A montadora foi processada pelo MPT por trabalho escravo e tráfico de pessoas em sua antiga fazenda na Amazônia. Trabalhadores relembraram o caso em audiência na Vara do Trabalho de Redenção (PA)
A reportagem é de Natália Suzuki e Matheus Faustino, publicada por Repórter Brasil.
Raul Batista de Souza descobriu que foi vendido por 12 mil cruzados ao cobrar junto com os dois irmãos o pagamento pelo serviço que havia prestado na fazenda Companhia Vale do Rio Cristalino. À época, o local era propriedade da Volkswagen. Mais de 40 anos depois, ele voltou a falar do caso, ao depor ao lado de outros três trabalhadores que alegam ter sido escravizados no local, durante uma audiência na Vara do Trabalho de Redenção (PA).
“O gato [intermediário] disse que não pagava aquilo, não, e que a gente não ia sair de lá se não pagasse a dívida. Eu perguntei qual era a dívida. Foi quando ele disse que tinha comprado cada um de nós por 12 mil cruzados”, relembrou Raul em entrevista à Repórter Brasil na véspera da audiência, ocorrida no final de maio.
A montadora foi processada pelo Ministério Público do Trabalho no ano passado por trabalho escravo e tráfico de pessoas na sua antiga fazenda de pecuária e extração de madeira na Amazônia. Volkswagen e MPT apresentaram suas razões finais à Justiça na última semana de junho. A Justiça deve apresentar a sentença nas próximas semanas.
Responsável por reunir várias denúncias de trabalho escravo no local, o padre Ricardo Rezende, que também foi ouvido pela Justiça, disse que sequer conseguiu dormir na véspera. “Eu espero isso há 40 anos.”
Em 1983, Rezende organizou uma coletiva de imprensa na CNBB para denunciar as mesmas histórias que ele repetiria em juízo quatro décadas depois. Na época, apenas o jornal O Globo deu uma pequena nota numa de suas páginas internas sobre o caso. Mas no exterior, o fato foi um escândalo.
Também pudera. À época, a Volkswagen era a maior empresa da América Latina, a maior indústria automobilística brasileira. Para além da expressividade econômica e política da empresa, a Volks ocupava o imaginário brasileiro de desenvolvimento econômico e ascensão social. Enquanto marca, ela representava um estilo de vida almejado pelas famílias brasileiras.
“Diziam para gente que tinha trabalho bom na fazenda da Volks. Perguntaram se a gente gostava de jogar futebol: ‘Vocês jogam bola? Se vocês quiserem levar calçado, no final de semana, vocês vão lá na sede, tem campo. Chegamos lá, tinha campo gramadinho, tinha tudo, mas nós passou direto, nem encostou no campo e nunca jogou”, conta Ribamar, que tinha 17 anos, quando foi aliciado no Mato Grosso.
Escravizado no período em que trabalhou na fazenda, ele lembra que nunca usou as chuteiras que levou na mala. “Os calçados que nós levou do jeito que foi, voltou”, recorda.
A fazenda, quase do tamanho do município de São Paulo, era dividida em 13 glebas. As mais próximas da entrada eram reservadas aos trabalhadores formalmente contratados – grupo que contava com as “boas condições de trabalho” propagandeadas pelos gatos.
Estes peões estavam regularizados pela empresa, com registro em carteira de trabalho. Dispunham de alojamento, escolas para os filhos e, dentre outras benfeitorias, o campo de futebol com que sonhavam os jovens Ribamar e Pedro Valdo, outro trabalhador escravizado ouvido pela Justiça em Redenção.
Eles contam que começaram a perceber a realidade quando, já no primeiro dia de trabalho, viram um peão apanhar depois de reclamar sobre a situação com um gato. “Ele passou a noite amarrado no pau”, contou Ribamar.
Os trabalhadores como Raul, Ribamar e Pedro ocupavam as glebas mais distantes, a cerca de 80 km da entrada da fazenda; eram como os fundos de uma propriedade onde ninguém via ou era visto.
“A gente não tinha acesso aos alojamentos. Não tínhamos contato com os funcionários da Volks”, conta Ribamar. Além dos companheiros de trabalho, a interlocução se dava apenas com os fiscais armados, responsáveis por vigiá-los.
A área das glebas mais distante ainda era coberta por floresta nativa fechada, e o trabalho dos peões era justamente derrubá-la.
“Eu nunca tinha derrubado árvore. Na época não tinha motosserra. Tinha árvore de todo tamanho. A gente derrubava mesmo com machado os troncos desse tamanho”, conta Pedro Valdo, hoje com 60 anos, enquanto abre bem os seus braços para mostrar o diâmetro do tronco.
Uma vez desmatado, o terreno era roçado. Na região, esse serviço é conhecido como “roço da juquira”, que consiste na limpeza das raízes das árvores cortadas para a instalação de pastagem do gado. Muitas vezes, as raízes são grossas e fortemente fixadas ao chão, o que faz com que a sua retirada deva ser feita com as mãos.
