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DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Proteção do direito do trabalho vai além do salário e da jornada

Proteção do direito do trabalho vai além do salário e da jornada

Leio em um jornal eletrônico, em grande destaque: “Lula sanciona leis que ampliam licença e salário maternidade” [1]; e de outro periódico extraio a notícia: “Ministro do Trabalho diz que governo apoia fim da escala 6 x 1” [2].

Aliás, em breve pesquisa na legislação vigente, verificam-se outros direitos trabalhistas bastante recentes e importantíssimos, como o contido na Lei nº 14.611, de 3 de julho de 2023, que dispõe sobre “a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens” e os da Lei 14.457, de 21 de setembro de 2022, que institui o “Programa Emprega + Mulheres”, com dispositivos destinados à inserção e à manutenção de mulheres no mercado de trabalho de modo digno, com olhar para a proteção da mulher e daqueles que dela dependem.

Tais direitos, infelizmente, podem virar história antes mesmo de serem promulgados ou efetivamente implementados, o que, não obstante, pode ocorrer com a maioria dos direitos trabalhistas vigentes desde os primórdios da Consolidação das Leis do Trabalho.

Valorização excessiva das relações jurídicas

Nos últimos tempos, tem-se aflorado certa tendência jurisprudencial, em especial modo nas cortes superiores, no sentido de valorizar, excessivamente no meu entender, o formalismo sobre o qual se pactuam as relações jurídicas, em detrimento dos fatos que se desenvolvem, efetivamente, no âmbito da realidade.

Essa compreensão das coisas no mundo do trabalho, com todo respeito, é de extrema gravidade e de extrema força derruidora para o próprio direito do trabalho.

Não é por acaso que o direito do trabalho tem no princípio da primazia da realidade uma de suas pilastras de sustentação. Alfredo J. Ruprecht, quando fala a respeito desse princípio, destaca que “o contrato de trabalho não é o que resulta de qualquer forma de acordo, mas o que surge da realização das tarefas” [3], o que, por óbvio, tem uma razão de ser: a disparidade econômica vigente em um contrato de trabalho, que torna o trabalhador um coato em termos econômicos e que, por isso, aceita submeter-se a formas contratuais fictícias e prejudiciais, em troca de sua fonte de subsistência.

Segundo Américo Plá Rodriguez, essa é uma ideia universal no sentido de que “se somente se admitisse a realidade do contrato nos casos em que houvesse acordo escrito ou convenção verbal, se burlariam muitas das medidas de proteção adotadas pelo legislador.”[4]

Não acredito que alguém duvide disso.

Atos nulos com intenção de fraude

Aliás, um tal aspecto do direito do trabalho é tão importante que a CLT, retumbantemente ignorada nestes tempos de “empreendedorismo exacerbado”, no seu artigo 9º, vigente desde a sua promulgação, diz que “serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.

Perceba-se, por outro lado, que o artigo 7º da Constituição prevê inúmeros direitos trabalhistas, cujo exercício fala de perto à própria cidadania da pessoa trabalhadora, e que somente se viabilizam por meio do contrato de trabalho.

Na visão de João Leal Amado, “para o Direito do Trabalho releva, sobretudo, o fonómeno do trabalho assalariado, subordinado, prestado por conta alheia. E o mecanismo jurídico através do qual se realiza o acesso a esse trabalho subordinado é o do contrato individual de trabalho”[5].

Materialização dos direitos sociais

Com efeito, há uma centralidade do contrato de trabalho como instrumento de materialização dos direitos sociais. A Constituição, dizem Lorena Vasconcelos Porto e Augusto Grieco Sant’Anna Meirinho, ostenta conformação humanística capaz de impedir  retrocessos sociais trazidos por legislação inferior que com ela se atrite e, dizemos nós, até mesmo retrocessos provenientes da interpretação inadequada da lei.

Na visão desses autores, citando Eduardo Marques Vieira de Araújo, “a Constituição estabeleceu um extenso rol de direitos fundamentais, os quais operam como anteparo contramajoritário” [6], ou seja, em tempos de exasperação liberalizante prevalece, como antídoto à “tirania da maioria” [7], o que se convencionou em tempos constituintes.

