Rafael Izidoro Bello Gonçalves Silva
Com base em dados, normas e jurisprudência, o artigo analisa o avanço do combate ao assédio moral no trabalho e os desafios jurídicos da responsabilização.
Nos últimos cinco anos, a Justiça do Trabalho julgou mais de 450 mil ações envolvendo pedidos de indenização por assédio moral. Apenas entre 2023 e 2024, o número de novos processos aumentou em 28%, segundo dados do TST – Tribunal Superior do Trabalho. Este crescimento não pode ser interpretado apenas como reflexo de um ambiente corporativo em crise. Ele é, antes, sintoma de uma sociedade que começa a rejeitar com mais veemência práticas abusivas que, por muito tempo, foram naturalizadas sob o manto da “pressão por resultados”.
Como advogado atuante na área trabalhista há quase duas décadas, confesso que nunca recebi tantas demandas sobre esse tema quanto nos últimos dois anos. Relatos de humilhações públicas, cobranças com insultos, ameaças veladas e isolamento deliberado deixaram de ser exceção – tornaram-se padrão em muitos ambientes de trabalho. E, o que é pior, ainda enfrentam enorme dificuldade probatória quando chegam ao Judiciário.
O conceito jurídico e sua aplicação concreta
O assédio moral no trabalho pode ser definido como uma conduta abusiva, frequente ou não, que afeta a dignidade do trabalhador, provocando-lhe humilhação, constrangimento ou sofrimento psíquico. Não há uma tipificação legal específica no Brasil, mas sua configuração é reconhecida pela doutrina, pela jurisprudência e, mais recentemente, por instrumentos normativos como a resolução CSJT 360/23 e o ato conjunto TST.CSJT.GP 52/23, que instituíram uma política de enfrentamento institucional ao assédio e à discriminação.
Embora parte da jurisprudência ainda insista na exigência de reiteração para configurar o assédio moral, o TST tem avançado no reconhecimento da ilicitude mesmo diante de episódios isolados, desde que a gravidade da conduta seja manifesta. É o que se verifica no seguinte julgado:
“Logo, ainda que seja praticado um único episódio abusivo, o ato ilícito restará caracterizado como assédio moral quando a gravidade da conduta deixar clara a violação à dignidade humana.”
(TST – RR-0011392-76.2018.5.18.0131, Rel. Des. Convocada Margareth Rodrigues Costa, DEJT 9/12/22)
Também consta no mesmo acórdão:
“O tratamento constrangedor, descortês e humilhante praticado pela gerente da reclamada nos episódios relatados pelo depoente efetivamente viola os direitos da personalidade da autora e é passível de reparação moral, ainda que considerados isoladamente.” (TST – RR-0011392-76.2018.5.18.0131, Rel. Des. Convocada Margareth Rodrigues Costa, DEJT 9/12/22
Da mesma forma, em outra decisão paradigmática, o TRT da 2ª Região confirmou a rescisão indireta do contrato de trabalho com base no assédio sofrido por uma trabalhadora, vítima de insultos sobre seu corpo e aparência:
“O reconhecimento do assédio moral no trabalho faz-se a partir da análise da vítima no ambiente da organização do trabalho, tratando-se de todos aqueles atos e comportamentos […] que possam acarretar danos relevantes às condições físicas, psíquicas e morais da vítima, o que restou devidamente comprovado no caso dos autos.”
(TRT-2ª Região – RO 1001322-06.2020.5.02.0374, Rel. Des. Ricardo Apostólico Silva, julgado em 21/6/22)
Não há espaço, portanto, para relativizar a ofensa. O que se analisa é o impacto da conduta no direito da personalidade da vítima – e não apenas sua frequência.
A banalização do sofrimento e a dificuldade da prova
Muitos trabalhadores sequer se dão conta de que estão sendo vítimas de assédio moral. É comum que normalizem o sofrimento, especialmente quando inseridos em culturas empresariais tóxicas, baseadas em metas inatingíveis e humilhação como método de gestão. Ainda assim, o caminho até o reconhecimento judicial é árduo, especialmente diante da dificuldade probatória.
