Vitor Pontes
A regulamentação das apostas no Brasil, especialmente em esportes, e a proibição de jogos de azar revelam desafios trabalhistas, como a difícil detecção de vícios, como o jogo patológico.
Introdução
Como ponto de partida, é importante esclarecer que a abordagem proposta não inclui as “apostas esportivas”, uma vez que o Governo Federal, por meio da lei 14.790/23, regulamentou as lotéricas conhecidas como “apostas de quota fixa”, estabelecendo normas específicas para apostas em eventos esportivos. Essa legislação exige autorização prévia do Ministério da Fazenda para a operação de casas de apostas.
No entanto, outras modalidades de jogos, como jogos de azar, bingos, cassinos e caça-níqueis, continuam sendo consideradas ilícitas no território nacional. Isso inclui o popular “Jogo do Tigrinho” (Fortune Tiger), explorado ilegalmente por plataformas sediadas no exterior, sem qualquer autorização ou regulamentação no Brasil. A legislação atual mantém a proibição dessas práticas, reforçando a necessidade de fiscalização e combate a operações irregulares.
Assim, ao longo desta explanação, o termo “jogos de azar” refere-se exclusivamente às atividades não regulamentadas pela legislação brasileira.
Prática de jogos de azar e embriaguez habitual: Paralelo
No âmbito trabalhista, a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho prevê, em seu art. 482, alínea “l”, que a “prática constante de jogos de azar” constitui motivo para a aplicação de justa causa pelo empregador. Referida disposição legal permite a rescisão do contrato de trabalho em casos de comportamento reiterado do empregado em atividades de jogo.
O mesmo art. 482 da CLT, em sua alínea “f”, prevê a “embriaguez habitual ou em serviço” como outra conduta passível de punição por justa causa. No entanto, a embriaguez habitual, antes tratada como uma mera questão disciplinar, hoje é compreendida como um problema de saúde pública, classificada como síndrome de dependência do álcool (CID F10.2) pela OMS – Organização Mundial da Saúde.
Neste sentido, o TST tem entendimento consolidado de que a embriaguez habitual não justifica mais a ruptura do contrato de trabalho, devendo o empregado ser encaminhado para tratamento médico e apoio adequado.
Seguindo essa linha de raciocínio, é importante destacar que o vício em jogos de azar também é classificado como doença pela Organização Mundial da Saúde. No CID-10, ele é identificado como jogo patológico (F63.0) ou mania de jogo e apostas (Z72.6). Já no CID-11, o vício em jogos eletrônicos é classificado como “Distúrbio de games”, também conhecido como ludopatia, caracterizado pelo “desejo incontrolável de continuar jogando”1.
Os impactos sociais da disseminação dos jogos de azar por aplicativos telefônicos são amplamente conhecidos, incluindo dilapidação patrimonial, perda das economias familiares e, em casos extremos, a própria abdicação intencional da vida. Esses efeitos negativos têm sido amplificados pela proliferação de aplicativos de jogos de azar, que facilitam o acesso e aumentam o risco de dependência2.
Desafios nas relações de emprego
No contexto trabalhista, a questão se torna especialmente desafiadora. O acesso a jogos de azar por meio de celulares dificulta a detecção pelo empregador, ao contrário de situações como a embriaguez em serviço, que pode ser identificada por sinais físicos, como redução de reflexos, sonolência ou odor de álcool.
Além disso, é complexo mensurar o tempo que um empregado dedica a jogos de azar durante o horário de trabalho, bem como determinar se o uso excessivo do celular está relacionado a jogos ou a outras atividades. Essa falta de clareza torna difícil a aplicação do conceito de “prática constante”, previsto no art. 482 da CLT.
Jurisprudência e tendências futuras
Pesquisa jurisprudencial no site do TST revela poucos julgados sobre dispensa por justa causa relacionada a jogos de azar, sendo a maioria deles antigos. É muito mais comum, por exemplo, encontrar processos envolvendo pedido de reconhecimento de vínculo de emprego com estabelecimentos de jogos de azar do que a aplicação de justa causa pela prática de jogos.
Nos TRTs também são raros os julgados recentes sobre o tema. No entanto, é certo que, com a popularização dos aplicativos de jogos de azar e a facilidade de acesso, as discussões sobre o assunto tenderão a se tornar mais frequentes nos tribunais trabalhistas.
Conclusão e desafios
O principal desafio para os empregadores será a correta aferição da conduta do empregado, tanto no que diz respeito à detecção do acesso a jogos de azar quanto à quantificação da habitualidade dessa prática. A falta de parâmetros objetivos e a dificuldade de monitoramento tornam a aplicação da justa causa um tema complexo e delicado.
Além disso, é fundamental que as empresas adotem políticas claras sobre o uso de celulares e promovam campanhas de conscientização sobre os riscos dos jogos de azar, equilibrando a proteção ao emprego com a necessidade de manter um ambiente de trabalho produtivo e saudável.
Pontos relevantes para reflexão
Regulamentação: A falta de uma legislação específica para jogos de azar cria um vácuo que dificulta a fiscalização e o combate a práticas ilegais.
Saúde pública: Tanto a embriaguez quanto a ludopatia devem ser tratadas como questões de saúde, com foco em prevenção e tratamento.
Responsabilidade do empregador: As empresas precisam adotar medidas para monitorar e orientar os empregados, garantindo que o uso de celulares não comprometa a produtividade e o ambiente de trabalho.
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1 https://g1.globo.com/saude/saude-mental/noticia/2024/07/16/ludopatia-entenda-o-que-e-a-doenc.ghtml
Vitor Pontes
Advogado especialista da área trabalhista – Gameiro Advogados
MIGALHAS