Desconsiderar o princípio da primazia da realidade; desconsiderar a centralidade do contrato de trabalho como canalizador de direitos sociais; desconsiderar a regra de ordem pública contida no artigo 9º da CLT, é, em grande medida, afastar a aplicação da própria Constituição.

Comecei este pequeno artigo adotando, estrategicamente, como forma de chamar a atenção do leitor, um título forte, chamando direitos recém-criados ou ainda apenas cogitados de “direitos natimortos”.

Mas não há nisso nenhum exagero, infelizmente. Aliás, o que se perde com essa tempestade que se abate sobre o direito do trabalho é muito maior.

Funções do direito do trabalho

Alain Supiot, estudioso francês especialista em direito do trabalho e da segurança social, assevera que “na relação de trabalho, o trabalhador, ao contrário do empregador, não arrisca o património, arrisca a pele. E foi, desde logo, para salvar esta última que o direito do trabalho se constituiu”. [8]

A proteção que se pretende com o direito do trabalho vai muito além de proporcionar à pessoa do trabalhador o salário adequado e a jornada limitada.

O direito do trabalho fala de perto à dignidade da pessoa humana. É sua função contemplar a proteção física do obreiro, na eliminação de riscos acidentários; assim como é dele uma espécie de efeito futuro, no seu desdobramento em Direito Previdenciário, de forma a assegurar àquele que se vale de seu trabalho para o sustento próprio e de sua família, uma espécie de “mínimo existencial” em termos de aposentadoria; e a isso somem-se prerrogativas sindicais, o direito de o trabalhador, por seu sindicato, poder valer-se da “autonomia privada coletiva” para alcançar melhores condições de trabalho.

Ao se ignorar o princípio da primazia da realidade, ao se atribuir valor exagerado a papéis assinados sob coação econômica, em uma relação jurídica marcadamente desigual, desvirtua-se o direito do trabalho, desprotege-se o hipossuficiente, enfraquece-se o movimento sindical e implode-se o sistema previdenciário.

[1] Aqui

[2] Aqui

[3] RUPRECHT, Alfredo J.. Os Princípios do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr Editora, 1995, p. 81.

[4] RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho. Trad. GIGLIO, Wagner D. São Paulo: LTr Editora, 1993, p. 228.

[5] AMADO, João Leal. Contrato de Trabalho: noções básicas. Coimbra: Almedina, 2018, p. 47.

[6] MIESSA, Élisson; CARREIRA, Henrique, Org. A Reforma Trabalhista e seus Impactos. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 844.

[7] TOCQUEVILLE, Alexis. Da Democracia na América. Campinas: Vide Editorial, 2019, p. 331

[8] SUPIOT, Alain. Crítica do Direito do Trabalho. Lisboa: Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2016, p. 92-93.

  • é desembargador do Trabalho, mestre em Ciência Jurídica e especialista em Direito Processual Civil.

CONJUR
https://www.conjur.com.br/2025-out-11/direitos-trabalhistas-natimortos/

Proteção do direito do trabalho vai além do salário e da jornada

TRT-15 afasta adicional de insalubridade máximo para agente comunitária de saúde

Por unanimidade, a 3ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (interior de São Paulo) reformou sentença que havia reconhecido o direito ao adicional de insalubridade em grau máximo — 40% — a uma agente comunitária de saúde de Limeira (SP). Os desembargadores entenderam que a trabalhadora faz jus ao adicional de insalubridade em grau médio — 20% —, que já era pago pelo município.

A trabalhadora alegou que realizou visitas domiciliares e vistorias relacionadas à prevenção da dengue durante a epidemia de Covid-19, o que justificaria o pagamento do adicional em grau máximo, em razão da exposição de forma contínua a agentes biológicos.

Contudo, o relator do processo, juiz convocado Robson Adilson de Moraes, destacou que as atividades desempenhadas não caracterizaram o trabalho em “contato permanente com pacientes em isolamento por doenças infectocontagiosas”, exigência prevista no Anexo 14 da Norma Regulamentadora 15 do Ministério do Trabalho para a concessão do adicional em seu grau mais elevado.

