“É um privilégio voltar a este anfiteatro histórico, onde estive há dez anos para receber o título de Doutor Honoris Causa da Sciences Po. Tenho hoje a oportunidade de renovar os agradecimentos e compartilhar impressões sobre as mudanças que ocorreram, desde então, no Brasil, na América Latina e em nosso planeta.
Quero primeiramente agradecer por este honroso convite à presidente da Fundação Nacional de Ciências Políticas, Laurence Bertrand, ao presidente do Observatório Político da América Latina e Caribe, Olivier Dabene, e a seu diretor-executivo, o professor Gaspard Estrada.
Disse em 2011 e reafirmo que estas homenagens não pertencem a mim pessoalmente, mas ao sofrido e corajoso povo brasileiro, em sua luta permanente por um país e um mundo mais justo, menos desiguais e mais democráticos.
Quero saudar os convidados, os professores e professoras, funcionários, alunos e alunas. Faço uma saudação especial aos estudantes brasileiros e latino-americanos, que a Sciences Po sempre acolheu nos momentos históricos mais difíceis para nossa gente. A solidariedade aos perseguidos do mundo é uma das mais admiráveis tradições do povo de Paris; tradição que felizmente persiste nesses tempos em que se dissemina o ódio e a intolerância.
Pessoalmente, tenho muito a agradecer pelo apoio e solidariedade que recebi de tantos amigos e companheiros na França, ao longo do período em que fui alvo de uma implacável perseguição judicial, política e midiática em meu país.
Agradeço especialmente ao Comitê Lula Livre da França, ao apoio que recebi de companheiros como François Hollande e Jeán-Luc Melanchon, ao Conselho de Paris e à prefeita Anne Hidalgo, por minha nomeação com Cidadão de Honra de Paris. Foram gestos generosos que romperam o muro de silêncio sobre a nossa resistência no Brasil.
Foram cinco anos de luta pela verdade e pela justiça até que o Supremo Tribunal Federal do Brasil viesse a estabelecer, afinal, a suspeição e a parcialidade do juiz que me condenou sem provas e sem causa, como vinham denunciando desde o início meus incansáveis advogados, Cristiano Zanin e Valeska Teixeira Martins.
Sempre compreendi que ao condenar, prender ilegalmente e tentar proscrever minha pessoa, o que se pretendia era aniquilar o projeto de um país mais justo, soberano, comprometido com a sustentabilidade ambiental e democraticamente integrado ao mundo, que os governos do Partido dos Trabalhadores representaram e continuam representando no Brasil.
Nossa vitória na dura batalha para restabelecer minha inocência e meus direitos políticos insere-se na luta mais ampla do povo brasileiro e dos que defendem a liberdade e a democracia em todo o mundo. Se vencemos, foi porque nunca estive só. Os 580 dias e noites em que estive preso foram também 580 dias e noites em que, do lado de fora, sob sol ou sob chuva, companheiros e companheiras que eu nem conhecia pessoalmente estavam em permanente e solidária vigília.
Meus amigos, minhas amigas,
Quando estive aqui, em setembro de 2011, o mundo ainda sofria os impactos da grande crise do capitalismo de 2008, decorrente da especulação financeira desenfreada e sem controles.
O alerta para os efeitos nefastos do aquecimento global já estava na ordem do dia. Debatíamos a necessidade de fortalecer os organismos multilaterais e de atuarmos coordenadamente pela paz, contra a desigualdade, a miséria e a fome no mundo.
Dez anos depois, os desafios fundamentais da humanidade continuam os mesmos. A urgência de enfrentá-los é que vai se tornando maior. Uma urgência agravada pela pandemia que segue devastando especialmente as populações dos países mais pobres, além daqueles cujos governos negaram a Ciência ou, pior ainda, investiram na morte, como ocorreu no Brasil.
É duro, mas é necessário, admitir que na última década o mundo regrediu.
Não há como explicar às gerações futuras que em nosso tempo 1% da humanidade detém quase a metade da riqueza do planeta, enquanto 800 milhões de pessoas passam fome. Que uns poucos privilegiados viajam ao espaço por um capricho bilionário, enquanto milhões de famílias não têm sequer onde morar.
Não há justificativa para não termos taxado as transações financeiras globais, e criado fundos de desenvolvimento e combate à pobreza.
É diante desses desafios que me convidam a falar sobre o papel do Brasil no futuro próximo. Apesar da gravíssima situação e de todos os retrocessos que foram impostos ao país e ao povo brasileiro nos anos recentes, quero trazer uma palavra de esperança.
Meus amigos, minhas amigas,
É inevitável comparar a posição que o Brasil havia alcançado nas relações internacionais com o isolamento entre as nações em que o país se encontra hoje. Isso não é fruto do acaso. É o resultado de uma disputa pelo poder que extrapolou os limites da Constituição e do respeito à democracia, até culminar no golpe do impeachment sem crime da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e tudo o que veio depois.
O objetivo indisfarçável do golpe era reverter o projeto de país soberano, voltado para o desenvolvimento econômico, social e ambientalmente sustentável, com geração de emprego e distribuição de renda para a imensa maioria historicamente excluída.
Ampliamos significativamente o investimento público em políticas sociais e de infraestrutura para o crescimento, reduzindo e controlando a inflação e a dívida pública. O Brasil chegou a ser a sexta maior economia do mundo. Em 12 anos, criamos 20 milhões de empregos formais, elevamos em 74% o salário-mínimo e, graças a um conjunto de programas, dos quais o mais conhecido é o Bolsa Família, tiramos da miséria 36 milhões de pessoas. Em 2012, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU.
Criamos 18 universidades, com 178 novos campi e 422 escolas técnicas por todo o país. O Estado criou o passou a garantir o crédito educativo, ampliou a oferta de vagas e reservamos cotas para negros, indígenas e alunos de escolas públicas nas universidades. As matrículas no ensino superior saltaram de 3,5 milhões para 8 milhões e, pela primeira vez, negros, pardos e filhos de trabalhadores chegaram a ser maioria nas universidades públicas do Brasil.
Dessa forma reduzimos a desigualdade e ao mesmo tempo aprofundamos a democracia.