Trabalhadores doentes clamavam por remédios
Na fazenda, os trabalhadores não tinham contato com a família nem com ninguém de suas cidades de origem. “Mesmo que a minha família soubesse onde estávamos, meus pais nunca teriam dinheiro para pagar a dívida”, disse Raimundo Batista Souza, hoje com 56 anos, que trabalhou pouco mais de três meses na fazenda até fugir. Ele partiu de Porto Nacional, município que hoje faz parte do Tocantins, com os dois irmãos mais velhos, Judemar e Raul. Na época, ele tinha apenas 17 anos.
“A gente pegava comida na cantina: arroz, feijão e um pouco de carne. Para o final de semana, a gente comia açaí e outras coisas da mata para não aumentar a dívida”, lembra o caçula, que foi separado dos irmãos depois que os três foram cobrar seus salários.
Depois disso, ainda veio a malária. Primeiro, Judemar adoeceu. Depois, Raimundo. “Os doentes ficavam deitados em redes na cantina tomando soro. Lá, a gente não tinha força para nada, nem para falar”, lembra.
Raimundo conta que um dia pediu para um motorista, que havia descarregado mercadoria na cantina, para levá-los a algum lugar para tomar remédio, porque já não acreditava que sobreviveria. Compadecido, o motorista os levou para um posto de saúde na cidade de Santana do Araguaia. De lá, fugiu, entrando num ônibus escondido com o irmão.
Deslocado para outra frente de trabalho, Raul também fugiu da fazenda com um companheiro de roça. Passaram nove dias na mata se orientando pelas sombras de árvores. Tinham levado consigo apenas um saco de sal. Beberam água da chuva e se alimentaram de tatu. “Ele colocou assim no espeto e cortou a carne. Ele cortou assim um filete e joguei o sal. Não sei se era a fome, mas era bom”.
Raimundo conta que deixara uma namorada na sua cidade quando partiu: “Isso me machucou muito lá no mato. Eu não falava para eles [os irmãos], porque eram de maior, e essas coisas era mais reservada. E eu pensava… e tinha noite que eu não dormia pensando: ‘E eu não volto…’ Era Marinalva o nome dela. Infelizmente quando eu voltei lá, já não encontrei ela mais. Ela já tinha caçado outro rumo. Toda a vida eu pensava assim, mesmo na situação que eu tava, feio, rupiado, magro, véio, mas eu tinha vontade de ver ela, ao menos para conversar com ela, explicar um pouco do que eu passei para ela, para ver se ela entendia, mas infelizmente não foi possível”.
‘42 anos não são 42 dias’
Enquanto os irmãos se esforçavam para fugir da fazenda, o padre Rezende viajava até o local junto a uma comissão parlamentar, em 1983, para investigar as denúncias de trabalho escravo na propriedade. Na época, Expedito Soares, então deputado estadual pelo PT, denunciara as violações na Fazenda Volkswagen na Assembleia Legislativa de São Paulo.
“Os parlamentares, alguns ligados [politicamente] à Volks, dispuseram dois aviões para mostrar que a situação não era bem assim”, contou na audiência.
A comissão visitou apenas as primeiras glebas da fazenda, onde estavam concentrados os trabalhadores contratados formalmente pela empresa. Mesmo assim, dois incidentes indicaram que havia muito mais ali para ser averiguado.
“Um homem se aproximou do grupo e perguntou: ‘Tem um padre aqui?’. Eu disse que sim, que era eu. ‘O senhor precisa me salvar. Estou aqui há nove meses, estou com malária e não consigo sair’”, rememorou o padre na audiência.
Em outro momento, Expedito contou que a comissão encontrou um trabalhador amarrado na caçamba de uma camionete. Ele havia acabado de ser “capturado”. “Um dos gatos da fazenda, o Abilão, disse que ele havia fugido e tiveram que trazer de volta assim”. O ex-deputado lembra que o gato tentou justificar que esse era o tipo de tratamento necessário contra os empregados que não queriam trabalhar.
Dessa visita, a única promessa feita à comissão parlamentar foi a demissão de dois gatos, Abilão e Chicô. A promessa nunca foi cumprida.
Na audiência, Soares e Rezende foram convocados como testemunhas, mas os advogados da Volkswagen alegaram que eram partes interessadas e solicitaram a sua dispensa. O juiz acatou a argumentação, por isso acabaram depondo como informantes do MPT.
Ribamar espera que o caso se encerre logo: “Que o juiz tenha bom senso, que resolva isso logo, porque já tá com muito tempo. 42 anos não é 42 dias. Tem gente que tá aqui que não é nem nascida”.
Para Pedro Valdo, o desfecho do caso precisa servir de exemplo para que a história não se repita: “Que acabe com isso, chega de trabalho escravo. Nós não merece isso. Porque pode ser os nossos filhos a passar por isso. (…) Quem tá tocando ainda hoje isso, precisa ser punido. Não pode ficar impune, porque o ser humano não merece mais isso. Chega de ser escravo dos rico”, diz Pedro Valdo.
“Será que o dono da Volks não se sentiu culpado? Como eles se sentiram de ver tanto filho alheio morto, sofrendo naquela situação, e eles de boa aí, usando o dinheiro do sangue derramado dos peão. Eles derramando sangue e usufruindo do dinheiro. Será que não comove eles de ver os filhos dos pobres sofrendo? Eles têm condições de não usar o suor da gente para sobreviver porque a gente trabalhou e não ganhou dinheiro”, continua.
