O cenário internacional pode derrubar o preço do seu café. Não estamos falando do tarifaço de Donald Trump, tampouco do valor monetário do produto, embora o tema abordado a seguir revista-se de inquestionável impacto econômico.
Trata-se da ratificação, pelo Brasil, do Protocolo à Convenção sobre Trabalho Forçado da OIT (29) e suas repercussões no custo humano da exploração de atividades econômicas em um contexto de globalização e digitalização do capitalismo.
A título de exemplo, nos últimos dez anos, o cultivo de café foi o setor com o maior número de trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão (1.844, o que equivale a 12,2% do total), segundo dados da plataforma SmartLab.
O Protocolo de 2014 aborda lacunas na implementação da Convenção e reafirma que medidas de prevenção, proteção e reparação são necessárias para alcançar a erradicação efetiva e sustentada do trabalho escravo.
Os Estados ratificantes comprometem-se com a adoção de medidas voltadas à prevenção e que devem incluir, entre outras, o fortalecimento dos serviços de inspeção do trabalho e a abordagem das causas e fatores que aumentam os riscos do trabalho escravo (como as raízes históricas de colonialismo e escravidão, refletidas nas atuais chagas do racismo e das profundas desigualdades socioeconômicas).
Outro ponto importantíssimo do Protocolo é o apoio dos Estados à devida diligência dos setores público e privado para prevenir e responder aos riscos de trabalho escravo.
Trata-se de conceito igualmente previsto em outras normas internacionais não ratificáveis (ou “soft law”), como a Declaração da OIT sobre Empresas Multinacionais e Política Social, as Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais sobre Conduta Empresarial Responsável e os Princípios da ONU para Empresas e Direitos Humanos.
A ratificação do Protocolo simboliza, portanto, importante avanço normativo, uma vez que se trata da primeira norma internacional de caráter cogente a abordar expressamente a devida diligência.
Ademais, cumpre destacar o recente reconhecimento internacional do Brasil como País Pioneiro da Aliança 8.7, uma parceria global lançada pela OIT, em 2017, com a finalidade de alinhar os esforços dos atores sociais para o alcance da Meta 8.7 da Agenda 2030 da ONU, que visa à erradicação do trabalho escravo contemporâneo e do trabalho infantil e que se insere no contexto do ODS 8 – Trabalho Decente e Crescimento Econômico.
Uma das etapas do processo de candidatura ao título consistiu na elaboração do Roteiro Estratégico, no qual o Brasil declarou, como uma de suas prioridades para a erradicação do trabalho escravo, o “controle de cadeias produtivas”.
É preciso, no entanto, adotar uma visão ampliada do instituto, de modo a abranger não apenas as próprias atividades da empresa, mas também as operações, produtos e serviços de seus parceiros comerciais relacionados com a produção de bens ou a prestação de serviços daquela.
Nesse sentido, “cadeia de valor” consubstancia categoria que melhor se alinha aos parâmetros mais avançados de proteção dos direitos humanos, incluindo as normas internacionais mencionadas anteriormente e a Diretiva 1.760/2024 da União Europeia, sobre devida diligência em sustentabilidade corporativa.
A respeito da importância dessa responsabilização social no enfrentamento ao trabalho escravo, convém ressaltar que, para além do cultivo, a cadeia de valor do café abrange diversas outras etapas, como processamento, armazenamento, distribuição, torrefação, moagem e comercialização, sobretudo internacional – o Brasil é o maior exportador mundial de café.
Em 2023, o governo federal instituiu grupo de trabalho interministerial para a elaboração da proposta de uma Política Nacional de Direitos Humanos e Empresas. Espera-se que a proposta abranja todos os trabalhadores e todos os setores da economia, estabelecendo o dever empresarial de devida diligência em toda a cadeia de valor, a ser cumprido por meio de um processo contínuo de identificação, prevenção e mitigação de danos potenciais ou reais aos direitos humanos.
Nesse cenário, a ratificação do Protocolo à Convenção 29 da OIT, somada a uma sólida Política de Direitos Humanos e Empresas, além de conferir legitimidade substancial ao título de País Pioneiro da Aliança 8.7, certamente deixará o seu café mais doce.
Helena Martins de Carvalho é assessora jurídica no TST. Mestra em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Embaixadora das Normas Internacionais do Trabalho certificada pelo Centro Internacional de Formação da OIT. Autora do livro “Varrendo para Cima do Tapete: da invisibilidade social à regulamentação jurídica do trabalho na limpeza urbana”
DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/a-ratificacao-do-protocolo-a-convencao-29-da-oit/