Nas últimas semanas, acompanhamos inúmeras manifestações em defesa da Justiça do Trabalho, a exemplo das declarações do presidente em exercício do TRT da 2ª Região [1] e dos atos promovidos pela Associação Nacional das Magistradas e dos Magistrados da Justiça do Trabalho, Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho e Associação Brasileira da Advocacia Trabalhista [2].
O motivo do descontentamento dessas instituições é a decisão proferida pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, nos autos do ARE 1.532.603, que determinou a suspensão nacional de todos os processos que versam sobre a legalidade da chamada “pejotização”, ou seja, que discutem a licitude de contratos de prestação de serviços.
Em 2018, a Suprema Corte, no julgamento da ADPF 324, reconheceu a validade constitucional de diferentes formas de divisão do trabalho e a liberdade de organização produtiva dos cidadãos. Esse tipo de contrato, inclusive, é comum em diversos setores da economia, como representação comercial, corretagem de imóveis, advocacia associada, saúde, artes, tecnologia da informação, entregas por motoboys, entre outros.
Ocorre que, passados mais de seis anos dessa decisão, esse tipo de controvérsia segue sobrecarregando o STF diante do elevado número de reclamações ajuizadas contra decisões da Justiça do Trabalho que, em diferentes graus, deixam de aplicar o entendimento já firmado pela Suprema Corte sobre a matéria. Segundo o ministro Gilmar Mendes:
“O descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas.” [3]
Importância da Justiça do Trabalho
Em que pese a divergência de entendimentos entre a Suprema Corte e a Justiça do Trabalho, uma premissa é inafastável: não há dúvida acerca da importância do Judiciário trabalhista especializado, pois, apenas em 2024, foram recebidos mais de 4 milhões de novos processos e julgados mais de 3,9 milhões de casos. Além disso, embora não seja função precípua do Poder Judiciário, não se pode desprezar o fato de que a Justiça do Trabalho movimentou mais de R$ 6 bilhões em custas, emolumentos, imposto de renda e contribuição previdenciária, conforme dados do Tribunal Superior do Trabalho [4].
Portanto, em virtude de um país com dimensões continentais, com sua conhecida desigualdade social, altas taxas de desemprego e informalidade, e números elevados de conflitos relacionados ao trabalho, uma Justiça especializada no tema, tal como é a Justiça do Trabalho no Brasil, é um importante, e indispensável, instrumento de pacificação social.
Entretanto, há necessidade de evolução e maior harmonia entre os órgãos do Poder Judiciário para acompanhar as mudanças do mercado e, por consequência, das relações de trabalho, bem como os avanços experimentados nos campos legislativo e jurídico, ou seja, na própria jurisprudência dos tribunais superiores que, por vezes, não são observadas em nome de princípios supostamente maiores — a exemplo do princípio da proteção [5] — e que acabam por estimular um ambiente conflituoso e de maior insegurança jurídica não apenas para as empresas, mas também para os trabalhadores e investidores.
Para melhor contextualizar o leitor, faremos referência, por amostragem, há episódios que evidenciam mudanças de paradigmas com reflexos diretos no judiciário trabalhista:
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até a Emenda Constitucional n° 45, de 30.12.2004, a Justiça do Trabalho ocupava-se quase que exclusivamente do julgamento de causas envolvendo a existência de vínculo de emprego regido pela CLT. Desde então, contudo, sua competência foi ampliada para processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho, ou seja, outras formas de trabalho;
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a Súmula 331 do TST [6] vedava a terceirização em atividade-fim do tomar de serviços, em que pese a inexistência de vedação legal [7]. Essa questão, contudo, somente veio a ser superada pelo STF, em 2018, no julgamento da ADPF 324 e do Recurso Extraordinário 958.252, com repercussão geral reconhecida, ambos compreendendo como constitucional a terceirização de atividades-fim nas empresas em geral, revisitando a posição contrária firmada pela Justiça do Trabalho (Súmula 331, TST) [8]. Por fim, a Lei n° 13.429/17, que alterou a Lei 6.019/74, ampliou as hipóteses de terceirização de mão de obra, deixando clara a sua licitude inclusive nas denominadas ‘atividade-fim’ do contratante;
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o Supremo concluiu que a competência para analisar contratos de motoristas autônomos, incluindo transportadores autônomos de carga, é da Justiça Comum, e não da Justiça do Trabalho, pois, uma vez preenchidos os requisitos da Lei nº 11.442/2007, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista [9];
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a Lei n° 13.467/2017, conhecida como “reforma trabalhista”, trouxe importantes avanços, a exemplo da figura do trabalhador hipersuficiente [10] e da maior autonomia das partes na formulação das condições de trabalho, conforme prescrevem os arts. 8°, §3° [11], 44, parágrafo único [12], e 611-A [13] da CLT, por exemplo.
Contrariedade às decisões do STF
Além das inúmeras decisões da Justiça do Trabalho contrárias ao entendimento do STF quanto à licitude de contratos de prestação de serviços, podemos citar, ainda, as decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem a existência de vínculo de emprego de motoristas de aplicativos de transporte com base em “subordinação algorítmica” [14], mesmo quando é sabida a autonomia de tais profissionais no desempenho de suas atividades, inclusive para descaracterizar a subordinação jurídica exigida pelo artigo 3° da CLT [15].