Pedro Valdo contou que voltara com alguma frequência para a região do Sul do Pará antes da audiência. Não retornou para trabalhar em fazenda, mas pôde de alguma forma realizar o sonho de jogar futebol por lá. Hoje, trabalha como coordenador de esporte e é técnico do time feminino da sua cidade. “Aqui em Redenção vim jogar duas vezes. Já jogamos em Santana [do Araguaia], Marabá, Jacundá. Vim como passeio”, conta.
A posição da Volkswagen
Na audiência, mais uma vez a Volkswagen negou ciência sobre essas condições, eximindo-se da responsabilidade sobre as violações em sua propriedade. Em seu depoimento, o representante da empresa tentou separar a empresa do empreendimento na Amazônia. Alegou que se tratavam de pessoas jurídicas distintas e que a Volkswagen teria apenas 10% de participação na companhia, por isso a direção da empresa não teria conhecimento das práticas cotidianas do local.
Contudo, segundo documentos anexados pelo MPT ao processo, a empresa sempre foi a sócia majoritária, com mais de 70% do capital da empresa.
Outra linha de argumentação sustentada pela empresa era de que as condições a que eram submetidos os trabalhadores eram comuns na região. A todos os trabalhadores, o advogado da firma questionou se haviam trabalhado em outras fazendas e se o tratamento recebido era semelhante.
Rezende rememorou no seu depoimento que o gerente da fazenda, Friedrich Brügger, trouxera a mesma justificativa há 40 anos: “Me diga o nome de uma fazenda que faça diferente do que fazemos”, disse-lhe o encarregado da Volks. À época, o padre respondera que não conseguiria indicar uma propriedade, mas que independentemente disso, o tratamento dado aos trabalhadores na Fazenda da Volks era injustificado: “Está errado”.
Ao final, o advogado da empresa questionou Rezende se o trabalho escravo ainda existe na atualidade, tentando indicar que o problema é inerente e permanente na região até hoje: “A partir de 1995, a situação mudou por causa da política pública e das fiscalizações. O trabalho escravo mudou quantitativa e qualitativamente na região”, replicou.
Por décadas, a região sul do Pará concentrou a maior quantidade de casos de trabalho escravo e de trabalhadores resgatados de todo o Brasil. Os casos eram registrados principalmente no Arco do Desmatamento, área da Amazônia onde a fronteira agropecuária avança sobre a floresta nativa.
Nessa região, os trabalhadores resgatados, em sua maioria, eram empregados em atividades de desmatamento ilegal, roço da juquira e cercamento de pastos. Essa condição colocou o Pará como o estado líder de trabalho escravo no ranking nacional na série histórica. Entre 1995 e 2024, 13.557 escravizados foram resgatados em 685 casos. Contudo, na última década, o estado cede a liderança para o estado de Minas Gerais.
Apesar de o reconhecimento da existência do trabalho escravo no Brasil pelo Estado ter ocorrido apenas em 1995, já havia marco legal que proibia as práticas perpetradas na fazenda da Volkswagen entre as décadas de 1970 e 1980.
“As condições de trabalho escravo, em especial a servidão por dívida, assim já eram caracterizadas pelo nosso marco legal desde o início do século 20. O artigo 149 [do Código Penal] sempre contemplou servidão por dívida como uma modalidade do trabalho escravo contemporâneo. O fato de não ser combatido não significa que era permitido”, argumenta Rafael Garcia, procurador do Ministério Público do Trabalho.
A implementação da política de combate ao trabalho escravo do Estado brasileiro colaborou para que as condições de extrema violência contra os trabalhadores arrefecessem. Os resgates realizados pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel, responsável por fiscalizar as denúncias em locais de difícil acesso, e as sanções administrativas e judiciais colaboraram para reduzir as práticas mais hediondas contra os trabalhadores. O trabalho escravo ainda é um problema alarmante na região, mas a vigilância ostensiva, agressões físicas e as execuções são mais raras. Permanecem ainda as condições degradantes — em geral, referente a alojamentos, instalações sanitárias e falta de água potável — e a servidão por dívida.
Garcia avalia que a falta de investigação e punição, na época, era decorrente do contexto autoritário e repressivo da ditadura militar, contra lideranças e trabalhadores rurais que denunciavam as violações de direitos humanos.
Quatro décadas depois, os relatos do padre Rezende e dos quatros trabalhadores são provas de que as violações nunca foram esquecidas. Permanece viva também a esperança deles em encontrar Justiça. “Os direitos humanos são para os resistentes”, diz Rezende.
“A elite teme que o aumento do IOF seja o primeiro passo para uma reforma tributária mais progressiva, que tribute patrimônio, lucros e dividendos. Em um país tão desigual quanto o Brasil, qualquer proposta nesse sentido é vista como ameaça aos privilégios dos mais ricos.”
Frei Betto é escritor, autor do romance sobre ditadura e indígenas “Tom vermelho do verde” (Rocco), entre outros livros.
Eis o artigo.
