OPINIÃO
A Câmara dos Deputados aprovou, nesta quarta-feira (12/6), em votação em tempo recorde a urgência do Projeto de Lei (PL) nº 1.904/24, que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio, incluindo casos de estupro.
Esse absurdo me fez relembrar da violência cultural que é reproduzida pela “lenda” do boto cor-de-rosa. Isso porque o Estado está a demonstrar que o folclore não é uma mera abstração comunitária, pois passa a firmar uma cultura de que a violência sexual contra a mulher é algo legítimo e que deve ser incorporado socialmente, agravado pela possibilidade de criminalização em caso de se tentar interromper o ciclo de agressão.
Disso os representantes do povo enfatizam que a mulher deve suportar todas as consequências do fruto de um estupro, a favor das determinações do Estado, que agora não se limita ao seu corpo, mas na formação da sua vida, família e relações intersubjetivas. Talvez seja essa a perspectiva de família tradicional.
Pois bem. Como eu disse, esse cenário me fez recordar a lenda do boto. É claro que hoje eu visualizo essa história como uma verdadeira reprodução cultura de subserviência da mulher no contexto social, bem diferente da minha infância e adolescência que internalizava tudo isso enquanto folclore literário.
Essa lenda relata que, durante à noite, o boto se transformaria em um belo e charmoso rapaz, saindo da água para conquistar as mulheres ribeirinhas na Amazônia. A história diz que os botos vão aos bailes e dançam alegremente com elas, que logo se envolvem em meio a seus galanteios. Apaixonam-se e engravidam deste rapaz. O boto anda sempre de chapéu, pois dizem que de sua cabeça exala um forte cheiro de peixe.
Depois de ter realizado o ato sexual o boto desaparece antes do amanhecer e volta à sua forma animal na água sem que ninguém o veja. “O chapéu esconde a grande evidência de que aquele homem é, na verdade, o boto. Existem versões da lenda que falam que o boto procura a mulher mais bonita da festa para seduzi-la, e outras, que ele não procura necessariamente a mais bonita, mas sim uma mulher virgem.” (Brasil Escola)
A partir de estudos acadêmicos, descobriu-se o óbvio acerca da lenda, considerando que essa narrativa perpassa o folclore brasileiro e enreda o silenciamento de altos índices de estupro de vulnerável e seus impactos psicológicos no Brasil.
O mito do boto aparece para falar sobre a dominação que acontecia sobre as mulheres ribeirinhas e indígenas, além de ser necessário para “encobrir a luxúria e lasciva do clero, a libertinagem e abusos sexuais dos colonos e o incesto praticado por pais biológicos com suas filhas na tenra idade” (Torres, 2009, p.170).
Vítima do mito
Na atualidade, essa história ainda vive na tradição oral da população, principalmente das ribeirinhas, sendo utilizado de diferentes maneiras pelos mesmos, como forma de encobrir uma relação extraconjugal ou uma gravidez fora do casamento, ou até mesmo crimes como abuso sexual e estupro, tornando a menina uma vítima do mito.
Creio que em sã consciência ninguém seja capaz de achar que o aborto é um ato prazeroso. A gestação decorrente de um estupro é uma realidade profundamente vil, de modo que é uma injustiça atroz criminalizar a mulher, relegando sua condição a um plano inferior em comparação ao agressor.
O Estado, à luz do dia, incorpora institucionalmente a figura do boto cor-de-rosa e atribui, culturalmente, a culpa e o peso de ser mulher violentada sexualmente no Brasil, pois além de ser rejeitada socialmente, o Parlamento a massacra criminalmente, tornando-a mais perigosa que o agressor.
O Estado e os agressores são cúmplices na formação do novo folclore brasileiro.
Às mulheres é preciso cuidado para além dos rios, já que o perigo, agora, avizinha-se nas leis que corporificam o mito que violenta, maltrata e mastiga diariamente a dignidade e retira da mulheres a capacidade de decidir sobre o destino de suas vidas, pois na calada da noite o Estado, de mãos dadas com o boto, volta às profundezas dos rios e longe da angustia de carregar a violência como estilo de vida.
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Referências
“Boto-cor-de-rosa” em: https://brasilescola.uol.com.br/folclore/boto-cor-de-rosa.htm
ALIVERTI, Márcia Jorge. Uma visão sobre a interpretação das canções amazônicas de Waldemar Henrique. Estudos Avançados [online]. 2005, v. 19, n. 54 [Acessado 27 Julho 2022], pp. 283-313. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142005000200016. Epub 25 Ago 2005. ISSN 1806-9592. https://doi.org/10.1590/S0103-40142005000200016. Acesso em: 13 jul. 2022.
TORRES, Iraildes Caldas. Arquitetura do poder; memória de Gilberto Mestrinho. Manaus: Edua, 2009.