Costumo dizer que tudo isso aconteceu porque, também pela primeira vez, colocamos os pobres e os trabalhadores no Orçamento da União, provando com isso que os pobres não são problema, mas sim a solução do país.
Transformações dessa magnitude parecem intoleráveis para elites forjadas num processo histórico marcado pela violenta apropriação das terras e das riquezas naturais, pelo genocídio dos indígenas e por mais de três séculos de escravização de povos africanos.
Havíamos interrompido um ciclo de políticas econômicas neoliberais, de encolhimento do estado e privatização sem critério. Contrariamos poderosos interesses econômicos, financeiros e geopolíticos dentro e fora do Brasil. Foi para interromper aquele projeto de país soberano e retomar o ciclo neoliberal que mentiram ao país até levar um governo autoritário e obscurantista à presidência da República.
Na realidade, o processo de destruição nacional em curso no Brasil só poderia ser conduzido por um governo antidemocrático, num país envenenado pela indústria das fake news e em que a oposição é excluída dos debates nos grandes meios de comunicação.
Destruíram cadeias econômicas essenciais, os setores de engenharia, óleo e gás, e estão destruindo a maior empresa do povo brasileiro, a Petrobrás. Corroeram as finanças públicas e contrariamente ao que prometiam, minaram a confiança dos investidores. Transformaram o Brasil numa economia onde apenas especuladores e oportunistas obtém benefícios.
O resultado é que em apenas cinco anos os trabalhadores perderam direitos fundamentais, o desemprego e o custo de vida explodiram, programas sociais foram abandonados ou descontinuados, incluindo o Bolsa Família. A fome voltou ao cotidiano das famílias.
O governo desmonta políticas públicas bem sucedidas e persegue os cientistas, artistas, professores e lideranças sociais; incentiva a destruição das florestas e a mineração ilegal.
Este governo colocou o Brasil de costas para o mundo e quem mais sofre com isso é o povo.
Por todos estes motivos, uma nova inserção do Brasil no cenário mundial passa, necessariamente, pela reconstrução do país, num processo de eleições democráticas e verdadeiramente livres, sem fake news diferentemente do que ocorreu em 2018.
Queridos amigos, queridas amigas,
O isolamento político e diplomático do Brasil é nocivo não só para o nosso país, mas para a comunidade das nações. Ouso dizer que nossa participação ativa nos grandes fóruns globais faz muita falta para o mundo.
O Brasil é muito mais que um imenso território, um grande mercado e uma economia que foi até recentemente um dos maiores destinos de investimento produtivo. O Brasil são 213 milhões de seres humanos, das mais diversas origens, com capacidade de trabalhar, aprender, ensinar e sonhar. Um país defensor do diálogo, com tradição de convivência pacífica e respeito à autodeterminação dos povos.
Temos muito a contribuir em temas como o combate à pobreza e à fome; o diálogo político; a construção da paz; o equilíbrio geopolítico do mundo; a democratização das relações financeiras e comerciais entre países e no enfrentamento da emergência climática. Temos muito a contribuir para a segurança alimentar do planeta, a economia global, a cultura, a ciência e tecnologia.
Na medida em que o povo brasileiro volte a decidir sobre os rumos do país, estou certo de que atuaremos fortemente em todas as iniciativas para superar a indecente desigualdade entre países, e garantir a segurança ambiental do planeta. Esta é a nossa vocação e foi nossa prática quando governamos.
Recordo que chegamos à Conferência do Clima de Copenhague, ainda em 2009, apresentando a meta voluntária de reduzir as emissões de CO2 em até 39% em 2020, compromisso transformado em lei pelo Congresso Nacional. Aquela atitude nos autorizou a chamar à mesa os grandes países, lançando ali as sementes do que viria a ser o Acordo do Clima de Paris de 2015.
Nossa credibilidade era lastreada na redução da taxa de desmatamento em 75%, o menor nível alcançado até então. Nosso governo foi responsável por 74% das unidades de conservação florestal e ambiental criadas no mundo naquele período. Apresentei estes dados aqui na Sciences Po. em 2011 e, apesar de todos os retrocessos, são eles que representam de fato o compromisso do povo brasileiro com o planeta em que vivemos.
Temos plena consciência da necessidade de preservar a Amazônia, por uma razão muito simples e não muito difundida: é nela que vivem mais de 25 milhões de brasileiros e brasileiras, incluindo povos indígenas, populações ribeirinhas, pescadores e extrativistas. A ninguém interessa mais preservar a floresta, saudável e de pé, do que a quem dela retira seu sustento, em necessário equilíbrio.
Demarcamos mais de 50 milhões de áreas de proteção florestal em nossos governos, para que nelas possam conviver os indígenas, os quilombolas e as populações locais em harmonia com a natureza. Incentivamos a pesquisa científica e a utilização sustentável dos recursos da Amazônia em benefício da humanidade.
Os que destroem, degradam, incendeiam e desmatam são invasores, que, em nosso período, vinham sendo cada vez mais coibidos pela lei e pelo Estado, mas no governo atual eles receberam salvo-conduto para cometer seus crimes.
Somos nós os mais radicalmente interessados em manter vivo esse patrimônio natural, sem abrir mão nem de nossa soberania nem de nossa responsabilidade intransferível. Foi dessa maneira que obtivemos, por exemplo, o apoio financeiro da Alemanha e da Noruega para constituir o Fundo Amazônia, que lamentavelmente foi tornado inviável pelo atual governo do Brasil.
Queridas amigas, queridos amigos,
Foi para nos abrirmos ao mundo, de maneira soberana e solidária, que nos empenhamos na integração latino-americana a partir da América do Sul. Fortalecemos o Mercosul, criamos a Unasul, o Instituto Sulamericano de Governo em Saúde, o Conselho de Defesa da América do Sul e, em seguida, da Comunidade de Estados Latino-Americanos e do Caribe, a Celac.
Não é pouco relevante, considerando a história, termos estabelecido na América Latina e Caribe um foro político e diplomático autônomo em relação aos Estados Unidos.