Ao completar dois anos e meio de mandato, o presidente Lula enfrenta forte tensão no Congresso Nacional. A base ampla e diversa que o elegeu com margem apertada começa a se desintegrar diante de disputas orçamentárias e da antecipação do calendário eleitoral. Em meio à pressão por responsabilidade fiscal, o governo propôs a elevação do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), voltado para o topo da pirâmide econômica, mas viu o Congresso rejeitar a medida.
O IOF incide sobre operações como câmbio, crédito, seguros e investimentos. O ajuste sugerido pelo governo era modesto: elevar, por exemplo, de 3,38% para 3,5% a taxa sobre compras internacionais com cartão de crédito. Em 2019, no governo Bolsonaro, este percentual era de 6,38%. O aumento também afetaria a compra de moeda estrangeira em espécie (de 1,1% para 3,5%) e transferências de dinheiro para o exterior. A previsão era arrecadar R$ 10 bilhões em 2025 e R$ 61,5 bilhões até 2026 — recursos que iriam para áreas como saúde e educação.
No entanto, em 25 de junho, a maioria do Congresso votou contra a proposta. Dos 513 deputados, 383 votaram a favor da manutenção de benefícios para cerca de 430 mil milionários brasileiros, em detrimento de uma população de 213 milhões. Apenas 98 deputados votaram a favor do governo.
Diante desse revés, Lula ensaia uma reaproximação com os movimentos sociais. Talvez seja tarde demais para reorganizar essa base de apoio. O gesto sinaliza uma tentativa de resgatar a governabilidade não pelo centrão, mas pela mobilização popular.
Boa parte da elite econômica brasileira adota um discurso liberal que defende menos Estado e mais privatizações. Para esse grupo, qualquer imposto que incida sobre patrimônio ou renda — como o IOF ou o proposto Imposto sobre Grandes Fortunas — é visto como ameaça à “liberdade do mercado”. Ao mesmo tempo, raramente se opõem ao aumento de tributos indiretos como ICMS ou PIS/Cofins, que pesam muito mais no bolso dos mais pobres.
O aumento do IOF afeta diretamente quem realiza operações financeiras de grande porte, como remessas internacionais, aplicações no exterior e viagens com altos gastos. O imposto, com forte caráter regulatório, é visto como intervencionista e barreira para estratégias de proteção de patrimônio em paraísos fiscais — prática comum entre os super-ricos.
Segundo nota técnica do Dieese, o sistema tributário brasileiro é altamente regressivo: 40,2% da arrecadação vêm de tributos indiretos (como ICMS e ISS), enquanto apenas 27,4% de impostos sobre renda. Isso significa que quem ganha menos paga proporcionalmente mais.
Um dado alarmante: os 10% mais pobres destinam 23,4% da renda aos tributos indiretos, enquanto os 10% mais ricos comprometem apenas 8,6% com esse tipo de imposto. Nos tributos diretos, como o IPTU, a distorção se repete: representa 41% dos tributos pagos pelos mais pobres e apenas 9% pelos mais ricos.
Apesar de a carga tributária brasileira representar 33% do PIB — abaixo da média da OCDE, de 35% —, sua distribuição é extremamente desigual.
A elite teme que o aumento do IOF seja o primeiro passo para uma reforma tributária mais progressiva, que tribute patrimônio, lucros e dividendos. Em um país tão desigual quanto o Brasil, qualquer proposta nesse sentido é vista como ameaça aos privilégios dos mais ricos.
Ainda assim, o governo Lula segue tentando avançar. Entre as medidas propostas está a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por mês e alíquotas reduzidas para quem recebe até R$ 7 mil. A contrapartida seria o aumento da carga sobre quem ganha R$ 50 mil mensais ou mais — um ajuste considerado justo, mas que enfrenta resistências no Congresso.
Em um parlamento dominado por interesses das elites econômicas, essas mudanças só serão aprovadas com ampla mobilização social. Por isso, é fundamental que a população se engaje em iniciativas como o Plebiscito Popular da Reforma Tributária. Acesse aqui. Participe. Um sistema tributário mais justo depende de sua atuação.
Ministro Gilmar Mendes afirmou que medida contribuirá para o debate sobre limites e balizas para contratação de autônomos ou pessoas jurídicas para prestação de serviços
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), convocou audiência pública para discutir a licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços, a chamada “pejotização”. O despacho foi proferido nesta quinta-feira (3) no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1532603, que teve repercussão geral reconhecida (Tema 1.389) neste ano.
Em sua exposição, o ministro Gilmar Mendes afirma que a discussão sobre a “pejotização” tem inegável relevância econômica e social, além de ter se tornado prática recorrente entre empresas de todos os portes e segmentos. Neste sentido, é imprescindível a definição de critérios claros e objetivos para a caracterização de eventual fraude, de forma a garantir transparência e proteção a empregadores e trabalhadores.
“A coleta de dados e argumentos tecnicamente qualificados e especializados permitirá que esta Corte se debruce com maior segurança sobre os fatos. A reflexão em torno da liberdade da organização produtiva dos cidadãos e da proteção ao trabalhador, especialmente no que se refere aos hipossuficientes, impõe esclarecimentos técnicos acerca do impacto dessa forma de contratação na economia nacional, envolvendo não apenas as empresas contratantes, mas também a União, tendo em vista reflexos diretos em sua arrecadação”, afirmou o ministro.
