NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

OPINIÃO

Por Leandro Augusto de Araujo Cunha Teixeira Bueno e Marcella Queiroz de Castro

A Grande Transformação, de Karl Polanyi (2000), descreve a estruturação do capitalismo e da economia de mercado a partir da absorção de três elementos como mercadoria: terra, dinheiro e trabalho. Nesse sentido, a mobilidade dos trabalhadores, alimentada pela emergência dos centros urbanos e pelo fim da política de cercamentos, permitiu o nascedouro do mercado de trabalho, com suas mazelas e virtudes.

 

Atualmente, à vista do desenvolvimento tecnológico, nunca o mundo foi tão aberto à livre circulação de trabalhadores, tanto pela via do trabalho remoto, como pela movimentação física, cujo ápice se dá com o nomadismo digital, este acelerado no cenário pandêmico.

 

Embora se verifique que a movimentação de trabalhadores tende a ser cada vez mais livre, em sentido contrário, determinados acordos firmados no mundo corporativo, conhecidos como “no poach”, “não aliciamento” ou “não agressão”, embora estejam longe de promover um retrocesso às relações laborais do século 20, interferem de modo direto e relevante na mobilidade da força laboral.

 

Trata-se de pactos entre concorrentes, cada vez mais comuns, limitadores da competição pelo mercado de trabalho, voltados a evitar que empregados sejam recrutados por concorrente, ou acordos que definem padrões salariais benéficos às empresas contratantes e que diminuam o poder de negociação dos trabalhadores.

 

Esse tema é atualmente objeto de discussão no âmbito do Cade, em especial, a partir da análise pela Superintendência-Geral nos processos administrativos nº 08012.003021/2005-72 e nº 08700.004548/2019-61.

 

No supracitado PAD nº 08012.003021/2005-72, a Superintendência Geral do Cade iniciou procedimento para apurar suposto cartel, ocorrido possivelmente no ano 2000 até 2009, em licitações públicas e privadas destinadas à contratação de serviços de tecnologia da informação em vários Estados do país, mas, especialmente, no Distrito Federal. Para além da suposta fixação de preços e combinação de condições e vantagens ilícitas nos procedimentos licitatórios, a superintendência geral também apurou que “os membros do alegado cartel teriam ainda um suposto acordo de não contratação dos funcionários uns dos outros, acordo esse que poderia apresentar efeitos anticompetitivos para o mercado de trabalho de prestação de serviços de tecnologia da informação” (Trecho da Nota Técnica da SG – ID SEI nº 0081637).

 

Quanto ao ponto, a SG entendeu que o acordo de não realizar ofertar de emprego para funcionários entre as empresas impunha condições artificiais no mercado de trabalho. Essa política de “respeitar” o funcionário concorrente, no entendimento da SG, teria o objetivo anticoncorrencial de manter os salários de seus empregados mais baixos do que seria verificado em um ambiente de competição efetiva. O procedimento administrativo, atualmente, pende de julgamento e encontra-se em instrução probatória.

 

Não somente esse processo no Cade aguarda julgamento sobre os possíveis efeitos anticoncorrenciais dos acordos explicados supra. No processo que ficou conhecido como “Cartel dos RHs”, o Cade também investiga a formação de carteis entre departamentos de recursos humanos. No mesmo sentido do processo que investiga acordos de não agressão no ramo da TI, o processo nº 08700.004548/2019-61 envolve investigação de grandes farmacêuticas e fornecedoras de medicamentos hospitalares que, supostamente, teriam trocado informações sensíveis de seus trabalhadores, como condições de contratação e remuneração, em tentativa de manterem os preços de contratação mais baixo.

