“Em várias conversas com pessoas que trabalham com as migrações e no encontro pelos 50 anos do Congresso Indígena em San Cristóbal de las Casas, fez-se menção a como o chamado crime organizado sequestra pessoas para que realizem trabalhos em condições análogas à escravidão. Embora a modalidade tenha sido colocada em prática por quadrilhas criminosas, é o modo como o sistema vem atuando na ‘quarta guerra mundial’ e na acumulação por expropriação”. A reflexão é de Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio em artigo publicado por Desinformémonos, 14-10-2024. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Em várias conversas com pessoas que trabalham com as migrações e no encontro pelos 50 anos do Congresso Indígena em San Cristóbal de las Casas, fez-se menção a como o chamado crime organizado sequestra pessoas – tanto migrantes como mexicanos – para que realizem trabalhos em condições análogas à escravidão. Embora a modalidade tenha sido colocada em prática por quadrilhas criminosas, é o modo como o sistema vem atuando na “quarta guerra mundial” e na acumulação por expropriação.
Com relação aos migrantes, um membro da Voces Mesoamericanas garantiu que muitas delas são sequestradas por grupos de traficantes para realizarem trabalhos forçados na embalagem de drogas ou na limpeza, e depois desaparecem se não conseguirem escapar da escravidão. É claro que não recebem qualquer remuneração, e as suas condições de vida são miseráveis.
Ouvi algo semelhante da boca de seminaristas de Chicomuselo, onde está sediada a mineradora canadense Blackfire Exploration, que explora ilegalmente a barita. Jovens foram sequestrados e escravizados por gangues armadas, provavelmente em conivência com a mineradora, pois seria a forma de refrear os protestos da população, e dada a passividade do exército que tem um batalhão na área e que quando intervém, o faz contra a população.
A população de Chicomuselo destaca que “em 2017 a empresa canadense fez uma alteração no título de concessão para agora se chamar Barita de Chiapa’ e, com isso, reiniciar a exploração ilegal do mineral no ‘ejido’ de Santa María” (Radio Zapatista, 10 de janeiro de 2023).
Os grupos paramilitares, impossíveis de diferenciar do crime e do tráfico de drogas, decidiram expulsar centenas de famílias face à crescente resistência à mineração. Os moradores “acusaram as forças armadas de entraram no ‘ejido’ e ‘removeram as cercas’ que os seus moradores instalaram ‘para impedir a entrada dos cartéis’ e como forma de se protegerem ‘da crescente violência’ do crime organizado” (Desinformémonos, 17 de janeiro de 2024).
Além disso, os habitantes dos municípios de Chicomuselo, Socoltenango e La Concordia denunciaram que “estão fugindo devido à entrada das forças armadas” e criticaram o fato de que os militares violam a sociedade civil em vez de agirem contra os grupos criminosos: “A população denuncia o fato de não resguardarem os locais onde estão os grupos criminosos e não liberarem as estradas que estão bloqueadas há mais de dois anos, mas, em vez disso, entrarem nas comunidades onde as pessoas estão organizadas para cuidar dos seus ejidos”, sublinhou a população em um comunicado.
Em suma, os fatos são muito claros para quem quiser compreendê-los. Uma empresa mineradora é protegida pelas forças armadas do Estado e por grupos paramilitares/criminosos organizados, que agem contra a população para facilitar a expropriação.
A partir daqui pretendo tirar algumas conclusões.
A primeira é que não existe separadamente o crime organizado, nem o tráfico de drogas, nem as gangues paramilitares, mas todos eles são um só com o aparato armado do Estado-nação. Claro que existem nuances e diferenças, mas todas as quadrilhas trabalham para o capitalismo, neste caso para a mineradora. Eles traficam pessoas ou drogas, ou o que quer que seja, fazem parte da acumulação por expropriação a tal ponto que estamos diante de um “Estado mafioso” ou de um “Estado que existe para a expropriação”.
Toda a publicidade mediática sobre os vários cartéis adversários (que realmente existem e se confrontam), assim como o fato de o exército vigiar e pacificar, encobre a realidade de um negócio e de um sistema que não pode existir senão assassinando, fazendo desaparecer e deslocando famílias e comunidades inteiras, em muitas áreas e regiões deste planeta.
Em segundo lugar, o que sabemos sobre Chicomuselo (e muitos outros lugares onde o capital retirou o seu disfarce democrático), não é muito diferente do que está acontecendo em Gaza e em outras partes do mundo. Os lugares e os nomes das empresas predatórias mudam; outros são os Estados e os nomes das forças armadas; mas é a mesma guerra de expropriação contra os povos.
A escravidão a que estão sujeitas milhares de pessoas, especialmente os jovens, é a forma como o capital está disposto a se relacionar com os que estão abaixo, porque são um obstáculo ao seu modo de acumulação. Assim como se pretende despovoar Gaza, a Cisjordânia e parte do Líbano através de um genocídio para estabelecer colônias israelenses, no nosso continente são cometidos assassinatos para liberar territórios para diversas formas de expropriação, sejam de mineração, grandes obras ou tráfico de seres humanos e drogas.
Em terceiro lugar, não são guerras diferentes, mas uma única guerra com diferenças de intensidade e de quem as perpetra no terreno. Uma das tarefas urgentes é remover o véu que cobre os crimes do capital. Um desses véus é não falar sobre a escravidão realmente existente. Outro é mencionar o progressismo quando se deveria dizer capitalismo, guerra contra os povos ou contrainsurgência envolta em votos. A solidariedade com Gaza é fundamental, mas sem esquecer o que está acontecendo em Chicomuselo, em toda a zona fronteiriça de Chiapas, em grande parte da América Latina, para que esta solidariedade não seja unilateral e pontual, mas um modo de ser antissistêmico das nossas organizações.
IHU-UNISINOS