NOVA CENTRAL SINDICAL
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Esta talvez seja a grande questão: o choro convulsivo dos torcedores do time prestes a cair para a segunda divisão, atende a demandas bem mais convincentes para o nosso mundo, do que a morte de milhões de pessoas na Eritréia ou sob os bombardeios da Otan na Libia.

Enio Squeff

É possível que Bach, Beethoven e Villa-Lobos encontrassem a admiração de gente que hoje consideramos inculta – que nunca foi a um concerto, jamais leu um livro e sequer considera a possibilidade de visitar uma exposição de pintura. Portinari reconhecia que um dos melhores elogios que recebeu em vida, foi de um operário que montava um de seus painéis: ele anteviu Deus nas mãos do artista, que, por ironia, se dizia comunista e ateu . São considerações genéricas, quase exceções, que se fazem tão mais raras, quanto mais se tem de admitir ser quase impossível conciliar a crença na inteligência humana com a visão dos programas de auditório que inundam a televisão – não apenas brasileira. Um italiano, votante de Berlusconi, afirmava ser preferível um governante que dava divertimento a seu povo – nos canais de televisão do atual Primeiro Ministro da Itália – do que num outro qualquer, que só se preocupasse em administrar a coisa pública.

A “estetização da politica”, expressão cunhada por Walter Benjamin sobre Hitler e o fascismo, parece ter se estendido ao futuro como uma espécie de mandamento de todos os políticos que tendem ao totalitarismo, sem serem, necessariamente ditadores. O ex-presidente americano Ronald Reagan, ator de Hollywood, usou seu inegável carisma dentifrício para convencer os americanos de que era o homem certo para o momento certo. Dispensem-se mencionar outros exemplos algures. Deve entrar nisso casar-se com uma atriz como Carla Bruni; ela rende votos na velha França de tão vetusta memória artística e intelectual.

A questão, porém, parece muito menos política do que cultural ou decisivamente artística- “estética”- digamos. A distância que separa um grande artista do cantor eventual do sucesso do momento – que se vai esvair como o galope da “Egüinha Pocotó”, que até ontem encantava as crianças talvez seja mais evidente hoje do que foi na história. Os impressionistas mobilizaram milhares de parisienses a ridicularizá-los. Pode-se concluir, positivamente que, ao menos, na época, havia tempo entre alguns populares, para além da dança nos logradouros públicos ou para o banho num ponto qualquer do rio Sena. Mesmo os modernistas de 22, em São Paulo, mesmo eles, parecem ter mobilizado mais gente do que o imaginável, até para invectivá-los. Por menos que a Semana de Arte Moderna tenha mexido com os paulistanos, os jornais não eram ainda clubes fechados, infensos ao que acontece nas ruas. Ao falarem bem ou mal da Semana, eles encontravam leitores que bem ou mal tinham opiniões bastante seguras – mais pertinentes, quem sabe, do que sobre o “Rock in Rio”. Mas o rock não é importante?

Esta talvez seja a grande questão: o choro convulsivo dos torcedores do time prestes a cair para a segunda divisão, atende a demandas bem mais convincentes para o nosso mundo, do que a morte de milhões de pessoas na Eritréia ou sob os bombardeios da Otan na Libia. E o fato de o presidente Barack Obama ser um repetidor das teses mais conservadoras e mais evidentes, não convence quase ninguém de que seja um estadista mais que previsível, num mundo cada dia menos previsível.

A questão seria também essa. São poucos os que tentam o risco da originalidade diante da comodidade do óbvio. O rock em si não parece ser ruim por reunir tantos simpatizantes, mas por omitir todo o resto: a escuta atenta, o movimento só embalado pela repetição infinda – muito pouco, na verdade, em função de uma possível riqueza rítmica, melódica, harmônica e por aí afora. É uma celebração só. Há uma relação extremamente coerente entre os espetáculos de rock com as missas e cultos em que padres e sacerdotes cantam as loas a Deus. Fica claro que o Divino merece pouco da inteligência e da inventiva humanas. Bach talvez não despertasse entre os fiéis menos cultos, que o escutavam nas igrejas luteranas de seu tempo, as incontáveis emoções que sua música ainda hoje desencadeia. Mas o repertório artístico não se simplificava para alcançar os camponeses analfabetos. A democracia não se fazia para atender o que o homem comum pedia, mas para cumulá-lo com a riqueza de que certamente ele precisava. O que se tem na atualidade é exatamente o contrário, um tema até ontem, exaustivamente discutido pela filosofia – mas a bom tempo, também na atualidade, igualmente esquecido por boa parte da filosofia.

