A segurança alimentar é um desafio global e o Brasil tem exercido papel fundamental no abastecimento interno e internacional de grãos, proteína e produtos primários em geral. Infelizmente, nos últimos tempos, a fome voltou a patamares gravíssimos, o que instaura um evidente estado de coisas inconstitucional, diante da falta de instrumentos adequados para seu imediato combate, com planejamento e afirmação dos valores de dignidade da pessoa humana.
A Constituição, no seu artigo 3º, prescreve que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: “I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; e III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais“. Ao mesmo tempo, prescreve como competência comum, no artigo 23, X: “Combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos“. Ao mais, enuncia, no artigo 79 do ADCT, os fundamentos do combate à fome para “viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência”. Diante desses valores constitucionais, não se pode admitir que seja a tributação instrumento de ruptura para agravar ainda mais o acesso a alimentos.
Recentemente, por meio de uma interpretação equivocada, equivalente a mais uma “tese” do Fisco, surge uma mudança de critério jurídico da Receita Federal do Brasil quanto à dedução de despesas necessárias e usuais, pela compra de sementes básicas de soja, milho e outros, mediante contratos de compra e venda sem transferência de tecnologia, bem assim quanto ao tratamento tributário de pagamentos pela mera disponibilização temporária de tecnologia.
Pois bem. Passados mais de 30 anos sem qualquer contestação, eis que, no apagar das luzes de 2020, a RFB passa a glosar tais despesas, a pretexto de limitar-lhes a dedutibilidade, sob a alegação de que os referidos pagamentos, a partir da nomenclatura empregada nos contratos, dizem respeito a royalties, no limite de 1% dada a impossibilidade “de enquadramento da atividade da empresa aos tipos de produção estabelecida na Portaria MF nº 436, de 1958”.
Deveras, o artigo 363 do RIR/2018 somente adota o regime de dedutibilidade reduzida em duas hipóteses precisamente demarcadas: 1) nos pagamentos feitos a sócios; e 2) nos pagamentos destinados a pessoas domiciliadas no exterior. Nenhuma delas se cristaliza no caso da “multiplicação” de sementes de segunda geração, na qual não se manipula qualquer transferência de tecnologia, por força de disposições contratuais expressas.
A única função dessa tosca medida é agravar o preço dos alimentos e gerar ainda mais fome e miséria no país, induzidos por uma hermenêutica arrecadatória sem qualquer base legal. Não atenta, a RFB, para as danosas consequências que dele decorrem. Caso mantida essa ilegalidade da glosa da dedutibilidade de despesas operacionais em questão, o resultado será de severo impacto sobre os preços dos produtos da agricultura brasileira.
As consequências são óbvias. Redução de arrecadação, pois isso reduzirá a demanda, pelo aumento do preço e baixa na produção. Agravamento da inflação, pelo aumento dos preços no mercado interno. Danos à balança comercial brasileira, pela majoração abusiva de preços que essa conduta representará, em favor dos concorrentes estrangeiros, pois tais restrições de dedutibilidade não são aplicadas por nenhum país do mundo. Contudo, os piores danos estão na redução de acesso das pessoas aos alimentos, tanto no Brasil quanto no exterior.
Somente a semente genética recebe a tecnologia oriunda da aquisição, por parte das germinadoras. Portanto, nas etapas subsequentes, da segunda geração em diante, as sementes básicas derivam da compra e venda que as multiplicadoras realizam, para propagação das sementes.
De se ver que essas sementes certificadas, obtidas a partir da multiplicação de sementes básicas, aprimoram o potencial produtivo, com ganhos inegáveis para a eficiência da economia nacional.
Toda essa matéria está regulada de modo rigorosamente criterioso, tanto por leis internas quanto por convenções internacionais. O Brasil é signatário da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), redigida pela Organização das Nações Unidas (Decreto nº 2.519/1998), que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso e transferência de tecnologia para a conservação e utilização do patrimônio genético existente em território nacional.
O país também é signatário da Convenção Internacional para Proteção das Obtenções Vegetais, incorporada pelo Decreto nº 3.109/1999. Por meio dela, protegem-se os direitos do obtentor de nova variedade vegetal (os cultivares) e o direito à propriedade intelectual no melhoramento de sementes, que dizem respeito a etapas que antecedem aquela da consulente, como multiplicadora.
Nessa aquisição, como assinalado, não há qualquer transferência de tecnologia, prestação de serviços técnicos, administrativos ou licenciamento de marcas, com vistas ao pagamento de royalties. Inversamente, trata-se de mero pagamento de preço pela aquisição das mercadorias (sementes).
A tentativa de aplicação autônoma, no caso, do limite de 1% sobre as receitas dos produtos vendidos, além do contexto da Portaria MF nº 436/1958, redunda em grave erro de tipificação da hermenêutica fazendária que, inclusive, tem como efeito perverso a oneração desmedida da cadeia nacional de alimentos, com prejuízos devastadores para a economia nacional, fortemente dependente de commodities agrícolas.
Com efeito, limitar a dedutibilidade das despesas derivadas de pagamentos efetuados a empresas não relacionadas e domiciliadas no Brasil, sem qualquer forma equivalente de transferência de tecnologia ou direitos de propriedade intelectual, remuneração de uso de marca ou prestação de serviços especializados, distorce a base de cálculo do IRPJ por não considerar a integralidade da despesa necessária incorrida pela consulente, importando em tributação de valores que não refletem sua renda.
Isso desincentiva, de forma notável, a utilização de melhores sementes no Brasil, diante do incremento de custos que a limitação da dedutibilidade dos valores pagos, pelas multiplicadoras, às germinadoras em empresas de biotecnologia, para fins de apuração e IRPJ, traz para a cadeia produtiva.
