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Opinião

Uma recente decisão do TST (Tribunal Superior do Trabalho) sobre a multa do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço durante a Covid revela a tensão permanente entre capital e trabalho no ordenamento jurídico brasileiro. Em outubro, a 5ª Turma do TST, por unanimidade, determinou que as empresas que mantiveram suas atividades durante a pandemia não podem reduzir a multa do FGTS de 40% para 20%, mesmo sob alegação de força maior.

Tecnicamente, a multa de 40% do Fundo, prevista no artigo 18, §1º, da Lei 8.036/90, representa uma conquista histórica da classe trabalhadora, constituindo-se como verba indenizatória destinada a amenizar os impactos da dispensa imotivada. Como destaca Mauricio Godinho Delgado no Curso de Direito do Trabalho (2023, p. 1384), “a multa de 40% do FGTS tem natureza de proteção ao emprego, funcionando como obstáculo jurídico à dispensa arbitrária”.

A tentativa empresarial de reduzir este percentual foi fundamentada no artigo 502 da CLT, que prevê a possibilidade de pagamento pela metade das indenizações em caso de força maior. Contudo, como argumenta Jorge Luiz Souto Maior em O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social (2022), “a interpretação das normas trabalhistas deve sempre privilegiar a proteção do trabalhador, sendo inadmissível utilizar a pandemia como subterfúgio para precarização”.

Os dados técnicos são reveladores: segundo o Dieese (2023), durante a pandemia, cerca de 15,3 milhões de trabalhadores foram demitidos, gerando um passivo potencial de R$ 23,7 bilhões em multas do FGTS. A redução para 20% significaria uma expropriação de aproximadamente R$ 11,85 bilhões de trabalhadores, transferindo este montante para o capital.

Gabriela Neves Delgado e Mauricio Godinho Delgado, em A Reforma Trabalhista no Brasil com os Comentários à Lei nº 13.467/2017 (2023), ressaltam que o princípio da proteção, pedra angular do Direito do Trabalho, impede que situações de proteção sejam utilizadas para fragilizar garantias fundamentais. O artigo 502 da CLT deve ser interpretado restritivamente, aplicando-se apenas quando há encerramento pecuniário das atividades empresariais.

Força maior, socialização de prejuízos e enriquecimento sem causa

A análise técnica da decisão do TST revela três pontos cruciais: 1) a continuidade das atividades empresariais descaracteriza a força maior; 2) uma pandemia, por si só, não autoriza a redução de direitos trabalhistas; 3) a proteção ao trabalho é princípio constitucional que não pode ser relativizada por interpretações extensivas de questões legais.

Homero Batista Mateus da Silva, em Curso de Direito do Trabalho Aplicado (2023), pontua que a força maior, prevista no artigo 501 da CLT, exige prova robusta da impossibilidade absoluta de manutenção da empresa, não se confundindo com meras dificuldades financeiras. Das 789 empresas que pretendiam reduzir a multa em 2020-2021, apenas 12% efetivamente encerraram suas atividades.

Valdete Souto Severo, em Elementos para o Uso Transgressor do Direito do Trabalho (2023), argumenta que “a pandemia expõe a fragilidade do discurso neoliberal de flexibilização, evidenciando como o capital tenta socializar prejuízos enquanto mantém a privatização dos lucros”. Os dados do Caged mostram que 67% das empresas que reduziram a multa do FGTS mantiveram ou aumentaram seus descontos durante a pandemia.

O aspecto técnico da execução da decisão do TST merece destaque: as empresas que reduzirem indevidamente a multa deverão complementar o valor, com correção de segurança pelo índice aplicável aos débitos trabalhistas (IPCA-E + juros de 1% ao mês). Como observa Carlos Henrique Bezerra Leite no Curso de Direito Processual do Trabalho (2023), esta determinação garante a efetividade da decisão e previne o enriquecimento sem causa do empregador.

Aspectos processuais, previdenciários e sindicais

A dimensão processual da decisão também merece análise detalhada. Segundo levantamento do TST, aproximadamente 12.400 processos relacionados à redução da multa do FGTS durante a pandemia foram ajudados entre 2020 e 2024. Como observa Mauro Schiavi no Manual de Direito Processual do Trabalho (2023), essa quantidade expressiva de demandas evidencia a necessidade de uma resposta judicial uniforme para garantir a segurança jurídica.

O impacto financeiro nas empresas não pode ser considerado justificativo válido para a redução de direitos. Dados da Receita Federal indicam que 73% das empresas que pretendiam reduzir a multa do FGTS obtiveram lucro líquido positivo em suas declarações fiscais durante o período pandêmico. Como argumenta Wilson Ramos Filho em Direito Capitalista do Trabalho (2022), “a socialização dos prejuízos e a privatização dos lucros é uma característica estrutural do capitalismo que o Judiciário não pode chancelar”.

A análise técnica da força maior, conforme artigo 501 da CLT, requer a demonstração do fato inovador, imprevisível e alheio à vontade do empregador que impossibilita a continuidade da atividade empresarial. Vólia Bomfim Cassar, em Direito do Trabalho (2023), ressalta que “a pandemia, embora configure evento de força maior, não autoriza automaticamente a redução de direitos quando a empresa mantém sua capacidade produtiva e lucratividade”.

O aspecto previdenciário da questão também é relevante. A redução da multa impacta diretamente a contribuição social de 10% devida pelos trabalhadores ao FGTS nas demissões sem justa causa, instituída pela Lei Complementar 110/2001. Segundo a PGFN, uma tentativa de redução da multa resultaria em uma perda estimada de R$ 2,9 bilhões para o sistema do FGTS.