Na minha visão, o avanço da integração regional permitirá aos nossos países contribuir de forma efetiva para um diálogo global mais democrático. Por isso, também inovamos ao estabelecer o IBAS, com a Índia e África do Sul, e os BRICS, incluindo a Rússia e China.
Ampliamos o comércio e as relações com a União Europeia e avançamos na parceria estratégica e de Defesa com a França. Cooperamos com os países da África, estabelecemos novo diálogo com os países árabes e com a China, sem prejuízo de relações comerciais e diplomáticas que mantínhamos com outros países.
Foram avanços importantes, dentro de uma visão de um mundo multipolar, que deram consequência prática à defesa de relações econômicas e políticas mais equilibradas entre países. A necessidade de fortalecer ou renovar o sistema multilateral, tornando-o mais efetivos por meio de sua democratização, é uma questão dramaticamente urgente para o mundo.
Nunca me conformei com o fato dos países ricos não terem dado consequência às resoluções do G 20 nas reuniões de Londres e Pitsburgh em 2009.
Além da frustração com o que se deixou de fazer, preocupa-me que a comunidade internacional tenha feito tão pouco para impedir que outra crise venha a ocorrer em escala ainda maior. O sistema financeiro globalmente integrado exerce seu poderio de forma instantânea sobre a vida de 7 bilhões e oitocentos milhões de pessoas.
Será que teremos de esperar a próxima crise para voltar a falar sobre a necessidade de uma governança global democrática? Até quando a ganância dos ricos, o isolacionismo dos governos e o individualismo vão prevalecer sobre os interesses do planeta e da humanidade?
Estamos falando da responsabilidade dos Estados nacionais e da recuperação do papel da Política, em seu mais elevado sentido, para enfrentarmos juntos e coordenadamente o desafio da desigualdade.
O atraso, a pobreza e a fome não são mandamentos divinos. São o resultado do que fazemos ou deixamos de fazer neste mundo.
A experiência me mostrou que para enfrentar a desigualdade num país, é central o papel do Estado para cobrar e distribuir, para planejar e executar políticas públicas abrangentes, para garantir os direitos do mais fracos. Estas funções o Estado exerce quando é governado democraticamente, convivendo com a energia de uma sociedade livre – partidos, movimentos, imprensa, universidades e indivíduos.
A desigualdade entre os povos e países tampouco nasceu com a humanidade. É resultado de processos históricos que privilegiaram alguns em detrimento de muitos, em um círculo vicioso, até chegarmos ao ponto em que nos encontramos.
É certo que não temos respostas prontas para estas questões, mas é mais certo ainda que elas só vão se agravar se ficarmos inertes e tudo continuar como está.
Temos de buscar estes caminhos no diálogo democrático, sincero e com sentido de justiça, para o qual o Brasil terá muito a contribuir, tão logo volte a ser a um país soberano.
Amigos e amigas,
O mundo ainda vive a grande crise causada pela pandemia. Como ocorreu depois de outras grandes crises, é necessário reconstruir as instituições internacionais sobre novas bases. Não podemos continuar governados pelo sistema criado após a Segunda Guerra Mundial. É urgente convocar uma conferência mundial, com representação de todos os Estado, e participação da sociedade civil, para definir uma nova governança global, justa e representativa.
Neste planeta que compartilhamos, o futuro da humanidade precisa ser construído com diálogo e não autoritarismo, com paz e não com violência; com mais livros e não mais armas; com mais escolas para termos menos presídios. Com mais verdade, e menos mentiras. Com mais respeito a natureza, para assegurarmos a água, o ar e a vida para nossos filhos e netos. Com mais acolhimento e solidariedade, e menos exclusão.
Com mais amor e menos ódio.
Muito obrigado, do fundo do meu coração, por esse reencontro.
O professor Pedro Santander faz uma avaliação sobre o crescimento dos discursos de ódio pela ultra-direita no Chile
por Rafael Duarte
Um grupo de jornalistas, engenheiros e linguistas se debruça desde 2016 no Chile sobre as redes sociais em contexto eleitoral. Esse trabalho de investigação é coordenado pelo professor de jornalismo da PUC de Valparaíso Pedro Santander. Desde agosto de 2021, o trabalho ganhou uma amplitude a partir dos ataques ao processo de elaboração da nova Constituinte e que tem na presidência a acadêmica mapuche Elisa Loncón.
Os mapuches são um dos 9 povos originários do Chile e serão representados pela primeira vez na futura Carta Magna. O novo texto substituirá a Constituição criada em 1980 pelo governo chileno, sem participação popular, ainda sob a ditadura de Augusto Pinochet.
De acordo com o censo mais recente, o Chile possui 19,1 milhões de habitantes, uma população 11 vezes menor que a do Brasil.
Nesta entrevista especial concedida à agência Saiba Mais/ComunicaSul em Valparaíso, litoral chileno, o professor Pedro Santander faz uma avaliação sobre o crescimento dos discursos de ódio pela ultra-direita no Chile, conta como se dá a relação dos meios de comunicação tradicional e contra-hegemônicos no país e explica que, ao contrário do Brasil, as fake news não terão grande impacto nas eleições presidenciais do próximo domingo (21) em razão do processo de politização radical da população local após as grandes manifestações que sacudiram o país a partir de outubro de 2019.
Pedro Santander coordena trabalho na PUC Valparaíso sobre discurso de ódio nas eleições do Chile / foto: Alana Souza
Você coordena um grupo de monitoramento de redes sociais na PUC Valparaíso. Pode explicar melhor como funciona esse trabalho ?
Coordeno uma equipe de investigação multidisciplinar com jornalistas, engenheiros e linguistas e analisamos as redes sociais em contexto eleitoral e discurso de ódio. Esses são os campos do nosso estudo, de nossa observação. Em âmbito eleitoral estamos monitorando os 7 candidatos e basicamente medindo interações e volume de ações que eles têm no facebook, instagram e twitter. Em outro âmbito, monitoramos o discurso de ódio, a violência línea ou comunicação violenta, contra a convenção constitucional (em processo de elaboração). E especificamente contra a presidenta da convenção, a acadêmica mapuche Elisa Loncón, e sua condição de mulher e mapuche.