Em julho do corrente ano, a Agenda 2030 da ONU divulgou dados alarmantes sobre a expansão da fome, os quais dão conta de mais de 50 milhões de brasileiros em estado de fome média e de mais de oito milhões em fome grave. Valores que vão além do dobro em relação a 2016. Logicamente, esses números só aumentam, diante da falta alarmante de planejamento público.
Na Agenda 2030, temos 17 grandes ODS — Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que formam o pacto global sobre os distintos campos de proteção da humanidade.
O ODS 2 é justamente aquele que consagra o objetivo de chegar em 2030 com “fome zero e agricultura sustentável — acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável”. Suas metas são as seguintes:
“2.c — Adotar medidas para garantir o funcionamento adequado dos mercados de commodities de alimentos e seus derivados, e facilitar o acesso oportuno à informação de mercado, inclusive sobre as reservas de alimentos, a fim de ajudar a limitar a volatilidade extrema dos preços dos alimentos.
2.b — Corrigir e prevenir as restrições ao comércio e distorções nos mercados agrícolas mundiais, inclusive por meio da eliminação paralela de todas as formas de subsídios à exportação e todas as medidas de exportação com efeito equivalente, de acordo com o mandato da Rodada de Desenvolvimento de Doha.
2.a — Aumentar o investimento, inclusive por meio do reforço da cooperação internacional, em infraestrutura rural, pesquisa e extensão de serviços agrícolas, desenvolvimento de tecnologia, e os bancos de genes de plantas e animais, de maneira a aumentar a capacidade de produção agrícola nos países em desenvolvimento, em particular nos países de menor desenvolvimento relativo.
2.5 — Até 2020, manter a diversidade genética de sementes, plantas cultivadas, animais de criação e domesticados e suas respectivas espécies selvagens, inclusive por meio de bancos de sementes e plantas diversificados e adequadamente geridos em nível nacional, regional e internacional, e garantir o acesso e a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados, conforme acordado internacionalmente.
2.4 — Até 2030, garantir sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementar práticas agrícolas robustas, que aumentem a produtividade e a produção, que ajudem a manter os ecossistemas, que fortaleçam a capacidade de adaptação às mudanças do clima, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, e que melhorem progressivamente a qualidade da terra e do solo.
2.3 — Até 2030, dobrar a produtividade agrícola e a renda dos pequenos produtores de alimentos, particularmente das mulheres, povos indígenas, agricultores familiares, pastores e pescadores, inclusive por meio de acesso seguro e igual à terra, outros recursos produtivos e insumos, conhecimento, serviços financeiros, mercados e oportunidades de agregação de valor e de emprego não-agrícola.
2.2 — Até 2030, acabar com todas as formas de desnutrição, inclusive pelo alcance até 2025 das metas acordadas internacionalmente sobre desnutrição crônica e desnutrição em crianças menores de cinco anos de idade, e atender às necessidades nutricionais de meninas adolescentes, mulheres grávidas e lactantes e pessoas idosas.
2.1 — Até 2030, acabar com a fome e garantir o acesso de todas as pessoas, em particular os pobres e pessoas em situações vulneráveis, incluindo crianças, a alimentos seguros, nutritivos e suficientes durante todo o ano” (grifos do autor) [1].
Como se verifica, a Agenda ONU impulsiona os países em direção à produção sustentável de alimentos, inclusive mediante uso intensivo de tecnologia.
Diante da escassez de alimentos no mundo, antes que criar falsos pretextos para impulsionar arrecadação, em prejuízo dos setores estratégicos do agronegócio brasileiro, seria preferível que nossas autoridades estudassem o contexto setorial das matérias, além de promover um criterioso exame da cadeia de produção das sementes e da causa jurídica dos contratos nela celebrados.
Afora aquela hipótese, temos muitas outras situações com gravíssima indução à fome e aumento do preço dos alimentos. A chamada “cesta básica”, por exemplo, encontra-se desatualizada e cada vez mais restrita a poucos alimentos. Basta pensar que o “ovo” não a integra. O ICMS, nesse particular, é dos maiores vilões da mesa dos pobres e miseráveis brasileiros. E o Confaz, que deveria coordenar esforços para assegurar meios adequados, prefere dar incentivos a produtores de bens supérfluos e segundo meros interesses políticos.
Em matéria tributária, nada impede que um tributo possa ter função extrafiscal para conferir efetividade a políticas da Constituição Econômica e da Constituição Social, bem como à proteção do meio ambiente. Mormente quanto ao combate à fome e à miséria. Na prática, porém, são pífias e desatualizadas as medidas existentes.
Numa síntese, a situação aqui examinada traduz uma ação contrária aos esforços da ONU no combate à fome e à segurança alimentar, no Brasil e no mundo. Trata-se de evidente erro de tipificação legal, e que atinge gravemente a Agenda ONU 2030, bem como todos os princípios constitucionais de fomento à produção agrícola, em inopinada mudança de critério jurídico. Esperemos, firmemente, que as autoridades constituídas saibam refletir melhor sobre o impacto destas medidas sobre o contexto da sociedade.
[1] UNITED NATIONS. 2030 Agenda (in Portuguese). Disponível em: http://www.agenda2030.org.br/ods/2/. Acesso em 15 jul. 2021.Também nesse sentido: FAO, IFAD, UNICEF, WFP, WHO. 2021. Brief to The State of Food Security and Nutrition in the World 2021. Transforming food systems for food security, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Rome, FAO. Disponível em: https://doi.org/10.4060/cb5409en. Acesso em 15 jul. 2021.