A audiência pública deverá ser realizada na data provável de 10 de setembro. Entidades e interessados em participar do evento devem se inscrever até o dia 10 de agosto pelo formulário eletrônico neste link, preenchendo informações como nome completo, CPF ou CNPJ, telefone, e-mail, currículo, instituição de vinculação, tipo de participação e tema da exposição.
A relação de inscritos habilitados será disponibilizada no site do Supremo Tribunal Federal no dia 15 de agosto.
Arecente onda de repúdio à CLT costuma encontrar duas explicações principais. De um lado, argumenta-se que esses ataques são mera reprodução de uma ideologia neoliberal e que os detratores apenas repetem um discurso imposto pela burguesia. Do outro, afirma-se que os indivíduos querem liberdade e autonomia e que esses elementos só podem ser encontrados no empreendedorismo. Para este grupo, carteira assinada é sinônimo de fracasso e empreendedorismo é equivalente a liberdade.
Embora o componente ideológico explique parte do problema, ele não abarca uma série de nuances presentes no cotidiano dos trabalhadores que, eventualmente, fazem críticas à CLT. O pano de fundo dessa discussão poderia ser o seguinte: qual o tipo de emprego de carteira assinada que está disponível para a maioria da população brasileira? De acordo com o IBGE, a cada 10 trabalhadores com carteira assinada, 7 ganham até dois salários-mínimos. Ademais, 90% dos empregos formais criados em fevereiro de 2025 são em vagas que pagam até 2 salários[1]. A esses dados, acrescentamos o fato de que o assédio moral, o controle e a extensão da jornada de trabalho e as longas horas de deslocamento no transporte público compõem a experiência cotidiana desses trabalhadores.
Isso nos levaria a reelaborar a afirmação inicial. Os trabalhadores não repudiam o conjunto de direitos conferidos pela CLT, mas sim, os empregos com carteira assinada que estão realmente disponíveis no mercado: baixos rendimentos, assédio moral e, por vezes, em escala 6 x 1. Aqui, o componente ideológico, enquanto prática e discurso, entra em cena. Essa precariedade poderia ser atribuída a uma série de motivos, como a ânsia dos patrões em rebaixar os salários para aumentar a taxa de lucro, os políticos que defenderam uma reforma trabalhista que rebaixou, ainda mais, as condições laborais de milhões de brasileiros, entre outros. Entretanto, a carteira de trabalho, por si só, aparece como causa do problema. Em síntese, parte-se de uma insatisfação real e concreta vivenciada por milhões de pessoas para apresentar um engodo como solução.
Por trás dessa nova onda de ataques às legislações protetoras do trabalho está diretamente o avanço das empresas-plataforma e, consequentemente, a expansão do trabalho digital — seja aquele baseado em uma localidade, como o realizado por entregadores, motoristas e cuidadores, ou os micro e macrotrabalhos remotos desempenhados por treinadores de IA, moderadores de redes sociais, freelancers, entre tantos outros. Em sua grande maioria, subsidiadas pelo capital financeiro, empresas como Uber, Deliveroo, Workana e Amazon Mechanical Turk, são extremamente dependentes dos dados, por elas apropriados, de seus consumidores e trabalhadores. Dados que os investidores apostam poder produzir vantagens competitivas através de eficiências de custos na produção e na circulação de mercadorias (Antunes, Gonsales, van der Laan, 2025).
A captura de dados em escala está estruturalmente vinculada à necessidade de as empresas plataforma consolidarem suas forças de trabalho às margens de qualquer legislação protetora do trabalho e “justifica” o enorme montante de capital e trabalho por elas despendidos nessa tarefa, seja fazendo lobby, influenciando legislações ou propagando o empreendedorismo de si mesmo.
Com a obrigatoriedade de vínculos formais, as plataformas seriam forçadas a reduzir o número de trabalhadores disponíveis, o que impactaria diretamente sua capacidade de atuação em múltiplos mercados, encarecendo os serviços, limitando o acesso, reduzindo receitas e restringindo a coleta massiva de dados. Dessa forma, a regulamentação comprometeria a lógica de dupla geração de valor dessas empresas — baseada tanto na exploração do trabalho quanto na especulação com dados de trabalhadores e consumidores.
A proteção social na periferia do capitalismo
Apesar da contradição das legislações protetoras do trabalho entre a atenuação de danos e a legitimação do trabalho-mercadoria, a CLT representa um conjunto de direitos que possuem, como objetivo, impor alguns limites à exploração desenfreada do capital sobre o trabalho. A garantia de férias remuneradas, o 13º salário, o FGTS, o auxílio maternidade, o descanso semanal remunerado são direitos conquistados pela luta dos trabalhadores e trabalhadoras e buscam garantir algum nível de dignidade aos indivíduos nas relações laborais.
Pois bem, em um país da periferia do capitalismo como o Brasil, com um modelo de desenvolvimento agroexportador, atravessado por décadas de desindustrialização, a grande massa de empregos oferecidos à população são ocupações precárias, com baixa remuneração. Dito de outro modo, a qualidade dos empregos criados por um país está diretamente relacionada ao modelo de desenvolvimento econômico construído nessa formação social[2]. Assim, a particularidade do modelo de acumulação capitalista brasileiro é caracterizada pela articulação entre o informal e formal, por um desenvolvimento desigual e combinado capaz de elevar a riqueza social[3] sem, no entanto, gerar empregos de qualidade e com bons rendimentos – haja vista a crescente expansão de um protelariado de serviços[4].