O que levou você a criar esse grupo, houve um fato específico ?
O grupo de investigação é anterior, nasceu em 2016, quando constituímos o DEEP, Demoscopia Eletrônica de Espaço Público, um ramo da sociologia e estudo de opinião pública. Mas em agosto deste ano a presidenta da Constituinte Elisa Loncón nos contatou. Ela é linguista, nos conhecemos da universidade e se mostrou muito preocupada com os ataques que a Constituinte estava recebendo de usuários, do conselho de ultra-direita, dos meios de comunicação da ultra-direita. E pediu que ajudássemos a monitorar e a identificar essas pessoas. Principalmente no twitter porque é onde há mais discurso de ódio e violência, embora no facebook e instagram também tenha.
Porque o discurso de ódio contra a Constituinte ?
Quem está construindo a nova Constituição, de forma inédita, não é o governo do Chile. Pela primeira vez, a Constituição está sendo debatida democraticamente. Nunca havia ocorrido isso no Chile, e com paridade de gênero, representação dos povos originários e com certa composição de classe trabalhadora. Isso é muito preocupante para o status quo e para quem manda no Chile. Esse grupo está realizando uma série de manobras políticas, econômicas e discursivas para que a Constituição não seja aprovada. É uma aposta política pelo boicote e por uma violência discursiva nas redes sociais. São manobras para cansar e para que plebiscito não seja favorável em julho de 2022.
Capa do site do projeto que Investiga o discurso de ódio nas redes sociais durante eleições no Chile / foto: reprodução
Os atores envolvidos nesse ataques não gostam da democracia ?
Claro. E por duas razões: a primeira é que os atores que estão atuando contra a Constituição apoiaram a opção do rechaço no plebiscito do ano passado e decidiram manter a Constituição de Pinochet. São setores não-democráticos. E o segundo motivo: o Chile, assim como outros países da América Latina, não vive uma democracia plena, vive uma plutocracia. Tampouco temos uma ditadura, mas vivemos uma plutocracia, um governo dos ricos. Como a Argentina teve com Macri, como vocês têm no Brasil com Bolsonaro, o Equador com Guillhermo Lasso, Piñera aqui no Chile… são banqueiros que estão no comando desses países. Todos são multimilionários com dinheiro em paraísos fiscais, sem pagar imposto. Estamos sendo governados por regimes plutocráticos e talvez isso, com uma nova constituição e talvez com um governo de Gabriel Boric, chegasse ao fim. Isso é o que se vê no grupo dominante do Chile.
“Pela primeira vez, a Constituição está sendo debatida democraticamente. Nunca havia ocorrido isso no Chile, e com paridade de gênero, representação dos povos originários e com certa composição de classe trabalhadora”.
Quais os resultados práticos desse monitoramento ?
De resultados concretos detectamos que 8.048 contas de usuários únicos que, só em agosto, participaram dos ataques são de ultra-direita e participaram do rechaço ao plebiscito. E isso não é pouco porque participam de forma constante, incisiva. Nesses três meses vemos permanentes ataques à convenção, com alguns picos e acaba entrando na agenda da imprensa tradicional.
O que mais chamou sua atenção ?
O objetivo dos ataques contra Elisa Loncón é sua condição de mapuche e de mulher. A convenção representa os 9 povos orginários, mas só atacam os mapuches, não atacam os demais. É um discurso de ódio com caráter misógino e racista.
Há mais menções e interações negativas do que positivas sobre a Constituição ?
As negativas são maiores. O que passa é que os que defendem a convenção são menos, mas quando se ativam são mais. A negativa é mais frequente porque é todo dia. São contas que já estavam operando desde o plebiscito, em julho deste ano. São militantes, ativistas atacando. São ligados à ultra-direita, hoje apoiando a candidato do José Antonio Kast (Partido Republicano do Chile).
A quantidade de usuários de ultra-direita te surpreendeu ?
Sim, num mês apenas é muito para o Chile. Somos um país pequeno, 19 milhões de habitantes, temos menos usuários em redes sociais e, para nossa realidade, é um numero bem alto.
O que vocês pretendem com esses dados, esse trabalho de monitoramento ?
É um trabalho científico, queremos entender. Estamos gerando algorítimo próprio, de maneira automática e em tempo real identificar discurso de ódio contra a convenção. E politicamente queremos apoiar a Constituição. Como investigadores temos convicção de que esse organismo está criando um novo Chile. Um Chile real, diverso, com setores populares, com diversidade, povos originários com homens e mulheres. Estamos criando um pequeno grão de areia para denunciar o discurso de ódio.
No Brasil, desde 2016, a partir do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, há uma máquina estruturada de disparos em massa de fake news pelo whats app. Por que o whats app não entrou no monitoramento de vocês ?
Porque é impossível monitorar o whatsapp.
Mas não há uma disseminação de notícias falsas por esse aplicativo no Chile ?
Não no nível de vocês. No caso do Brasil, já em 2014 alguns especialistas alertavam sobre o que poderia acontecer com o uso do whats app. Com Bolsonaro, principalmente, em virtude da magnitude do que Bolsonaro fez, o que não ocorreu em nenhum país da América Latina.
Nos EUA a interferência na eleição que elegeu Trump foi a partir do facebook, já no Brasil via whats app…
É porque nos EUA se usa pouco o whats app, lá é mais facebook. Vocês já haviam experimentado em 2014 essas notícias falsas com whats aap e foi um escândalo o que aconteceu em 2018. Depois disseram que o whats aap fez alguma regulação, mas não adiantou. No Chile a direita usa as fake news, mas aqui temos menos problema com boots (robôs). Até temos boots, mas não é tão significativo.
No Chile o whats app não é tão popular ?
O whats aap é popular, tem uma penetração altíssima, algo em torno de 80% da população, mas aqui não se usa esse aplicativo com fins políticos eleitorais como Bolsonaro fez. Creio que seja um problema de dinheiro. Bolsonaro é isso, comprou milhares de números telefônicos em Portugal e EUA, sem falar nas contas falsas. Multiplica isso por dólares! Depois a quantidade de boots, gente para administrar isso… A campanha macabra de 2018 foi a continuidade do golpe de 2016. O Brasil é o país mais importante da América Latina e se empregou todo dinheiro do mundo para que o fascismo tomasse o poder.