 

Advindo de acordo de leniência firmado entre a Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (SG/Cade), o Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP) e pessoas jurídicas como a Getinge do Brasil Equipamentos Médicos Ltda, o processo conhecido como “Cartel dos RHs” busca apurar conduta ilícita concorrencial que expôs a risco o “mercado de provimento de mão de obra para a indústria de produtos, equipamentos e serviços correlatos para cuidados com a saúde (healthcare), com destaque para o envolvimento de empresas sediadas na região metropolitana da cidade de São Paulo” (Trecho do anexo da Nota Técnica da SG – ID SEI nº 0877689). Em sua nota deflagradora do processo administrativo, a SG ressalta como os ditames constitucionais de livre concorrência e repressão ao abuso econômico também se aplicam ao campo laboral, pois, “de forma similar ao modo como as empresas competem para que os consumidores comprem seus produtos, elas também concorrem para contratar ou reter seus empregados” (Trecho do anexo da Nota Técnica da SG – ID SEI nº 0877689).

 

Embora as investigações ainda estejam em fases iniciais, a mera deflagração do procedimento investigativo indica a potencialidade de que se decida pela ocorrência de um ilícito concorrencial. O que leva à reflexão se o mercado de trabalho deve ser objeto de prevenção e repressão pelo Direito da Concorrência, aos moldes da Lei nº 12.529 de 2011.

 

Conforme explicam Jordão e Silva, esses acordos de não agressão visam a principalmente (1) resguardar investimentos realizados pela empresa no treinamento e formação do trabalhador; (2) proteger capital alocado em tecnologia, inovação e propriedade industrial, evitando que subordinados compartilhem com o novo empregador informações sensíveis do concorrente; e (3) reduzir custos dos empregadores rivais mediante a fixação de bases remuneratórias. Acabam, por fim, dando azo a barreiras a novos entrantes na disputa pelo mercado de trabalho, na medida em que impõem reduzem a mobilidade laboral impondo restrições à contratação livre de trabalhadores [1].

 

Para além disso, tais acordos são responsáveis por reduzir o bem-estar do próprio trabalhador, ao diminuir sensivelmente as oportunidades de colocação e promover artificialmente a estagnação de salários. Nesse sentido, são percebidos como práticas coibidas pela legislação antitruste, em especial, por força do artigo 36, I, III e IV da Lei nº 12.529/2011.

 

Em 2008, o saudoso professor Luis Fernando Schuartz alertou-nos sobre a impermeabilização e “desconstitucionalização metodológica” do direito de defesa da concorrência brasileiro, apontando um certo abandono da argumentação baseada em princípios e regras constitucionais, inversamente proporcional à visão do tribunal administrativo cada vez mais ligada a critérios econômicos importados de outros ordenamentos:

 

“A teoria oficial do direito de defesa da concorrência brasileiro, cuja forma pode ser, abstratamente, reconhecida em três características apresentadas acima, quais sejam, (i) a estratégia top-down de aquisição de premissas normativas, comandada pela ciência econômica; (ii) o consequencialismo forte; e (iii) a elevada capacidade de diferenciação interna tendo em vista a preservação da diferença entre direito e ciência aplicada, é uma teoria que se construiu e desenvolveu à margem da ou com indiferença às Constituições vigentes desde sua gestação” (grifou-se) [2].

 

A despeito do reconhecimento de que a avaliação econômica é relevante à tomada de decisão no âmbito de todo o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, não de somenos importância devem ser os aspectos constitucionais e legais vinculados à casuística objeto de apreciação do Cade.

 

Há, em relação aos acordos referenciados no presente artigo, importantes liames com preceitos constitucionais e legais a serem perscrutados, respeitados e levados em conta.

 

Assim, não é adequada uma importação acrítica de formas de pensar e resolver os problemas do direito da concorrência, especialmente porque os países nos quais essas formas foram, paulatinamente, desenvolvidas possuem um panorama jurídico-constitucional próprio, diverso do brasileiro. A Constituição não pode estar à margem ou indiferente ao direito da concorrência.