Essa contradição no desenvolvimento capitalista brasileiro se atualiza com a expansão do MEI e da pejotização: se por um lado permite ao Estado incluir juridicamente os trabalhadores informais e desprotegidos na formalização – aumentando a arrecadação tributária -, por outro, institui categorias econômicas deslocadas da lógica de proteção social e trabalhista prevista na CLT por meio do discurso da autonomia e empreendedorismo. Além disso, a aprovação da reforma trabalhista, a possibilidade de terceirização de atividades fins e a ampliação da pejotização, entre outros ataques, foram capazes de intensificar a precarização em um mercado de trabalho historicamente precário.
Se parte do problema é visualizado pela baixa qualidade dos empregos formais, a outra parte é representada pelo fato de que metade da população brasileira está, historicamente, na informalidade e às margens da proteção social. Mais do que categorias de análises apartadas e estanques – formal e informal – a trajetória de vida de milhões de brasileiros é marcada pela viração, ou seja, pelo trânsito entre formalidade e informalidade, ou mesmo pela ocupação em ambas: emprego CLT no meio da semana e realização de bicos no final de semana, como forma de complementar a renda. Diante desse contexto, a pejotização e o MEI aprofundam essa viração, prometendo autonomia e entregando ausência de direitos.
Ideologia e aparelhos de hegemonia
Reconhecer o papel da ideologia é compreender que os indivíduos não vivem isolados na sua rotina e não possuem total liberdade para a ação, mas que há uma relação recíproca entre sujeito e estrutura social capaz de forjar subjetividades. Ao mesmo tempo os sujeitos forjam, coletivamente e em conjunturas específicas, as estruturas sociais. Os aparelhos de hegemonia como escola, igreja, família, redes sociais, filmes e jornais são os locais de primazia para a formação dessas subjetividades. Segundo Gramsci: “As ideias e as opiniões não ‘nascem’ espontaneamente no cérebro de cada indivíduo: tiveram um centro de formação, de irradiação, de difusão, de persuasão[5]”. As redes sociais, atualmente, possuem um papel central para essa prática ideológica e os discursos de influencers ajudam a explicar a avalanche de críticas contra a CLT.
Embora a vontade de abrir seu próprio negócio e as críticas às condições de trabalho não sejam algo novo no Brasil, a recente onda de ataques à CLT, sobretudo entre jovens, possui relação direta com a atividade de centenas de influenciadores e coaches que se aproveitam da precariedade da maioria dos empregos formais no país para angariarem curtidas, alavancarem seus perfis e venderem seus cursos como caminhos possíveis de empreendedorismo e independência financeira.[6] Em síntese, os influenciadores se valem de um problema real – a má qualidade dos empregos formais no Brasil – e apresentam um caminho ilusório como solução: o empreendedorismo sem capital.
A campanha contra direitos trabalhistas, entretanto, é uma prática antiga e recorrente dos grandes meios de comunicação do país. Basta lembrarmos dos editoriais de O Globo contra a criação do 13º salário ou, na última década, da campanha deste e de outros jornalões – Folha de São Paulo e Estadão – a favor da reforma trabalhista e previdenciária. A série “Viração: Novos Empreendedores”, lançada neste mês na Globoplay, evidencia as afinidades eletivas entre o discurso coach e a indústria cultural brasileira – principalmente quando o assunto é trabalho e proteção social.
Essa estratégia de enfrentar problemas sociais de forma individual, investindo em um hiperindividualismo precário, encontra eco no discurso e nas práticas reproduzidas por uma série de aparelhos de hegemonia burguesa. A teologia da prosperidade, as disciplinas de empreendedorismo do novo ensino médio, a indústria cultural, enfim, por todos os lados haverá discursos e práticas na sociedade que darão legitimidade para essa estratégia empreendedora. Assim, encontramos a explicação desse problema olhando menos para a subjetividade dos trabalhadores e mais para a dimensão objetiva das instituições com as quais eles e elas se relacionam.
Uma questão relevante é que boa parte da população brasileira está acostumada a “se virar” para fechar as contas no fim do mês. Os influenciadores, ao chamarem a viração de empreendedorismo, garantem um verniz de dignidade a uma prática sem proteção social que está presente há muito tempo na vida de milhões de brasileiros. “Você não é um trabalhador precário, você é um empreendedor”.
A estratégia de transformar a viração em virtude mascara a ausência de direitos com uma roupagem de liberdade, consolidando uma forma de consentimento em que vigora a precariedade. Ora, se podemos dizer que a experiência da precariedade produz ressentimento, não seria menos verdade que também produz o desejo de reconhecimento. Desse modo, a crítica à CLT não é, necessariamente, um repúdio total aos direitos sociais, mas deve ser interpretada, também, como uma tentativa de superação subjetiva do assédio moral e das condições precárias de trabalho. Nesse sentido, o desafio que se coloca é assegurar e reconstruir a proteção social para além do emprego formal, enfrentando as formas sociais de dominação que asseguram a constituição de um capitalismo selvagem e desigual na sociedade brasileira.