No Brasil se fala muito que a esquerda não dá importância à comunicação, ao contrário da direita. É assim aqui no Chile e em outros países da América Latina ?
Sim. Hugo Chávez dizia que “a comunicação era a falha tectônica da revolução”. E Fidel Castro, nos anos 1990, já falava que agora, o que se trata, é a batalha das ideias. Então creio que tudo isso é correto, mas creio também que já chegou ao seu limite. É evidente que a batalha da comunicação é de primeira ordem para os movimento da América Latina, tanto para mantermos como para nos defendermos dos ataques do imperialismo. Sempre nos atacaram militarmente, politicamente, mas não como agora. Nunca nos atacaram sob esse ângulo. Cada estágio tecnológico tem sua própria expressão de ataque imperialista. Esses ataques se centram muito nessa guerra híbrida. Comunicação como arma de ataque político. Não há muito o que discutir. Ou nos metemos nisso ou nos despedimos desse ciclo histórico.
O avanço da extrema-direita tem relação com a importância que damos à comunicação ?
A extrema-direita global tem em comum três coisas: é anti-globalista, contracultural e o uso comunicação digital. A extrema-direita brasileira, a mexicana, a chilena usam as redes sociais de forma muito similar.
“Hugo Chávez dizia que “a comunicação era a falha tectônica da revolução”. E Fidel Castro, nos anos 1990, já falava que agora, o que se trata, é a batalha das ideias. Não há muito o que discutir. Ou nos metemos nisso ou nos despedimos desse ciclo histórico”.
Os veículos de mídia tradicionais do Chile também dão sustentação ao discurso de ódio e podem ser co-responsabilizados pelo avanço dessa extrema-direita no país ?
Lenin dizia que o fascismo é uma etapa superior. Creio que o capitalismo, às vezes, necessita do fascismo, uma etapa onde a democracia liberal não rende mais muito frutos, né ? Para proteger a plutocracia eles necessitam do fascismo. E uma maneira de recorrer a eles são usando os meios de comunicação. O twitter, facebook, os algorítimos, a imprensa tradicional, a semiótica contracultural… é muita coisa. Os meios de comunicação tradicional sempre foram fascistas. O Globo nunca viu problema em apoiar golpes de Estado. Isso para mim já mostra. O diário El País, da Espanha, apoiou todos os golpes de países da América Latina. Isso é fascismo. As vezes nós, de esquerda, acreditamos que eles não são tão mal como são (risos), mas são fascistas sim. No Chile, durante o plebiscito, o jornalismo oligopólico, como gosto de chamar, apoiou a posição de rechaço à nova Constituinte, no que avaliamos como um apoio ao pinochetismo, ao fascismo. Apoiaram a constituição de Pinochet.
Como se dá a concentração dos veículos de imprensa no Chile ?
Os estudos sérios mais recentes da política econômica da comunicação são de sete ou oito anos e indicam que o Chile é o país com a maior taxa de concentração de veículos de comunicação da América Latina, junto com a Colômbia e Guatemala. Mais até que no Brasil porque somos um país unitário, e não uma federação. Isso também se reflete. Nossa estrutura de propriedade de jornal, radio e televisão é a mesma que tínhamos na ditadura. O que se configura na farsa do que estamos vivendo em termos de mercado midiático. No âmbito da comunicação digital se aprofunda a diversidade, não só na oferta, mas na audiência também. Ademais, se triplicaram depois das revoltas populares. Foi muito importante ver isso. Após as manifestações de outubro de 2019 o consumo dos meios digitais não-hegemônicos se triplicou no Chile. Passou também a abrigar outras idades. Os maiores de 60 anos entraram na audiência de uma forma nunca antes vista no Chile. E era quem menos lia. E depois dos protestos de outubro se converteu como segundo maior público. Ou seja, chegou gente nova.
“Os meios de comunicação tradicional sempre foram fascistas. O Globo nunca viu problema em apoiar golpes de Estado. O diário El País, da Espanha, apoiou todos os golpes de países da América Latina. Isso é fascismo. As vezes nós, de esquerda, acreditamos que eles não são tão mal como são (risos), mas são fascistas sim”.
Dá para dizer que outubro de 2019 foi um divisor de águas também para a comunicação no Chile ?
Mudou tudo, até porque a comunicação é parte da dinâmica política. Outro dado interessante: a audiência da televisão aberta perdeu 400 mil pessoas entre novembro e dezembro de 2019, ou seja, em dois meses. A principal hipótese levantada é porque a televisão criminalizou as manifestações. 400 mil pessoas se foram. Depois veio o Covid e a audiência na televisão aberta aumentou. Mas foi um castigo em uma audiência que nunca havia se visto. Nasceram meios digitais novos também.
A que se deve o descrédito da imprensa tradicional não só aqui no Chile, além da criminalização de revoltas sociais ?
É como parte do protocolo da plutocracia. Você vê de que lado está a comunicação da plutocracia quando se há revoltas como a de 2019. O Mercúrio (principal conglomerado empresarial de comunicação do Chile), quando cobria o povo mapuche nos anos 1980 o chamavam de bêbados, vagabundos, vândalos, delinquentes, turvos, agora é a mesma coisa. Isso não é novo, passa no Chile, Brasil, Honduras, México, protesto social é sempre criminalizado. Mas vem de trás. É uma continuidade histórica inaugurada pelos espanhóis, de que nós somos os bárbaros. É uma continuidade histórica de quem se opõe ao poder estabelecido que foi se sofisticando à medida que foi sofisticando a atuação dos meios de comunicação também.
A constituição brasileira proíbe a propriedade cruzada de comunicação, ou seja, um mesmo empresário não pode ter jornal, rádio e TV. Mas como esse trecho da Carta não foi regulamentada, a fiscalização é branda. Como é no Chile ?