Claro que não mudaram nem os filósofos, muito menos a filosofia. O que chamamos de “democratização da cultura” parece só ter sentido se os “filósofos” – e “artistas” – acolherem esse tipo de consideração; no mais, porém, os que não a acolhem, desmerecerão em princípio qualquer ribalta. Alguém já atentou que só são chamados aos jornais e televisões, certos tipos de sociólogos, escritores e artistas que, em geral, repetem o que a mídia quer. E que os que não recheiam o óbvio com contradições, são os que justamente a mídia nunca irá recorrer?

Das novelas e dos filmes de sucesso, pode-se deplorar o maniqueísmo – mas, nesse caso, como garantir seu sucesso?

A pergunta estende-se a tudo mais. A crise econômica que se abate sobre o mundo parece encontrar aqui e ali, algumas formulações heterodoxas – mas, no todo, as respostas acabam esbarrando, não no infindável aparente do repertório dos articulistas de jornais, que pontificam há anos sobre economia e que agora não têm nada a declarar -, e sim na evidência de que os políticos mandam muito pouco. Mais que tudo, afigura-se o comando real – dos que não têm mandato para decidir – mas que têm nos mandatários os seus prepostos. Que, claro, só podem decidir se nos bastidores dos verdadeiros mandantes, houver antes um entendimento.

Parece exatamente o mesmo na cultura artística. Não há crítico ou artista que ouse dizer que os rumos da grande cultura patina em si mesmo: quase ninguém arriscou afirmar, dos compradores de arte, principalmente chineses, que pagar 300 mil dólares por um patibulozinho – sim, uma forca em miniatura, feita com cordões e pedacinhos de madeira à guiza de patíbulo – que teriam caído num embuste; de que não compraram obra de arte alguma, mas uma bobagem. No entanto, à esparrela, juntaram-se dezenas de incautos que receberam, com satisfação, o status de entendedores de arte. Todos sabem, em suma – a começar pelo povo que está tão distante da grande arte pela confusão que todos aceitam continuar patrocinando – que certas instalações das bienais acrescentam ao mundo apenas um pouco mais de pobreza intelectual. E que a ninguém é dado dizer que o mundo está nu. Qualquer semelhança com os especuladores do mercado financeiro parece não ter absolutamente nada de coincidência.

Essa certamente a diferença dos tempos de Bach, Beethoven ou mesmo Villa_Lobos. Despendem-se horas a fio a se discutir a crise como se ela fosse diferente dos mecanismos que levam os homens à guerra; ou ao absurdo dos espetáculos televisivos aos quais cunhamos o adjetivo “popular”. Platão descria do processo democrático. Considerava que o mais importante do que escolher governos democráticos, era ter como entregar o processo da governança a filósofos – eles saberiam gerir a coisa pública, incluindo-se aií certamente, as atividades artísticas. Platão não contava com uma palavra – a mídia – justamente a “mediar” as escolhas da população para o resto.

Chegamos a isso nos dois últimos séculos. Talvez se explique que, como dos salões oficiais, de certos concertos e de tudo o mais , incluindo-se a questão econômica, tema-se sempre pelo pior. Ou pelas soluções ditadas, não pelo povo, que cada vez sabe menos, mas pelos únicos que alguns de nós sabem, que sabem. E que jamais incluirão o povo em suas soluções.

Há anos, a Bienal de São Paulo reuniu artistas e críticos para uma discussão justamente a respeito do futuro da mostra. Ninguém conseguiu convencer ninguém de que o modelo em si já estava acabado. Pode-se extrapolar o mesmo sobre o sistema e a sua crise global. Ninguém nas altas rodas ousa dizer que os mesmos agentes que causaram a crise não deveriam estar a geri-la, muito antes pelo contrário. Mas essa é a questão resolutamente proibida no debate. Concluir qualquer coisa além dessa orientação, é admitir que as pessoas não cultas, talvez tenham algo a dizer. Mas, nesse caso, há o risco de se cair numa democracia real e, por extensão, na realidade do sistema. Um dia ele irá transparecer, é inevitável: o problema são os custos disso.

Muita gente que foi à Bienal de Veneza este ano, estacou na entrada e se recusou a ver o resto da mostra. Os organizadores da exposição tiveram a feliz idéia de pendurar na parede três grandes telas do maneirista Jacobo Tintoretto: era o bastante para que as pessoas voltassem satisfeitas para casa. A verdade de Tintoretto convencia-os de que não valia a pena arriscar-se às muitas bobagens que a mostra de Veneza lhes imporia. A realidade tem, de fato, algo de solerte: ela se impõe, a despeito das teorias aparatosas que, durante certo tempo, convencem os desavisados e os incultos de que não sabem nada. Então, um dia, o começo de conversa é Tintoretto. É quando cessam tudo o que as antigas Musas cantam.

Enio Squeff é artista plástico e jornalista.