exercício do controle de constitucionalidade de normas em concreto, através de seu guardião eleito pela própria Carta Cidadã.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão muito aguardada pela comunidade da Justiça do Trabalho, compreendeu, em sessão plenária do dia 20 de outubro, pela inconstitucionalidade do artigo 791-A, §4º, da Consolidação das Leis de Trabalho, em redação dada pela reforma trabalhista, Lei nº 13.467, de 2017 [3].
Essa norma estatuía, em breve suma, que os reclamantes beneficiários de Justiça gratuita que recebessem valores capazes de suportar honorários advocatícios haveriam de proceder ao seu pagamento ao advogado da parte contrária em relação aos pedidos que fossem jugados improcedentes na reclamação trabalhista.
Essa norma colocava os trabalhadores a ponderar riscos ao ingressar com demandas trabalhistas: Pedir valores que entende devidos, correndo o risco de ter uma decisão de improcedência e ter de pagar honorários ao advogado da parte contrária, ou pleitear apenas aqueles títulos que teria certeza da procedência, renunciando a pretensões legítimas?
A consequência prática dessa avaliação de riscos redundava na não apreciação pelo Judiciário de potenciais ameaças e lesões a direitos estatuídos na CLT ou mesmo na própria Constituição, que guarda dentro de si o núcleo duro de direitos do trabalhador. Muitas ações trabalhistas sequer foram propostas, dado o temor reverencial de requerer o que entende justo, e terminar com uma dívida.
Sob esse paradigma, havia uma efetiva restrição ao acesso à Justiça, pois o já referido receio da improcedência dos pedidos limitava o exercício do direito constitucional. E aqui, nesse sentido, é irrelevante que a decisão proferida seja procedente ou não.
Como é cediço, um dos objetivos do Direito é a pacificação da sociedade, através da resolução dos conflitos. As práticas de soluções alternativas de conflitos apontam que, por vezes, as controvérsias são resolvidas pelo ouvir as demandas, e não necessariamente pela sentença.
A existência de mecanismos para impedir que as causas sejam ingressadas e, por consequência, apreciadas pelo Judiciário não é compatível com os fundamentos sobre os quais se firma o Estado democrático de Direito, tais como a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho [4]. Não é minimamente razoável que a decisão das demandas que serão apreciadas pelo Poder Judiciário seja delegada ao trabalhador, que na esmagadora maioria das causas se encontra em condição de dificuldades financeiras (quando não penúria) ante o desemprego.
Portanto, a decisão do STF coloca as coisas em seu devido lugar, restabelecendo o mais amplo acesso à Justiça possível, indissociável da própria natureza da Justiça do Trabalho.
O necessário contraponto à decisão recentemente prolatada afirma que se dará uma retomada de ingresso de demandas sem qualquer fundamento, já que não há qualquer penalidade ou sanção a quem pede aquilo que sabidamente não tem direito.
Todavia, há de se considerar um relevante fato: ter de ir à Justiça para pleitear direitos já é, por si só, um fator inibitório para a formulação de demandas. Embora as portas da Justiça estejam abertas, estar perante um juiz é intimidador para aqueles que não lidam com os mecanismos da Justiça de forma diária. Há de se observar as matérias da perspectiva do trabalhador mais humilde.
A solução das controvérsias trabalhistas não passa pela ponderação de menos ou mais processos judiciais. A medida exata é aquela advinda da violação dos direitos dos trabalhadores. Todas as violações devem ser apreciadas pelo Judiciário. Nem uma a mais, nem uma a menos. Ainda que se compreenda, ao final, pela correção do procedimento da empregadora
Por fim, reconhecemos que o cumprimento das normas trabalhistas é um encargo pesado, dada a complexidade da legislação vigente, com pontos de interpenetração e zonas cinzentas, entre outros problemas de ordem fiscal, econômica e financeira. Uma solução de lege ferenda e como política pública de estímulo ao pleno emprego seria a simplificação de procedimentos para cumprimento das obrigações trabalhistas, sem afastar o núcleo constitucional do Direito do Trabalho, com incentivos de ordem econômica e fiscal para tanto.
Os ouvidos da Justiça do Trabalho voltam a ouvir as vozes de todos os cidadãos. E, ao contrário do que se possa imaginar, isso é do interesse de todos e de cada um dos envolvidos nas relações trabalhistas. Todos buscam um melhor ambiente de negócios que permita mais empregos com melhores remunerações. E esse ambiente saudável passa, sem sombra de dúvidas, pela aplicação da legislação vigente. Não só isso: passa também pela garantia de que haverá a correta aplicação da referida legislação.
Essa garantia é exercida através também da formulação de demandas judiciais perante a Justiça do Trabalho, que está, mais do que antes, pronta a cumprir seu mister constitucional.
Douglas Fragoso é advogado trabalhista sênior no escritório FNCA Advogados, especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Escola Paulista de Direito e membro da Comissão de Sociedades e da Comissão de Relacionamento com o TRT2 da OAB São Paulo.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2021-nov-24/fragoso-justica-trabalho-reabre-portas-ouvidos-trabalhador