Não é proibido. Na Constituição chilena atual, ainda da época da ditadura, a única proibição prevista no artigo 19 é sobre o monopólio estatal de meios de comunicação. Sei que a brasileira proíbe, a venezuelana, boliviana, argentina, uruguaia, mas no Chile não.
O tema “regulação da mídia” também é um tabu no Chile ?
Apesar de Bolsonaro e do golpe, estamos muito mais atrasados que vocês. Aqui não só não há restrição legal, mas se eliminou a regulação completamente. Daniel Jadue, candidato comunista que participou e perdeu as primárias para o candidato da Frente Ampla Gabriel Boric, propôs regular os meios de comunicação e foi um escândalo. É um tema tabu, vedado e quando tocam saltam todos. Agora a mim me dá a impressão de que falta preparação para defender o tema aos candidatos de esquerda e os líderes de esquerda. Jandue era um excelente candidato preparado nos temas econômicos, ecológicos, mas não estava preparado para debater comunicação. Boric é a mesma coisa, falta preparação nesse terreno. A comunicação é a falha tectônica da revolução, como dizia Hugo Chavez.
Falta preparação para o povo também ?
Eu penso que os povos estão preparados para discutir todos esses temas. Após as revoltas sociais os veículos tradicionais não podiam sair na rua. É causa do descrédito. A audiência castiga. Acho que o povo está preparado, mas nossos candidatos não estão. O que mostrou Venezuela, Uruguai e Argentina ? Que quando você envolve a população as pessoas participam e de forma forte.
“Mas isso vem de trás. É uma continuidade histórica inaugurada pelos espanhóis, de que nós somos os bárbaros. É uma continuidade histórica de quem se opõe ao poder estabelecido que se foi sofisticando, à medida que foi sofisticando a atuação dos meios de comunicação também”.
Há formas de controlar e fiscalizar fake news nas redes sociais sem resvalar para o discurso da censura ?
Quem mais avançou nisso foi o Brasil com o Marco Civil da Internet aprovado no governo Dilma e uma referência para a América Latina. Claro que quando veio Bolsonaro isso foi letra morta. Há várias formas de regular a mentira na internet. A inteligência humana nos permitiu chegar a Marte. Como não vamos usar essa inteligência para controlar isso ? Não é censura. É necessário. Um grupo na Espanha sugeriu que numa campanha presidencial se demonstra que um candidato divulga fake news não pode participar do debate presidencial. Perfeito. E eficaz. Há formas.
As fake news podem decidir as eleições no Chile ?
Não. Primeiro porque no Chile se usa fake news, mas não de forma pandêmica, como no Brasil, a exemplo do kit gay de Bolsonaro. No Brasil foi outro nível, mundial. Mas há outro ponto: na raiz das manifestações de 2019, o povo chileno viveu um processo radical de politização. E isso a esquerda tem que considerar sempre, essa luta é assimétrica. Quando o povo está politizado, a campanha de fake news, de boots, de montagens são mais difíceis. Uma maneira de enfrentar essa máquina que vocês viveram tão terrivelmente de conspiração política comunicacional, de fake news, de concentração de meios..
Mas o que aconteceu no Brasil, em relação ao whats app, serviu para vocês se protegerem mais ?
Não creio. Lamentavelmente o Chile está muito desconectado dos demais países da América Latina. É o país mais desconectado do que qualquer outro. Não só porque estamos no final do continente (risos), mas porque a classe política chilena, nos últimos 30 a 40 anos, não mira a América Latina É o que chamamos de neoliberalismo progressista. Ricardo Lago, Michele Barchelet, todos miraram a Europa. A Argentina tem uma estampa mais europeia, mas está muito mais relacionada com a Bolívia, o Brasil, o Uruguai… agora isso foi depois do golpe de 1973. Até Salvador Allende era diferente. Então, antigamente éramos muito conectados com a América Latina, hoje não.
“O povo chileno viveu um processo radical de politização. E isso a esquerda tem que considerar sempre, essa luta é assimétrica. Quando o povo está politizado, a campanha de fake news, de boots, de montagens são mais difíceis. Uma maneira de enfrentar essa máquina que vocês viveram tão terrivelmente de conspiração política comunicacional, de fake news, de concentração de meios”
O estopim para as chamadas jornadas de junho de 2013 no Brasil também foi um reajuste na tarifa de transporte público, assim como o detonador dos protestos de outubro de 2019 no Chile. Porque você acha que as revoltas populares nesses dois países tomaram rumos tão distintos ?
Há uma variável. A importância geopolítica do Brasil não é a mesma importância geopolítica do Chile. O Brasil tem uma importância mundial. Se o Brasil vira à esquerda todo o continente vira à esquerda. E se o Brasil vira à direita todo o continente vira à direita. Se o Brasil estabelece tratamentos soberanos e anti-imperialista, todo o continente lucraria com isso. Se o Chile faz não é a mesma coisa, salvo no histórico caso de Salvador Allende. Então, o que ocorreu em 2013 poderia girar a esquerda, mas o imperialismo não iria permitir. Jamais isso aconteceria no Brasil, por isso termina num golpe de estado.
O imperialismo apoia a força mais extrema que existir para impedir qualquer mudança para a esquerda na América Latina. O fim da ALCA na América Latina teve participação do Hugo Chavez, Nestor Kirchner, mas fundamental foi Lula. E isso provocou um grande retrocesso às forças imperialistas no continente. O imperialismo é capaz de qualquer coisa para frear esse movimento à esquerda no Brasil. E tem também o fato do PT ter perdido o apoio popular e suas conexões com a base histórica. Falam que a direita estava dando impressão de que não faria golpe de estado. Isso é mentira. A direita sempre faz golpes de Estado. Lugo no Paraguai, Evo na Bolívia, Dilma no Brasil.
As fake news tiveram grande penetração no meio evangélico no Brasil. Há uma preocupação maior com esse segmento no Chile ?
Há também, mas não com a força do Brasil. Lá vocês tem uma bancada evangélica, aqui tem um ou outro Senado. O contato da direita chilena com os setores mais populares são através dos evangélicos. Quem trabalha o mundo social mais profundo é o Partido Comunista do Chile e o segmento evangélico. Os evangélicos são um canal de comunicação das oligarquias com o povo. Isso, nos últimos 30 ou 40 anos, por isso são tão corruptas. No Chile não tem a força do Brasil, nem a força da igreja Católica.