Referências:
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Empreendedorismo, autogerenciamento ou viração?: Uberização, o trabalhador just-in-time e o despotismo algorítmico na periferia. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, v. 11, n. 3, 2021.
ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
ANTUNES, Ricardo; GONSALES DE OLIVEIRA, Marco Antonio; VAN DER LAAN, Murillo. “Platform Capitalism”. Inequalities, 2, 9-32, 2025.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013
SOUZA, Jéssica Matheus de. “O CLT não tem um dia de paz” A memeificação do trabalho formal no Brasil e o descontentamento viral de uma geração. DeepLab, 2025.
SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. São Paulo, Hucitec, Anpocs, 2018.
[2] Isso não significa que o trabalho informal seja um elemento paralelo e resquício do atraso do país. Como já demonstrou Chico de Oliveira, em Crítica à razão dualista, a informalidade é funcional para o desenvolvimento desigual existente no Brasil e para a diminuição do custo de reprodução da força de trabalho.
[3] SOUZA, Pedro H. G. Ferreira de. Uma história da desigualdade: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013. São Paulo, Hucitec, Anpocs, 2018.
[4] ANTUNES, R. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
[5] GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
[6] SOUZA, Jéssica Matheus de. “O CLT não tem um dia de paz” A memeificação do trabalho formal no Brasil e o descontentamento viral de uma geração. DeepLab, 2025.
Matheus Silveira de Souza é doutorando em Sociologia pelo IFCH-Unicamp.
Marco Gonsales é pesquisador convidado do IFCH-Unicamp
Ederson Duda é doutorando em Ciências Sociais pela Unifesp
Desde a Constituição de 1988, a Previdência Social brasileira sofreu sete reformas. Reformas que propõem, de um lado, a limitação dos benefícios e, de outro, uma idade cada vez maior para o trabalhador poder usufruir da aposentadoria..
Tibor Rabóczkay
Para os aposentados, Auschwitz? Este era o título do artigo que publiquei em nosso Jornal da USP em fevereiro de 2003. Considerações suscitadas por uma publicação do Financial Times, cujo autor pondera que, com 90% dos custos de saúde para o indivíduo médio nos países industrializados se dando nos últimos seis meses de vida, o debate sobre a eutanásia adquire uma dimensão econômica crescente e terrível.
Na nossa sociedade, afirma ele, o suicídio poderá parecer um caminho lógico para as pessoas protegerem seus dependentes (não gastando suas economias). Corro o risco de ser repetitivo, pois os ataques à aposentadoria continuam – e continuam com as mesmas alegações no decorrer de décadas. Recentemente, em diário de grande circulação, dois empresários de “sucesso” expressaram seus receios de um aumento real no salário mínimo com consequente aumento das aposentadorias e pensões. Outra autoridade de brilhante passado em governo liberal lançou ideia de, simplesmente, congelar as aposentadorias por alguns anos. O afligimento dos economistas liberais com a Previdência oficial, com propostas que beiram a insanidade, vem ecoado diariamente na imprensa também liberal de forma direta ou embutido em temor em face da “alarmante escalada do déficit da Previdência”.
Economistas que concluam ou opinem do contrário perderam espaço na mídia liberal, cuja “liberdade de expressão” é severamente limitada pelos interesses dos anunciantes e de seus donos.
Há uma verdadeira prestidigitação contábil para tirar da cartola as provas do déficit da Previdência com seus malefícios para a economia. Paralelamente, se promove a tal da “previdência” complementar (também denominada privada), aberta, mediante a “capitalização”, um programa de contribuições acumuladas individualmente em contas pessoais, investidas para gerar rendimentos.
A “capitalização” possibilitaria “ao trabalhador acumular recursos financeiros para receber uma renda extra na aposentadoria”. Essa renda, porém, não é uma aposentadoria, como querem fazer parecer aos incautos, mas um misto de poupança e aplicações, e envolve risco. Risco de aplicações que dão prejuízo, risco de fraude, risco de falência da instituição e o risco inerente às incertezas do “longo prazo”. “Planejamentos a longo prazo” – adverte-nos Max Gunther em seu livro Os axiomas de Zurique – “geram a perigosa crença de que o futuro está sob controle”, mas “[…] É importante jamais levar muito a sério os planos a longo prazo, nem os de quem quer que seja”.
Apenas o Estado pode-nos oferecer garantia. Além disso, enquanto a aposentadoria oficial vai até a fim da vida, a “renda extra” da previdência privada é limitada pela contribuição-poupança feita pelo trabalhador, que limita seu consumo e bem-estar, para poder contribuir à “previdência” privada.
Grande parte da previdência privada aberta é gerida por instituições de agiotagem (agiota é o qualificativo que melhor descreve quem paga geralmente menos de 12% ao ano pelo dinheiro aplicado e cobra em redor de 400% ao ano pelo emprestado), mas existem instituições de previdência privada fechada, popularmente conhecidas como fundos de pensão, que podem parecer uma opção melhor.
Esses fundos são entidades sem fins lucrativos e se organizam sob a forma de fundação ou sociedade civil constituídas exclusivamente para empregados de uma empresa ou grupo de empresas, ou aos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, e para associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial.