 

É importante, nesse sentido, lembrar algumas normas materialmente constitucionais ligadas ao tema em questão: os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa constituem fundamentos da República (artigo 1º, IV, CF). Dentre o rol expresso de direitos fundamentais, consta a liberdade do exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que eventualmente a lei estabelecer. Ainda, a ordem econômica funda-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, pautando-se, dentre outros princípios, pela livre concorrência e a busca do pleno emprego, sendo assegurado o livre exercício de qualquer atividade econômica (artigo 170). Ainda, a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (artigo 173, §3º). A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais (artigo 193).

 

De mais a mais, a lógica concorrencial de prevenção também se aplica aos mercados de trabalho, sendo a principal diferença somente no nível em que se dá a concorrência. Em um nível de venda, o exercício do poder de mercado por monopólios ou oligopólios pode causar aumento dos preços dos produtos; porém, da mesma forma, a restrição de poder no mercado de compra, por monopsônios ou oligopsônios, como no caso de contratação de insumos laborais, também pode artificialmente piorar as condições profissionais e remuneratórias, incentivando que, às custas do trabalhador, a receita das empresas seja aumentada. Nesse sentido:

 

“Quando falamos de uma empresa competitiva, geralmente começamos pensando em sua posição no mercado de venda. Mas as empresas podem exercer poder de mercado tanto do lado da compra quanto do lado da venda. Assim como uma empresa com poder de mercado ou um cartel restringe o comércio reduzindo a produção e aumentando o preço no mercado de venda, também ela pode restringir o comércio reduzindo suas compras em um mercado de insumos para diminuir preços, incluindo o preço do trabalho” (HOVENKAMP, Herbert. Competition Policy for Labour Markets. Escola de Direito da Universidade da Pensilvânia, Instituto de Direito e Economia, Artigo de Pesquisa no 19-29, 2019, p. 3,)

 

Outra defesa pela aplicação do antitruste ao trabalho é a constatação de Hovenkamp de que há pensamento equivocado na relação entre remuneração e preço dos produtos. Embora contraintuitivo, salários maiores não são relacionados a preços mais altos dos produtos e impacto no bolso do consumidor. Essa correlação instintiva e equivocada, que poderia levar a afastar a aplicação do direito concorrencial ao caso de acordos de “no poach”, não se sustenta. De acordo com Hovenkamp, andam lado a lado o bem estar do consumidor e do trabalhador:

 

“Se o bem-estar do consumidor for medido em termos de produção e não de lugar, então se pode facilmente ver um elo entre o bem-estar do consumidor e o bem-estar do trabalhador. Em geral, o princípio do bem-estar do consumidor deve encorajar a produção máxima consistente com a concorrência sustentável. Esse resultado produziria preços mais baixos para os consumidores e maior demanda por trabalhadores.” (Op. cit., HOVENKAMP, p. 6, )

 

Visando-se a produção máxima e a competição salutar, o exercício de poder de um monopsônio ou oligopsônio no mercado de trabalho também prejudicará os consumidores no mercado de produto, razão pela qual defende-se a aplicação do Direito da Concorrência ao mercado de trabalho.

 

Apesar de historicamente ter sido afastado, o direito da concorrência vem se alterando nos últimos anos. De acordo com Marinescu e Posner, o direito antitruste tem falhado com os trabalhadores, ainda que aplicável ao mercado, permitindo que as empresas, maximizadoras de lucros, tendam a buscar aumentar sua receita no mercado de trabalho.

 

“A lei antitruste tem falhado com os trabalhadores. O problema é menos a lei, que é amplamente redigida, do que a doutrina desenvolvida pelos tribunais, que tem sido orientada para o litígio de mercado de produto, e a inexperiência de juízes e advogados com casos de monopsônio trabalhista. A fragilidade da lei levanta a suspeita de que a onda de fusões ocorrida nas últimas décadas, bem como outras práticas anticompetitivas, pode ter sido motivada em parte por uma estratégia corporativa de obter retornos anticompetitivos nos mercados de trabalho. Afinal, se o governo e advogados particulares estão focados no comportamento do mercado de produtos, uma corporação racional que maximiza os lucros buscaria rendas nos mercados de trabalho” (MARINESCU, Iona & POSNER, Eric. Why Has Antitrust Law Failed Workers? Cornell Law Review, Vol. 105, 2020, p. 1382)