“O imperialismo apoia a força mais extrema que existir para impedir qualquer mudança para a esquerda na América Latina. O fim da ALCA na América Latina teve participação do Hugo Chavez, Nestor Kirchner, mas fundamental foi Lula. E isso provocou um grande retrocesso às forças imperialistas no continente. O imperialismo é capaz de qualquer coisa para frear esse movimento à esquerda no Brasil”.
Chama atenção a pouca participação dos chilenos em eleições…
É que no Chile o voto é voluntário e participa muito pouca gente.
Dá pra mudar essa realidade usando as redes sociais ?
Sim. O plebiscito foi o momento em que mais gente participou, foram 51%, ou seja, ainda assim foi pouca gente. Temos no Chile esse problema de que pouca gente participa. Mas já aumentou . Entre os jovens de 18 a 29 anos pouca gente vota, mas para o plebiscito foi muita gente.
Para conhecer o trabalho de monitoramento coordenado por Pedro Santander acesse aqui
Esta reportagem integra o projeto Saiba Mais/ComunicaSul no Chile e está sendo financiada pela Intersindical, Sindicato dos Bancários do RN, Sicoob, Sintrajufe/RS, Apeoesp Sudoeste Centro, Sinjusc, Carta Maior, Hora do Povo, Diálogos do Sul, Agência Sindical e mais 136 pessoas que apoiaram individualmente esta cobertura colaborativa e acreditam no jornalismo independente.
O plenário da Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (16) a manutenção da medida provisória (MP) que recria o Ministério do Trabalho e Emprego, hoje sob o comando de Onyx Lorenzoni. A pasta foi extinta no início da gestão de Bolsonaro, em 2019, quando foi incorporado ao Ministério da Economia, mas foi recriada no último mês de julho.
Além da medida provisória oficializar a sua separação do Ministério da Economia, ficam estabelecidas algumas mudanças no funcionamento de secretarias do governo. Entre elas, a transferência da Secretaria Especial de Cultura, atualmente pertencente ao Ministério da Economia para o Ministério do Turismo.
Também fica estabelecida a criação do Domicílio Eletrônico Trabalhista, sistema digital que se propõe a informar diretamente empregadores sobre medidas administrativas, ações fiscais e demais avisos vindos do Ministério do Trabalho. O sistema, quando adotado, passa a funcionar no lugar do Diário Oficial em questões abordadas aos avisos. A MP será ainda analisada pelo Senado antes de retornar à Presidência da República.
Para o relator José Nelto (Podemos-GO), o Ministério do Trabalho “jamais poderia ter sido extinto por qualquer governo que preza pelos trabalhadores e empresários”, orientando parecer a favor da manutenção da medida. A medida recebeu orientação tanto de elementos governistas quanto da oposição. Entre eles, estava o deputado Bibo Nunes (PSL-RS), vice-líder do governo na Câmara, que se pronunciou em favor, afirmando que “o Ministério do Trabalho deve servir ao empregado e ao empregador, que deve ter as melhores condições para dar emprego”.
Nem todos os parlamentares apoiaram a medida. Na visão de Tiago Mitraud (Novo-MG), o projeto representa um aumento excessivo de gastos do governo, em uma gestão que havia prometido a redução dos ministérios durante as eleições. Alex Manete (Cidadania-SP) também se opôs à recriação do Ministério, afirmando se tratar de uma medida com fins políticos e eleitorais, e não de uma melhora administrativa.
congressoemfoco@congressoemfoco.com.br
LUCAS NEIVA – Repórter. Jornalista formado pelo UniCeub, foi repórter da edição impressa do Jornal de Brasília, onde atuou na editoria de Cidades. lucasneiva@congressoemfoco.com.br
Na sexta-feira (12), o presidente Jair Bolsonaro embarcou para Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, em lua de mel com o PL de Valdemar Costa Neto. Antes de partir em viagem, ele próprio dizia que a filiação estava “99% certa”. Quando desembarcou, porém, tudo estava mudado. Depois de uma “intensa” troca de mensagens, conforme o termo usado pelo próprio Valdemar, a filiação ao PL estava adiada. O que aconteceu enquanto o presidente viajava para o Oriente Médio é a explicação para a mudança de humores. E essa explicação, integrantes do PL interpretam que está em uma nota publicada na sexta-feira (12).
A nota, assinada pelo próprio Valdemar Costa Neto, diz que “caberá ao presidente do PL de Pernambuco, prefeito Anderson Ferreira, a condução dos trabalhos para a escolha dos nomes que constarão na chapa de candidatos majoritários e proporcionais das próximas eleições do estado”. O presidente do PL de Pernambuco, Anderson Ferreira, é o prefeito da cidade de Jaboatão dos Guararapes.
Embora houvesse movimentos do ministro do Turismo, Gilson Machado Neto, no sentido de cobiçar o comando do PL em Pernambuco, o estopim está menos nisso do que no recado dado ali, que levou Bolsonaro a interpretar que ele não teria o partido de porteira fechada como gostaria. Ao reafirmar o comando local em Pernambuco para a definição política, era lícita a interpretação de que isso poderia vir a valer para outros diretórios regionais também.
Segundo uma fonte do PL, não havia ali nenhum tipo de problema ideológico ou eleitoral. O PL de Pernambuco é, segundo a fonte, totalmente afinado à linha política de Bolsonaro. Mas estava dado o recado de que o comando sobre o partido não seria imposto, mas negociado.
A partir daí, a reação de Bolsonaro vem sendo interpretada dentro do PL como uma pressão do presidente para impor o seu comando. Uma pressão que, afirma-se no partido, não tirou o sono de Valdemar Costa Neto. No fim de semana, depois da “intensa” troca de mensagens com o presidente, o presidente do PL levou a sua filha ao circo.