Embora a agente tenha atuado em campanhas de saúde, realizado coletas em residências e, eventualmente, mantido contato com pessoas infectadas, o colegiado concluiu que tais situações foram esporádicas e não se equiparam ao trabalho realizado em ambientes hospitalares ou em unidades de saúde voltadas ao atendimento direto de pacientes em isolamento, conforme exigem a norma regulamentar e a Súmula 448, item I, do Tribunal Superior do Trabalho.

A decisão ressaltou, ainda, que o TST possui jurisprudência consolidada no sentido de que os agentes comunitários de saúde fazem jus ao adicional de insalubridade em grau médio — 20% —, e não em grau máximo, salvo em casos excepcionais devidamente comprovados, o que não ocorreu no processo. Com informações da assessoria de imprensa do TRT-15.

Processo 0011205-51.2024.5.15.0128

CONJUR
https://www.conjur.com.br/2025-out-11/trt-15-afasta-adicional-de-insalubridade-em-grau-maximo-para-agente-comunitaria-de-saude/

Proteção do direito do trabalho vai além do salário e da jornada

Novo vínculo de emprego no Brasil: alienidade e controle reticular

O direito do trabalho, em sua gênese, foi moldado pela realidade da Revolução Industrial. Seu conceito basilar, a subordinação jurídica, foi cunhado para descrever a relação de sujeição do operário ao poder diretivo do empregador no espaço confinado da fábrica. Este modelo, a que podemos denominar subordinação clássica ou disciplinar, tornou-se obsoleto diante das novas tecnologias.

Desde a promulgação da Lei 12.551/2011, contudo, já possui uma modalidade adicional de vínculo de emprego. A nova redação do artigo 6º da CLT é a porta de entrada para essa nova modalidade, alinhada a matrizes teóricas fundamentais: a noção de alienidade, a partir de uma análise aprofundada de seus formuladores espanhóis; a teoria da sociedade de controle, de Gilles Deleuze e o conceito de poder empregatício algorítmico.

Não houve a supressão da subordinação como conceito doutrinário e jurisprudencial a partir da não tão nova redação do artigo 6º da CLT. Apenas foi agregado, pelo Parlamento, um critério adicional para a configuração do vínculo de emprego.

Da sociedade disciplinar à insuficiência da subordinação clássica

Gilles Deleuze, em seu “Post-scriptum sobre as Sociedades de Controle“, descreve a sociedade disciplinar como aquela que opera por meio de ambientes de confinamento (a fábrica, a escola, a prisão). O poder atua moldando o indivíduo através de horários rígidos e vigilância hierárquica. A subordinação jurídica clássica é um produto exemplar dessa lógica. O esgotamento deste modelo tornou-se evidente com o surgimento de formas de trabalho nas quais o controle não se dava mais pela clausura e pela ordem direta.

Lei 12.551/2011: positivação da subordinação reticular

A alteração do artigo 6º da CLT em 2011 foi a resposta legislativa a essa crise. O caput equalizou o trabalho realizado no estabelecimento, no domicílio e a distância, mas foi seu parágrafo único que operou a verdadeira revolução conceitual:

“Parágrafo único. Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.”

Ao validar o controle tecnológico como sucedâneo do controle pessoal, a lei consolidou no direito positivo a tese da subordinação reticular. Esta nova modalidade de subordinação se caracteriza não pela sujeição a ordens diretas, mas pela integração do trabalhador na estrutura em rede, na dinâmica e na cultura organizacional da empresa.

Essa consolidação da subordinação reticular no Brasil encontra seu mais forte paralelo teórico na multifacetada doutrina da “ajenidad” do direito espanhol, construída por notáveis juristas ao longo do século 20.

Dimensões da ajenidad e seus formuladores na doutrina espanhola

A “ajenidad” (alienidade, na tradução de Pontes de Miranda) é uma construção teórica complexa, cujas diferentes facetas foram lapidadas por grandes laboralistas espanhóis.