O assédio costuma ocorrer de forma velada, sem testemunhas dispostas a corroborar os fatos – seja por medo de retaliação, seja por vínculos hierárquicos. Por isso, o TST tem admitido a possibilidade de caracterização do dano in re ipsa, ou seja, presumido pela gravidade dos fatos, mesmo quando a extensão do sofrimento não pode ser objetivamente provada:
“Por fim, ressalte-se que o dano moral é considerado in re ipsa, isto é, não se faz necessária a prova objetiva do sofrimento ou do abalo psicológico, mesmo porque é praticamente impossível a sua comprovação material na instrução processual.”
(TST – RR-0011392-76.2018.5.18.0131, Rel. Des. Convocada Margareth Rodrigues Costa, DEJT 9/12/22)
Essa construção jurisprudencial é fundamental para evitar que a ausência de prova robusta inviabilize o acesso à Justiça, especialmente em casos de violência psicológica contínua ou dissimulada.
Avanço institucional: Resolução CSJT 360/23
Com a resolução CSJT 360, o Judiciário Trabalhista passou a reconhecer expressamente o assédio como fator de risco psicossocial, a ser combatido como política institucional. O texto define o assédio como conduta inaceitável, única ou repetida, que cause ou seja suscetível de causar dano físico, psicológico, patrimonial ou moral. Também introduz a figura do assédio moral organizacional, caracterizado por métodos gerenciais opressores ou estratégias de exclusão institucionalizadas.
Além disso, a resolução exige que as unidades do Judiciário adotem mecanismos de escuta, acolhimento e prevenção, incorporando práticas restaurativas e gestão participativa. O objetivo é claro: construir ambientes de trabalho emocionalmente seguros, onde a produtividade não esteja dissociada da dignidade humana.
Essas diretrizes, embora voltadas à Justiça do Trabalho, servem como modelo para todas as organizações públicas e privadas, sobretudo diante do expressivo crescimento de afastamentos por transtornos mentais. De acordo com o Ministério da Previdência, mais de 440 mil trabalhadores foram afastados por causas psicológicas em 2024, consolidando os transtornos de ansiedade como a principal razão para concessão de auxílio-doença.
Responsabilidade civil e o dever de prevenir
Do ponto de vista jurídico, o empregador responde civilmente pelos atos de seus prepostos, nos termos do art. 932, III, do Código Civil. Não basta “não compactuar” com o assédio: a empresa tem o dever de prevenir, fiscalizar e coibir qualquer comportamento abusivo, ainda que praticado entre colegas. A omissão, por si só, caracteriza culpa in vigilando e enseja o dever de indenizar.
A jurisprudência também tem reforçado esse entendimento, como se vê em decisões que condenam empresas por não adotarem medidas de prevenção, mesmo diante de denúncias internas. O TST, inclusive, já reconheceu o valor das cartilhas e protocolos internos de enfrentamento como instrumentos de prova da diligência do empregador – ou da sua ausência.
Considerações finais
O assédio moral não é um problema individual, mas estrutural. Ele se manifesta em ambientes que naturalizam o abuso como método de gestão, a humilhação como motivação e a hierarquia como blindagem. Combater essa cultura exige mais do que ações judiciais: requer educação institucional, acolhimento e vigilância ativa sobre as relações de poder.
Como operadores do Direito, não podemos mais tolerar relativizações. Se a dignidade do trabalhador é princípio fundante da ordem jurídica, então o respeito no ambiente de trabalho deve ser tratado como valor inegociável.
A Justiça do Trabalho tem evoluído – e a sociedade precisa acompanhá-la.
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Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista RR 0011392-76.2018.5.18.0131. Rel. Min. Margareth Rodrigues Costa. Brasília, 2022.
Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Recurso Ordinário 1001322-06.2020.5.02.0374. Rel. Des. Ricardo Apostólico Silva. São Paulo, 2023.
CONSELHO SUPERIOR DA JUSTIÇA DO TRABALHO. Resolução nº 360, de 25 de agosto de 2023.
TST e CSJT. Ato Conjunto nº 52, de 29 de agosto de 2023.
Ministério da Previdência Social. Boletim Estatístico da Previdência Social – 2024. Código Civil Brasileiro. Artigos 186, 927 e 932.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, incisos V e X.
Rafael Izidoro Bello Gonçalves Silva
Advogado, pós-graduado em Direito Tributário, CEO da Vismar, Oliveira e Izidoro Advogados, especialista em Direito do Trabalho com ampla atuação na defesa de trabalhadores em todo o Brasil.