Fonte: CONGRESSO EM FOCO https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/nota-divulgada-durante-viagem-de-bolsonaro-a-dubai-foi-estopim-da-crise-com-o-pl/
Promulgada em 12 de novembro de 2019, a contrarreforma da Previdência só trouxe problemas. Esse debate foi feito quando a proposta tramitou no Congresso Nacional. A EC (Emenda à Constituição) 103/19, conhecida como Reforma da Previdência trouxe muitas e variadas mudanças, que segundo advogados, geraram impactos negativos na vida dos trabalhadores brasileiros que contribuem para o RGPS (Regime Geral de Previdência Social), a cargo do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), principalmente em tempos de crise causada pela pandemia.
Com a obrigatoriedade de idade mínima de 62 anos para a aposentadoria de mulheres a de 65 para homens, pendurar as chuteiras ficou muito mais difícil.
Especialistas avaliam que a EC 103 representou endurecimento significativo das regras previdenciárias. Segundo o advogado Ruslan Stuchi, do escritório Stuchi Advogados, com a pandemia, as dificuldades impostas pela reforma pioraram o cenário, deixando muitos brasileiros sem benefícios (ou recebendo menos).
A mudanças nas regras previdenciárias para percepção de benefícios ficaram quase que inalcançáveis. Hoje, com a contrarreforma em vigor, o trabalhador, seja do Regime Geral (celetistas), ou de Regime Próprio (servidores), trabalha por mais tempo, contribui com mais, recebe benefício menor, por menos tempo.
“Houve um aumento no desemprego, o que dificultou para o segurado realizar contribuições ao INSS durante esse período, fazendo com que ele demore mais para se aposentar”, afirmou.
Retrocessos Para o advogado João Badari, do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados, diversos direitos de trabalhadores e segurados dos regimes Próprio e Geral de Previdência Social foram alterados, o que significou retrocesso para servidores públicos e trabalhadores da iniciativa privada.
“Entre as maiores mudanças estão as regras de aquisição dos benefícios, como a exclusão da possibilidade de se aposentar por tempo de contribuição, o aumento de idades mínimas (de homens e mulheres), as mudanças na pensão por morte e até a regulamentação de novas alíquotas de contribuição”, destacou.
Pensão por morte
Um dos maiores impactos ocorreu sobre as pensões por morte concedidas a partir de 13 de novembro de 2019. Antes desta data, esses benefícios eram concedidos aos dependentes com valor equivalente a 100%, ou seja, o seguro social pago mensalmente no caso de falecimento do mantenedor do lar garantia aos dependentes benefício integral.
Com a reforma, a regra mudou. A pensão não tem mais o redutor dos 20% dos menores salários de contribuição após a data de julho de 1994 (antes da reforma, descartavam-se os 20% menores recolhimentos; agora consideram-se todas as contribuições, ainda que pequenas).
E o benefício será de 60% da média das contribuições, mais 2% a cada ano de recolhimento a partir de 15 anos para mulheres e 20 anos para homens (para chegar a 100%, só com 40 anos de trabalho, no caso dos homens).
Após esses 2 redutores, ainda se aplica a alíquota de 50% e acréscimo de 10% para cada dependente, pois a pensão agora é calculada assim: paga-se 50%, mais 10% por dependente, incluindo a própria mulher. Portanto, uma viúva sem filhos tem direito a 60%.
Para se ter uma ideia, o advogado cita exemplo de cálculo da nova pensão:
“Vamos imaginar o senhor José, que faleceu em 2020 e deixou a mulher e 1 filho. Se a média das contribuições dele era de R$ 4 mil (descontando os 20% menores), se aplicarmos os redutores atuais e não excluirmos os 20% menores, se consideramos o coeficiente do salário de benefício de 60% e posteriormente usarmos a regra de 70% (esposa mais 1 filho), o benefício inicial dos beneficiários da pensão será em torno de R$ 1.500”, calculou.
Idade mínima Badari aponta que a obrigatoriedade de idade mínima de 65 anos para a aposentadoria de homens e de 62 para mulheres, imposta pela Reforma da Previdência, faz com que grande número de pessoas, notadamente as mais pobres, contribuam com o financiamento de sistema ao qual não terão acesso.
“A população de periferias urbanas ou das zonas rurais precisa entrar no mercado de trabalho mais cedo, vivendo em situação mais precária, trazendo também uma diminuição em sua expectativa de vida, que gira em torno dos 60 anos. Portanto, boa parcela dos mais carentes não poderá usufruir da tão sonhada aposentadoria”, afirmou.
Ele complementa: “São essas pessoas que mais precisam das garantias da Seguridade Social, formada pelo tripé Saúde, Assistência Social e Previdência. Os mais necessitados terão as maiores dificuldades para acessar a aposentadoria. Por outro lado, moradores de bairros nobres de grandes cidades, que têm melhores condições de renda, vivem cerca de 80 anos e contam com o benefício por mais tempo, com a contribuição dos mais necessitados.”
Trabalhar mais para ganhar menos
O advogado especialista em Direito Previdenciário Celso Joaquim Jorgetti, da Advocacia Jorgetti, ressalta que o brasileiro será obrigado a trabalhar por mais tempo e receber valor menor de benefício.
“Após a reforma, os pontos mais prejudiciais para o segurado foram a implantação de uma idade mínima para a aposentadoria e as novas formas de calcular o benefício. No caso da idade mínima a regra geral de aposentadoria passou a exigir pelo menos 62 anos de idade e pelo menos 15 anos de contribuição das mulheres e 65 anos de idade e 20 anos de contribuição dos homens. Já no cálculo do benefício, as novas regras preveem que valor da aposentadoria agora é calculado com base na média de todo o histórico de contribuições do trabalhador (não descartando as 20% menores)”, disse.
Jorgetti complementa que o segurado terá que trabalhar muito mais para conseguir benefício de maior valor porque, além de atingir o tempo mínimo de contribuição (20 anos se for homem e 15 se for mulher para aqueles que ingressarem no mercado de trabalho depois da reforma), os trabalhadores do Regime Geral terão direito a 60% do valor do benefício integral, com o percentual subindo 2 pontos para cada ano a mais de contribuição.
“Para ter direito a 100% da média dos salários, a mulher terá de contribuir por 35 anos, e o homem, por 40 anos”, acrescentou.