  1. Ajenidad en los Riesgos (Alienidade nos Riscos): A primeira sistematização robusta do conceito focou na ideia de que o empregador assume os riscos e as venturas do negócio. O autor central dessa perspectiva é Gaspar Bayón Chacón, que, em seus estudos pioneiros, estabeleceu que a alienidade se caracteriza pelo fato de o trabalhador ter seu direito ao salário garantido, sendo alheio ao sucesso ou fracasso comercial da empresa.
  2. Ajenidad en los Frutos (Alienidade nos Frutos): O passo seguinte, e talvez o mais influente, foi dado por Manuel Alonso Olea. Para ele, a alienidade nos riscos era uma consequência de algo mais fundamental: a alienidade nos frutos. Segundo sua tese, o objeto do contrato de trabalho é a cessão da força de trabalho em si, e não o resultado final. Portanto, os frutos (o produto ou serviço) pertencem desde sua origem (ab initio) ao empregador. O trabalhador é alheio à titularidade do que produz.
  3. Ajenidad en el Mercado (Alienidade no Mercado): A perspectiva mais moderna e crucial para a análise do trabalho contemporâneo foi, como você corretamente apontou, formulada de maneira decisiva por Manuel Ramón Alarcón Caracuel. Embora a obra de Alfredo Montoya Melgar já desenvolvesse a noção de integração do trabalhador na “esfera organizativa” do empregador, foi Alarcón Caracuel, em seu seminal artigo de 1986, quem isolou, nomeou e aprofundou a “ajenidad en el mercado” como critério autônomo. Sua tese foca em quem se apresenta como empresário no mercado de bens e serviços. No contrato de trabalho, é o empregador, e não o trabalhador, quem assume essa posição, vendendo a obra ou o serviço ao cliente final. Esta perspectiva é a que mais diretamente se equipara à subordinação reticular brasileira.
  4. Ajenidad en la Utilidad Patrimonial (Alienidade na Utilidade Patrimonial): Esta dimensão é um corolário lógico das demais. Sendo alheio aos riscos e aos frutos, o trabalhador também o é em relação ao resultado econômico final (o lucro ou prejuízo). A apropriação do lucro pelo empregador, em contrapartida ao pagamento de um salário fixo, é a consequência natural tratada nas obras sintéticas de autores como Alonso Olea e Montoya Melgar.

‘Controle’: chave hermenêutica deleuziana para o data power

A escolha do vocábulo “controle” pelo legislador brasileiro é a senha para compreender a profundidade da mudança. Deleuze contrapõe a disciplina (que molda) ao controle (que modula). Na sociedade de controle, o poder é digital, contínuo e funciona como uma modulação em rede.

O “controle” telemático do artigo 6º da CLT é a própria encarnação da sociedade de controle no mundo do trabalho. O algoritmo não dá ordens diretas, mas gerencia, avalia e modula o comportamento do trabalhador de forma contínua, por meio de sistemas de reputação, preços dinâmicos e design de incentivos. A lei, ao equiparar esse controle informático ao comando pessoal, captou o zeitgeist que Deleuze profetizou no inicio dos anos 90.

A jornada do conceito de subordinação é a crônica de sua adaptação a uma sociedade em transformação. A alteração do artigo 6º da CLT em 2011 foi o reconhecimento jurídico de que o poder mudou de um modelo disciplinar para um paradigma de controle. Nesta nova realidade, a subordinação é mais bem compreendida como subordinação reticular, cuja essência é a alienidade.

A rica doutrina espanhola, com as contribuições de Bayón Chacón sobre os riscos, Alonso Olea sobre os frutos e, crucialmente, Alarcón Caracuel sobre o mercado, oferece o arcabouço teórico mais robusto para essa análise comparada.

No caso de aplicativos e plataformas de trabalho, especialmente a doutrina da alienidade de mercado, aplica-se a essas hipóteses, pois o trabalhador é obstado de acesso ao mercado reticular e não tem acesso à clientela que pertence à empresa e atua na forma de marketplace ou até de, paradoxalmente, de mercado cativo na chamada economia de livre mercado.

A interpretação do direito do trabalho contemporâneo, orientado a dados, exige, portanto, um olhar interdisciplinar, em que a filosofia de Deleuze e a dogmática do poder algorítmico em rede passam a ser ferramentas fundamentais para nomear e tutelar as novas formas de sujeição na sociedade de controle reticular. O Parlamento já cumpriu seu papel, com a edição da da Lei 12.551/2011. Agora é a oportunidade de o STF conectar-se a esse cenário do big data produtivo.