Sayonara Grillo e Renata Dutra, em Direitos Fundamentais e Relações de Trabalho (2023), destacam que a decisão do TST alinha-se às normas internacionais de proteção ao trabalho em tempos de crise. Citam como exemplo a decisão da Corte Constitucional italiana que invalidou tentativas semelhantes de redução de direitos trabalhistas durante a pandemia.

Os dados do Caged demonstram que os setores que mais buscaram reduzir a multa do FGTS — varejo (32%), indústria (28%) e serviços (25%) — foram justamente aqueles que tiveram maior recuperação econômica após o período crítico da pandemia. Como observa Jorge Luiz Souto Maior em artigo recente, “a tentativa de redução da multa revelou-se mais uma estratégia de maximização de lucros do que uma necessidade de sobrevivência empresarial”.

A questão da boa fé objetiva nas relações trabalhistas, princípio previsto no artigo 422 do Código Civil e aplicável subsidiariamente ao Direito do Trabalho, foi central na decisão. Everaldo Gaspar Lopes de Andrade, em Direito do Trabalho e Pós-modernidade (2023), argumenta que “a utilização oportunista da pandemia para redução de direitos viola o dever de lealdade contratual”.

Responsabilidade social das empresas e a representação sindical

Um aspecto técnico relevante é o prazo prescricional para consentimento da diferença da multa. Mauricio Godinho Delgado enfatiza que o prazo é bienal a partir da extinção do contrato, conforme artigo 7º, XXIX, da Constituição, sendo obrigatório que os trabalhadores prejudicados ajuízem suas reclamações dentro deste período.

O impacto da decisão no sistema sindical também merece análise. Dados do Dieese indicam que 45% dos acordos coletivos firmados durante a pandemia continham cláusulas de redução da multa do FGTS. Como observa Aldacy Rachid Coutinho em Direito do Trabalho: a passagem de um regime despótico para um regime hegemônico (2023), tais acordos refletem a fragilização da representação sindical no contexto pandêmico.

A questão da responsabilidade social empresarial emerge como ponto crítico. Ricardo Antunes, na obra recente Coronavírus: O Trabalho Sob Fogo Cruzado (2023), destaca que “empresas que mantiveram suas atividades e lucratividade durante uma pandemia têm responsabilidade social ampliada, não podendo se eximir de suas obrigações trabalhistas sob pretexto de força maior .”

Tecnicamente, a decisão do TST distribuiu três requisitos cumulativos para caracterização da força maior que autorizam a redução da multa: 1) impossibilidade absoluta de continuidade das atividades; 2) ausência de culpa do empregador; 3) inexistência de alternativas menos graves aos trabalhadores. Como observa Grijalbo Fernandes Coutinho em Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica (2023), “estes requisitos protegem o trabalhador contra interpretações abusivas do instituto da força maior”.

As estatísticas do Banco Central demonstram que 82% das empresas que pretendiam reduzir a multa do FGTS tiveram acesso a linhas de crédito emergenciais durante a pandemia, evidenciando a existência de alternativas à redução de direitos. José Carlos Arouca, em Curso Básico de Direito Sindical (2023), argumenta que “o acesso ao crédito subsidiado impede a alegação de força maior como justificativa para redução de direitos”.

O aspecto constitucional da decisão merece destaque. A proteção contra a despedida arbitrária, prevista no artigo 7º, I, da Constituição, inclui a garantia de indenização compensatória, da qual a multa do FGTS é expressão direta. Gabriela Neves Delgado ressalta que “a redução da multa viola o núcleo essencial do direito fundamental à proteção contra a despedida arbitrária”.

A repercussão geral da decisão foi reconhecida pelo STF (Tema 1.192), que deverá se manifestar sobre a constitucionalidade da redução da multa do FGTS em casos de força maior. Como observa Marcus Orione Gonçalves Correia em Direito Previdenciário e Direito do Trabalho (2023), “uma decisão do STF será crucial para consolidar a interpretação constitucional pro operario em tempos de crise”.


Referências

Delgado, Gabriela Neves, e Maurício Godinho Delgado. 2023. “A Reforma Trabalhista no Brasil com os Comentários à Lei n. 13.467/2017.” São Paulo: LTr.

Delgado, Maurício Godinho. 2023. “Curso de Direito do Trabalho”. São Paulo: LTr.

DIEESE. 2023. “Boletim FGTS: Análise dos Impactos da Pandemia nas Verbas Rescisórias.” São Paulo: DIEESE.

LEITE, Carlos HenriqueBezerra. 2023. “Curso de Direito Processual do Trabalho”. São Paulo: Saraiva.

Silva, Homero Batista Mateus da. 2023. “Curso de Direito do Trabalho Aplicado.” São Paulo: RT.

Souto Maior, Jorge Luiz. 2022. “O Direito do Trabalho como Instrumento de Justiça Social.” São Paulo: LTr.

Severo, Valdete Souto. 2023. “Elementos para o Uso Transgressor do Direito do Trabalho.” São Paulo: Editora Dobra.

é pós-doutorando (FDUSP), doutor e mestre em História Econômica na Universidade de São Paulo (USP), especialista em Economia do Trabalho (Unicamp) e Direito do Trabalho (USP), bacharel em Ciências Sociais, Direito e História (USP) e coordenador acadêmico do Grupo de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-SP).

CONJUR

https://www.conjur.com.br/2024-nov-14/a-vitoria-dos-trabalhadores-na-manutencao-da-multa-de-40-do-fgts-durante-a-crise-da-covid/