É justamente por essa razão que decisões estão sendo reformadas via reclamação constitucional e a competência da Justiça do Trabalho cada vez mais questionada, pois parte do judiciário trabalhista continua deixando de observar os precedentes da Suprema Corte, ás vezes com base em princípios tipicamente trabalhistas que merecem e precisam ser revisitados, pois não mais se amoldam à realidade da sociedade e do mercado e à interpretação da própria Constituição.
Não se está a defender a fraude, a prática de conduta ilícita ou a redução da competência da Justiça do Trabalho, mas, diante da dinâmica atual do mercado, da evolução da sociedade e da criação de novas formas de trabalho e, por consequência, dos novos contornos de conflitos que não se resumem à relação de emprego disciplinada pela CLT, faz-se necessária uma releitura do princípio da proteção pelo próprio judiciário trabalhista para que princípios constitucionais, a exemplo do livre exercício da atividade econômica previsto no artigo 170, parágrafo único, da Constituição, e normas gerais de direito, tal como a regra quanto à validade dos negócios jurídicos prevista no artigo 104 do Código Civil, sejam observados e respeitados em todos os julgados, sobretudo, mas não se limitando, aos casos que envolvem trabalhadores hipersuficientes.
Direito de proteção ao trabalhador
Convém recordar, a esse respeito, que o Supremo Tribunal Federal fixou, em sucessivos julgamentos plenários a partir da ADPF 324 e RE 958.252, que o princípio da liberdade de organização empresarial não viola o direito de proteção ao trabalhador, mas, ao contrário, torna possível modelos de contratação e prestação de serviço que são benéficos ao profissional que presta o serviço. Essa jurisprudência, que equaciona a liberdade de contratação com a proteção ao emprego, somente se fortaleceu após o julgamento da ADI 5.625, ADC 66, RE 791.932 e ADI 3.961. Situação similar também se observou no julgamento da ADC 26, ADC 571 e ADI 3.961.
Assim, deve-se observar que a jurisprudência recente da Suprema Corte tem indicado que esse tipo de restrição encontrada em algumas decisões da Justiça do Trabalho, que penalizam a livre organização econômica, não deve mais subsistir. Não se pode impor restrições desproporcionais às liberdades de iniciativa, de profissão e de contratação, “o que leva a uma limitação oligopolista do mercado em benefício de um grupo específico em detrimento da coletividade” (ADPF 449). Além disso, em um outro julgamento relevante, o Supremo estabeleceu, por exemplo, que a restrição à atividade de transporte privado individual por motoristas cadastrados é inconstitucional por violar os princípios da livre iniciativa e concorrência (RE 1.054.110).
Portanto, a “defesa” da Justiça do Trabalho passa pela própria Justiça do Trabalho, ou seja, por todos os atores sociais que se socorrem desta justiça especializada, inclusive partes, procuradores, servidores e magistrados, pois não está em pauta apenas a defesa de um ramo específico do poder judiciário, mas um bem maior: a segurança jurídica tão necessária para o desenvolvimento econômico do Brasil e pacificação de conflitos sociais.
[3] Trechos da decisão monocrática proferida nos autos do ARE 1.532.603 ,que determinou a suspensão nacional de todos os processos que discutem a licitude de contratos de prestação de serviços.
[5] Em linhas gerais, o princípio da proteção norteia o direito do trabalho brasileiro e pressupõe que, como o empregador é o detentor do poder econômico, ficando assim em uma situação elevada, ao empregado será atribuída uma vantagem jurídica que buscará equiparar as partes e suprir esta diferença.
[6] “(…) III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta”.
[7] O Decreto-lei n° 200/67 e a Lei n° 5.645/70 já autorizam a terceirização, embora na atividade pública, sem qualquer restrição. A limitação imposta pela Súmula 331 do TST, portanto, atentava contra o princípio da legalidade, segundo o qual: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
[8] Nesse sentido, assim decidiu o STF em sede de repercussão geral (Tema 725 – Terceirização de serviços para a consecução da atividade-fim da empresa): “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.
[10] O termo “trabalhador hipersuficiente” refere-se a um profissional com diploma de nível superior e salário igual ou superior a duas vezes o teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS). Esta figura jurídica, introduzida pela Lei n° 13.467/2017, tem maior autonomia para negociar seus termos de contrato com o empregador.
E [11] “Art. 8° – As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. (…)
§ 3oNo exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei no10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”.
[12] Art. 444 – As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.
Parágrafo único. A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.
[13] O art. 611-A da CLT estabelece que a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei em determinados temas, como jornada de trabalho, intervalo intrajornada, banco de horas e outros.
[14] TRT-3 – ROT: 00106060520225030165, Relator.: Convocado Marcio Toledo Goncalves, Data de Julgamento: 17/10/2023, Decima Primeira Turma.
[15] TST-Ag-RR: 00003877920225170152, Relator.: Breno Medeiros, Data de Julgamento: 16/10/2024, 5ª Turma, Data de Publicação: 18/10/2024.