  • é desembargador aposentado do TRT-MG, doutor em Direitos Fundamentais, professor convidado do PPGD (mestrado e doutorado) da UFMG e diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (Ipeatra) e do Instituto Ideia (Direito e Inteligência Artificial).

CONJUR
https://www.conjur.com.br/2025-out-11/novo-vinculo-de-emprego-no-brasil-alienidade-e-controle-reticular/

Proteção do direito do trabalho vai além do salário e da jornada

O vínculo de emprego pode ser erradicado no Brasil?

A nação aguarda ansiosamente o julgamento do Tema 1.389 pelo Supremo Tribunal Federal. Ao suspender nacionalmente as ações que discutem a fraude no contrato de trabalhador autônomo ou de pessoa jurídica para a prestação de serviços, o ministro Gilmar Mendes justificou que “o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica, resultando na multiplicação de demandas que chegam ao STF, transformando-o, na prática, em instância revisora de decisões trabalhistas”.

Mas será verdade que a Justiça Laboral tem driblado as conclusões da ADPF-324, ou a Suprema Corte tem utilizado uma espécie de hiperintegração do precedente [1] para ampliar seu alcance?

Primeiro, como identificar a ratio decidendi

Não há consenso doutrinário sobre a identificação da ratio decidendi ou obiter dictum de uma decisão. No common law, o desafio dos advogados e juízes consiste justamente em classificar os argumentos como fundantes (holding) ou secundários (dictum).

No verbete Precedentes, o professor Lenio Streck demonstra o dissenso doutrinário anglo-saxão: para Arthur Goodhart, a ratio seria determinada a partir da verificação dos fatos tratados como fundamentais ou materiais pelo juiz, cuja visão, porém, é contestada por Rupert Cross, para quem aquela fórmula despreza a relação com casos passados.

Para Eugene Wambaugh, a ratio constitui “uma regra identificável a partir do elemento da decisão sem o qual o caso em questão deveria ter sido decidido de outra maneira” [2].

Para Karl Llewellyn, jurista americano, existem pelo menos 64 técnicas para identificação do holding; além do “teste de Wambaugh” (acima descrito), a ratio pode ser identificada negativamente (excluindo-se o que ela não é); ou pelo “teste de Oliphant” (estímulo-resposta); ou pela “fórmula Scalia” (generalizando aos poucos os fundamentos determinantes até se chegar ao nível mais específico, em que um direito constitucional assegurado pode ser identificado) e assim por diante [3].

Qual a ratio decidendi da ADPF-324? Caso concreto

Das 278 laudas que compõem o acórdão, é possível identificar os principais argumentos dos votos prevalentes, sem os quais a decisão seria outra.

Em debate: a (i)licitude da terceirização da atividade-fim.

No voto condutor, o ministro Luiz Fux destacou os seguintes fundamentos, dentre outros, para admitir a terceirização irrestrita:

(1) o valor social do trabalho dialoga com a livre iniciativa;
(2) a restrição da terceirização colide com a liberdade jurídica e restringir uma liberdade exige do Estado elevado ônus justificativo;
(3) a divisão entre atividade meio e atividade fim é imprecisa, artificial é incompatível com a economia moderna, onde há especialização e divisão das tarefas, visando maior eficiência das empresas, a exemplo do iPhone (Apple), cujo hardware é fabricado pela empresa (Foxconn), que utiliza processadores de uma terceira (Intel), numa coordenação de agentes especializados para o melhor resultado;
(4) a cisão das atividades entre pessoas jurídicas diferentes é uma questão estratégica e não fraudulenta, pois visa proteger a  empresa e manter o emprego dos trabalhadores;
(5) a terceirização não precariza, reifica ou prejudica os empregados, mas reduz desemprego, diminui o turnover, promove crescimento econômico e aumento de salários;
(6) há redução do desemprego, segundo pesquisa;
(7) a tomadora de serviços é responsável subsidiária em relação à prestadora pelos encargos trabalhistas da última, ou seja, a terceirização deve se compatibilizar “com as normas constitucionais de tutela do trabalhador, cabendo à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias.”