 

Porém, o cenário antitruste atual marca um contexto de investidas. As operações deflagradas pela Superintendência Geral do Cade demonstram, no Brasil, o início da concordância internacional de que o direito da concorrência deve ser mais incisivo em suas preocupações e investigações com o controle de poder de compra no mercado de trabalho. Essa guinada, marcada pelas investigações alhures citadas, demonstra o entendimento de que os mercados de trabalho não só podem como devem ser objetos tutelados pelo Direito da Concorrência.


Referências Bibliográficas

 

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidente da República, [2016].

CADE, Processo Administrativo nº 08012.003021/2005-72, Nota Técnica da SG – ID SEI nº 0081637 – https://sei.cade.gov.br/sei//modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?xgSJHD3TI7Rh0CrGYtJb0A1Onc6JnUmZgGFW0zP7uM_YHqWHQYNjh0iiZJ689xJjjMLueYh1lkjKxavPBT84d4aWROFUW8w6wcLrIZF-qh-aTZcu9QhJkoERIt1Ihm0D

CADE, Processo Administrativo nº 08700.004548/2019-61, Nota Técnica da SG – ID SEI nº 0877689 – https://sei.cade.gov.br/sei//modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?DZ2uWeaYicbuRZEFhBt-n3BfPLlu9u7akQAh8mpB9yNxuGsSSdg6oMHzEzCb4GYgAe6O4stYZJrXYAJNr-S2HKnvyjIHV8FAf0w-oRSJZbDLvT-VwNXLpBeP7dzKVYxF

HOVENKAMP, Herbert. Competition Policy for Labour Markets. Escola de Direito da Universidade da Pensilvânia, Instituto de Direito e Economia, Artigo de Pesquisa no 19-29, 2019

POLANYI, Karl. A grande transformação. 2ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.

MARINESCU, Iona & POSNER, Eric. A Proposal to Enhance Antitrust Protection Against Labor Market Monopsony. Roosevelt Institute Working Paper. December, 2018, pp. 2- 3. Disponível em: https://rooseveltinstitute.org/publications/a-proposal-to-enhance-antitrust-protection-against-labor-market- monopsony/.

SMITH, Larry. Collusion to Fix Wages and Other Conditions of Employment: Confrontation between Labor and Antitrust Law. Journal of Air Law and Commerce, Vol. 49, Edição 1, Artigo 9, 198

SILVA, Júlia e CORDÃO, Catarina “Acordos de não-aliciamento de trabalhadores e suas implicações antitruste.” Acessado em 21.01.22, disponível em https://gcalaw.com.br/wp-content/uploads/2021/03/Acordos-de-n%C3%A3o-aliciamento-de-trabalhadores-e-suas-implica%C3%A7%C3%B5es-antitruste-PT.pdf

SCHUARTZ, Luis Fernando. A desconstitucionalização do direito da concorrência. Acessado em 20.01.2021, disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/1762/TpD%20007%20-%20Schuartz%20-%20Desconstitucionalizacao.pdf?sequence=1&isAllowed=y


[1] Acordos de não-aliciamento de trabalhadores e suas implicações antitruste. Acessado em 21.01.22, em https://gcalaw.com.br/wp-content/uploads/2021/03/Acordos-de-n%C3%A3o-aliciamento-de-trabalhadores-e-suas-implica%C3%A7%C3%B5es-antitruste-PT.pdf

[2] A desconstitucionalização do direito da concorrência. Acessado em 20.01.2021, em https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/1762/TpD%20007%20-%20Schuartz%20-%20Desconstitucionalizacao.pdf?sequence=1&isAllowed=y


 é pós-graduado em Direito do Consumidor da Universidade Estácio de Sá, especialista em administração de empresas e LL.M. em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas.

 é graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2023-fev-06/bueno-castro-acordos-nao-aliciamento-trabalhadores