OPINIÃO
A sociedade está em constante movimento. Durante muito tempo vingaram, na seara do trabalho, as ideias napoleônicas, a prevalência da liberdade de contratar. A relação jurídica prestador-tomador de serviços fazia-se regida pelo Direito Civil. Então, ante mercado desequilibrado, com oferta excessiva de mão de obra e escassez de fonte de subsistência — própria e da família —, o resultado era único: a aceitação das condições oferecidas por quem desejava a força de trabalho. Na era Vargas, e graças à sensibilidade social do primeiro ministro do Trabalho, Lindolfo Collor, concluiu-se que a correção de rumo haveria de passar por legislação especial, com intervenção marcante e decisiva do Estado na relação jurídica.
Exposição de motivos, elaborada pelo jurista Alexandre Marcondes Filho, a partir de trabalho de fôlego de comissão de doutos, veio a respaldar a edição do Decreto-Lei nº 5452, de 1º de maio de 1943, mediante o qual foi aprovada a Consolidação das Leis do Trabalho.
Na reunião da legislação esparsa, introduzidas modificações civilizatórias, prevaleceram o patriotismo e a inspiração social. Conforme salientado, a Consolidação surgiu harmônica com o estágio do desenvolvimento jurídico. Mostrou-se consequência do contexto, dando-se ênfase à proteção do trabalhador, indiscutivelmente a parte mais fraca. Observou-se a precedência das normas em relação a ajustes, surgindo preocupação com a jornada dos menores. Admitiu-se, observadas condições mínimas, o acordo tácito, ou seja, a prática notada no local da prestação dos serviços, em última análise, a realidade factual. Deu-se ênfase à preservação do sadio ambiente de trabalho, com a obrigatoriedade de uso, pelo trabalhador, dos equipamentos de defesa pessoal, fornecidos pelo tomador dos serviços e aprovados pelas autoridades de higiene do trabalho. Cumpre observar o teor do item 84 da exposição de motivos.
“Ao pedir a atenção de Vossa Excelência para essa notável obra da construção jurídica, afirmo, com profunda convicção e de um modo geral, que, nesta hora dramática que o mundo sofre (Segunda Guerra Mundial), a Consolidação constitui um marco venerável na história de nossa civilização, demonstra a vocação brasileira pelo direito e, na escureza que envolve a humanidade, representa a expressão de uma luz que não se apagou”.
Em 1943, a população brasileira era de 41 milhões de almas. Então, tinha-se o desequilíbrio, consideradas oportunidades para prover a subsistência.
O Estado interveio com normas imperativas. O Direito do Trabalho foi um avanço civilizatório.
Cabe indagar: o quadro notado em 1943 foi suplantado a ponto de dispensar o trato especial da relação jurídica empregado-empregador?
Vem à memória o chavão da Copa do Mundo de futebol de 1970: “Noventa milhões de brasileiros em ação, para frente Brasil…”.
O censo demográfico de 2020 revelou a existência de pouco mais de 200 milhões de habitantes no Brasil continental, de oito milhões e meio de quilômetros quadrados. Ocorreu crescimento populacional geométrico. A economia como um grande todo não o acompanhou. Ante o fenômeno, há de concluir-se pela impossibilidade social de ter-se o afastamento das regras protetivas de trabalho.
A vida econômica é impiedosa. Não se dá um passo sem o acionamento do bolso, falhando o Estado na prestação de serviços essenciais — educação, moradia, saúde, transporte e segurança pública. É balela pensar que a deficiência marcante do mercado é amenizada pela economia informal.
Mais do que nunca surge a valia das normas. Os princípios que as norteiam, entre os quais sobressai o da imperatividade, colocando em segundo plano a manifestação da vontade pelo empregado, no que tende a sucumbir, optando pelo mínimo existencial, não podem ser afastados, sob pena de retrocesso social, confirmando-se a máxima segundo a qual a corda sempre se rompe na parte mais frágil.
É fácil falar em reforma trabalhista, fechando os olhos aos considerados menos afortunados. É fácil potencializar a óptica desenvolvimentista, considerada a liberdade de mercado. A visão é míope, presente o bem-estar do trabalhador. O argumento da existência de elevados encargos sociais não conduz à fragilização das regras trabalhistas. Direciona, sim, à revisão da política fiscal, aplacando-se a fúria arrecadadora. Diziam os antigos que a virtude está no meio-termo. Que essa verdade frutifique, não se retroagindo socialmente. A existência de dias melhores pressupõe a observância da organicidade do Direito.
Marco Aurélio Mello é ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal e presidente do Instituto UniCeub de Cidadania.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2021-dez-15/marco-aurelio-mello-flexibilizacao-direito-trabalho