Após narrar a evolução dos modelos taylorista/fordista para o toyotismo, o ministro Barroso definiu a terceirização como transferência para outra empresa de parte da atividade produtiva, fenômeno inerente ao mundo globalizado, acrescendo fundamentos:

(1) “este não é um debate entre progressistas e reacionários, este é um debate e esta é uma discussão sobre qual é a forma mais progressista de se assegurarem empregos, direitos dos empregados e desenvolvimento econômico. Porque, se não houver desenvolvimento econômico ou sucesso empresarial das empresas, não haverá emprego, renda ou qualquer outro direito para os trabalhadores”;
(2) “deve-se atribuir à contratante a responsabilidade por fiscalizar os recolhimentos trabalhistas e previdenciários da empresa terceirizada”;
(3) “há, de fato, duas relações bilaterais: i) a primeira, de natureza civil, consubstanciada em um contrato de prestação de serviços, celebrado entre a contratante e a empresa terceirizada, denominada contratada;
4) a “segunda, de natureza trabalhista, caracterizada por uma relação de emprego, entre a contratada e o empregado. Assim, há, na última contratação, típica relação trabalhista bilateral, plenamente adequada à incidência do direito do trabalho”;
(5) “a atuação desvirtuada de algumas terceirizadas não deve ensejar o banimento do instituto da terceirização. Entretanto, a tentativa de utilizá-lo abusivamente, como mecanismo de burla de direitos assegurados aos trabalhadores, tem de ser coibida. Essa é a condição e o limite para que se possa efetivar qualquer contratação terceirizada. Os ganhos de eficiência proporcionados pela terceirização não podem decorrer do descumprimento de direitos ou da violação à dignidade do trabalhador. A contratante — sabedora da existência desse tipo de empresa — deve tomar todas as medidas necessárias a assegurar o respeito à integralidade dos direitos e dos deveres trabalhistas, previdenciários e de saúde e segurança no trabalho, que decorrem da relação de emprego entre a empresa terceirizada e seu empregado”.

(1) “os casos ora tratados não têm por objeto a relativização de direitos sociais ou a desvalorização do trabalhador”;
(2) “em nenhum momento a opção da terceirização como modelo organizacional por determinada empresa permitirá, seja a empresa ‘tomadora’, seja a empresa ‘prestadora de serviços’, desrespeitar os direitos sociais, previdenciários ou a dignidade do trabalhador”;
(3) “da mesma maneira, caso a prática de ilícita intermediação de mão de obra, com afronta aos direitos sociais e previdenciários dos trabalhadores, se esconda formalmente em uma fraudulenta terceirização, por meio de contrato de prestação serviços, nada impedirá a efetiva fiscalização e responsabilização, pois o Direito não vive de rótulos, mas sim da análise da real natureza jurídica dos contratos”.

Os votos convergentes mantiveram os fundamentos essenciais e a ementa do acórdão preservou o vínculo empregatício, ao dispor: “Observância das regras trabalhistas por cada empresa em relação aos empregados que contratarem”. Na sequência, foi definida a seguinte “tese” — Tema 725/STF:

“É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.”

Porém, a “tese” ganhou vida própria. Nos julgamentos posteriores, o Tema-725/STF passou a sofrer da chamada hiperintegração, irradiando seus tentáculos para outros casos, sem relação com a terceirização.

A “tese” passou a figurar como álibi argumentativo para validar toda sorte de “pejotizações” e outras formas de trabalho autônomo, desprezando as premissas (holding) que fundaram o julgamento.

Porém — e isso fica comprovado pela leitura do acórdão que gestou o Tema 725-STF, nenhuma linha do caso paradigma eliminou a relação de emprego; ao contrário, todos os votos dedicaram laudas para proteger os direitos sociais fundamentais.

Mas por que a terceirização irrestrita transformou-se em pejotização?

A pejotização não resiste à hermenêutica adequada. O professor Lenio Streck não se cansa de provar que, no Brasil, não existe um “sistema de precedentes”. Malograda será a tentativa de precedentalização do direito, por incompatibilidade e ausência de uma teoria de base.

Na forma como as teses se estabeleceram no Brasil — por meio de enunciados prêt-à-porter, esclarece o professor que “raramente a ementa citada vem acompanhada do contexto histórico temporal que cercou o processo originário. Não há a reconstrução da história institucional do ‘precedente’. Esse problema agravou-se com a aprovação do efeito vinculante das súmulas (embora o problema já existisse antes) e o surgimento daquilo que vem sendo denominado de ‘cultura de precedentes’. Ora, os fatos não cabem na ‘ementa’ ou no ‘precedente’, porque “a verdade não cabe no conceito”, de modo que a estrutura do raciocínio jurídico está baseada mais no argumento de autoridade do que na autoridade do argumento [4].

O professor André Coelho, no 7º Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito em 29/11/2024, sustentou que o “sistema de precedentes”, com sua verticalidade, soma o pior dos dois mundos: (1) cria uma norma (tese, súmula, texto) sem legitimidade democrática que se desprende do caso original (como se as cortes superiores julgassem “putativamente” todos os casos que tratem do mesmo tema; o juiz passa a ser a “boca” das Cortes de Vértice) e (2) busca promover um controle horizontal, pois quando um ou mais julgados fogem da lógica padronizada, recorre-se ao incidente de uniformização da jurisprudência (IUJ), o que leva à limitação da qualidade (e quantidade) dos argumentos racionais, conduzindo a uma simplificação do direito.

Há um fechamento hermenêutico forçado, porque é impossível desprezar as premissas fáticas do caso. Com Heidegger e sua hermenêutica da faticidade, não existe uma universalidade que contenha todos os sentidos, porque os sentidos se dão na concretude. A assertiva “não há lagartos em geral”, mas sempre um “dado tipo de lagarto” inspira-nos a pensar nas particularidades da espécie que caracterizam o ser, porque somente na concretude que se atribui o sentido (o é da coisa).

Portanto, não existem vínculos de emprego em geral, mas vínculos que se caracterizam na (e a partir da) faticidade, quando comprovados os pressupostos normativos.

Mesmo assim, o próprio STF é cambiante nas decisões sobre o tema relativo ao vínculo de emprego na “pejotização”: (1) ora compreende que há lagartos em geral, quando, forçosamente, adapta o caso ao precedente, desconsiderando as especificidades daquela relação jurídica; (2) ora compreende que as especificidades do lagarto lho afastam do precedente, porque as premissas do caso (subordinação) não se adaptam à permissão genérica da terceirização.

O positivismo fático tem essa característica: o tribunal põe o direito (diz que pode terceirizar); assim a doutrina descreve esse direito (tautologicamente: é possível terceirizar). Mas como o positivismo não se preocupa com a decisão judicial (o direito descrito não vincula), a (nova) decisão estará “livre” para pôr novo direito (pejotização). Consequentemente, entra-se num “looping” vicioso, que desautoriza a pretensão de segurança jurídica pretendida pelo “precedente”.

Por tudo isso, qual seria o telos dessa interpretação ilimitada promovida pelo STF? Erradicar o vínculo de emprego? Haverá espaço para a advocacia distinguir as particularidades do caso concreto em relação à terceirização, que nada tem a ver com pejotização? Ou o precedente é/será plenipotenciário e onipresente neste debate? Por que razão o Tema 725-STF foi distorcido — e transmutado — a ponto de se desprender dos fundamentos determinantes que lhe deram origem?

Reflexões finais

No livro Germinal, Emile Zolá mostrou o sofrimento dos trabalhadores nas minas de carvão, sem proteção à saúde e à segurança, o que provocou revolta dos operários, insurrectos com o sistema opressivo.

As assimetrias vêm de longe. E no Brasil, país de modernidade tardia, não foi diferente; a relação capital-trabalho é assimétrica na generalidade dos casos. Por isso, nossa Constituição compromissória garantiu direitos sociais mínimos (artigos 6º a 11), mas tudo isso pode ruir com a existência de um contrato formal entre pessoas jurídicas, ou, indo mais longe, até mesmo quando houver uma relação informal com alegada autonomia do trabalhador.

Da forma como as reclamações constitucionais estão sendo examinadas pelo STF, a pejotização irrestrita vai tornar “empresários”, do dia para noite, toda sorte de trabalhadores. Basta a existência de um contrato escrito para o caso “entrar na tese”. Ou pior: basta uma relação informal, alegadamente “autônoma”, para suspender a tramitação do processo (vide a Reclamação 79.504, pela qual o ministro Cristiano Zanin suspendeu a ação de um desafortunado servente de obras, que trabalhou menos de 03 meses, recebendo salário mensal de R$ 2 mil, sem CTPS anotada).

Imaginem o minerador descrito por Zolá reivindicando limites à jornada, uma folga semanal ou o salário mínimo. Se pejotizado, receberia um veredito prêt-à-porter: você decidiu ser empresário e não deve ser protegido. Pelo realismo jurídico e sua máxima (o direito é o que os tribunais dizem que é) afasta-se, com um simples piparote, as duras conquistas inscritas no artigo 7º da CF.

Liberdade e igualdade estão subjacentes às reflexões dessa natureza. Ao radicalizar a liberdade contratual em detrimento da igualdade, é preciso relembrar a frase de Isaiah Berlin: “a total liberdade do lobo é a morte dos cordeiros” [5].


[1] A “hiperintegração” do precedente significa a adoção da regra geral para casos que são distintos, enquanto a “desintegração”, noutro extremo, exagera na singularização do caso, de modo a negar-lhe aplicação a casos similares. (RAMIRES, Maurício – Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 104-105).

[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2ª ed. Letramento; Casa do Direito, 2020, p. 351-352.

[3] RAMIRES, Maurício. Idem. p. 69.

[4] STRECK, Lenio Luiz – Ensino jurídico e(m) crise: ensaio contra a simplificação do direito. São Paulo: Editora Contracorrente, 2024, p. 90-95.

[5] Apud COUTINHO, João Pereira – As ideias conservadoras explicadas a revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 48.

  • é advogado, pós-graduado em Direito Processual do Trabalho pela Universidade de Caxias do Sul, mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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Proteção do direito do trabalho vai além do salário e da jornada

TST condena SPTrans a reintegrar trabalhador com transtorno afetivo bipolar

A Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho determinou a reintegração de um técnico administrativo da São Paulo Transporte S.A. (SPTrans) que foi diagnosticado com transtorno afetivo bipolar e demitido, sem justificativa, durante o contrato de experiência. Ele também deverá receber indenização de R$ 60 mil.

Na reclamação trabalhista, o empregado disse que foi aprovado em concurso para o cargo de técnico de processo administrativo. Durante o treinamento, passava longos períodos aguardando a liberação de uma estação de trabalho, o que teria desencadeado crises de ansiedade e agravado seu quadro de saúde. Ao retornar às atividades depois do afastamento médico, foi comunicado da rescisão antecipada do contrato. Na ação trabalhista, ele alegou que foi discriminado em razão de sua condição.

O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (Grande São Paulo e litoral paulista) havia determinado a reintegração do empregado, mas a 8ª Turma do TST, no julgamento do primeiro recurso da SPTrans, considerou a demissão válida. Para esse colegiado, não havia provas de que o transtorno bipolar acarretasse estigma social suficiente para presumir discriminação. A decisão destacou ainda que, segundo a empresa, o motivo do desligamento foi o desempenho abaixo do esperado.

Transtorno e preconceito

O relator dos embargos do trabalhador à SDI-1, ministro Breno Medeiros, ressaltou que a Súmula 443 do TST prevê a possibilidade de considerar discriminatória a dispensa de empregados portadores de doenças graves, especialmente quando a condição de saúde envolve algum tipo de preconceito social. A seu ver, os transtornos psiquiátricos, como o transtorno afetivo bipolar, enquadram-se nessa classificação. Como a empresa não apresentou provas de outros motivos que justificassem a dispensa, a presunção de discriminação foi mantida.

Ficaram vencidos o ministro Alexandre Ramos e a ministra Dora Maria da Costa. Com informações da assessoria de imprensa do TST.

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Ag-E-ED-RR 1002067-51.2017.5.02.0063

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