Contudo, servem de alerta os eventos envolvendo duas organizações poderosas desse tipo, o fundo de pensão Postalis, dos funcionários dos Correios, e o Petros, dos funcionários da Petrobras. Má gestão, eventuais interferências do governo, possivelmente fraudes, causaram-lhes bilhões de prejuízos. Prejuízos que oneram os segurados com o aumento da contribuição mensal ou diminuição do benefício planejado.
Os dois fundos não são os únicos a apresentar problemas. Exame do Tribunal de Contas da União (TCU), envolvendo 31 entidades fechadas de previdência complementar, revelou que metade delas apresenta extremos riscos de integridade decorrente da “baixa maturidade” dessas instituições no que diz respeito aos mecanismos de controle. A eventual materialização desses riscos pode resultar em “grande impacto e repercussões negativas em todo o sistema de previdência complementar”. Trata-se de ameaça inaceitável para o aposentado. É fácil concluir, portanto, que a Previdência, a aposentadoria, são assuntos importantes demais para serem deixados a cargo da cobiça privada ou governamental, devendo se manter sob a responsabilidade do Estado.
A “preocupação” dos que se batem por mais uma etapa no aniquilamento da Previdência Social é a “sustentabilidade financeira”. Como a Previdência oficial brasileira funciona no sistema de repartição, isto é, quem está trabalhando paga a aposentadoria de quem é aposentado, com o envelhecimento da população surge um déficit, pois aumenta o número de aposentados enquanto diminui o número de contribuintes. Esse déficit tem que ser coberto pelo governo, consequentemente sobraria menos verba para outras áreas como a infraestrutura, o que contribui para a aflição do “mercado”. Entenda-se, não para o mercado real de oferta e demanda de produtos e de serviços, mas para o “mercado” financeiro, nome de salão do frenético cassino financeiro, que busca ganhos a curto prazo se não instantâneos.
Evidentemente, a argumentação é elaborada para disfarçar que nos interesses desse “mercado” a “mão invisível que harmoniza tudo” cede lugar ao nervoso tamborilar num teclado e o ”investidor” pode mudar de posição em questão de pouquíssimo tempo. O adepto do capitalismo, liberalismo ou neoliberalismo – seja lá a designação que preferirem –, odiador de intervenções do Estado, de repente se lembra de que o dinheiro do Estado é útil para a construção da infraestrutura do País (para posterior privatização, obviamente), para socorrer as instituições do tipo “too big to fail”, para subvencionar áreas privilegiadas. E o “déficit” da Previdência oficial atrapalha tudo isso.
Desde a Constituição de 1988, a Previdência Social brasileira sofreu sete reformas. Reformas que propõem, de um lado, a limitação dos benefícios e, de outro, uma idade cada vez maior para o trabalhador poder usufruir da aposentadoria.
As propostas simplistas que se concentram no “crescimento” – não do País, como seus autores afirmam, mas dos lucros do capitalista – omitem-se em questões sociais importantes que ameaçam não só a classe assalariada ativa ou aposentada, mas o próprio capitalista ou liberal.
De um lado, devemos considerar a dificuldade de um trabalhador conseguir um emprego a partir dos seus, aproximadamente, cinquenta anos. Como estender a idade mínima para a aposentadoria sem garantir o emprego até tal idade? Uma exigência que não depende do segurado. Se, porém, o “idoso” conseguir emprego, um jovem terá oportunidade a menos. Consequentemente, ao ver seu pai recebendo uma aposentadoria miserável – nesta época de descrédito das ideologias, em que o crime organizado adquire cada vez maior participação na política e alguns grupos políticos vão cada vez mais se assemelhando a organizações criminosas –, o jovem sucumbe mais facilmente ao crime, que lhe promete inseri-lo na sociedade de consumo em questão de meses ou mesmo semanas.
Por outro lado, não é preciso ser especialista ou ter pós-graduação em universidade americana para entender que, perante suas perspectivas limitadas no tempo, o aposentado tende a reciclar seus ganhos em consumo e em lazer, alimentando a indústria de bens de consumo e o turismo. O aposentado contribui para a geração de lucro, empregos e impostos. Se o número de beneficiários aumenta, aumenta também a importância deles para a economia. Não pode ser diferente numa sociedade de consumo, e economia em que se produz para o consumo. Dito de outra maneira, a expressão “gastos previdenciários” – de presença tão insistente na mídia que nos evoca Goebbels – pode ser substituída por “investimentos previdenciários”, visto que o dinheiro do aposentado circula de imediato gerando empregos, impostos e lucros.
Um sistema econômico que substitui a análise crítica, as considerações morais e a responsabilidade social pelo desejo de acumular lucros a qualquer custo e cuja sobrevivência necessite o suicídio de aposentados, a exclusão de idosos, é um sistema fracassado, insustentável, imoral.
Reflitamos sobre tudo isso, pois só não se aposenta quem não envelhece, e só não envelhece quem morre jovem.
Tibor Rabóczkay é professor aposentado do Instituto de Química da USP
A recém aprovada reforma trabalhista colombiana, que redefiniu a jornada diurna de até oito horas, que deve se encerrar até às 7h da noite e determinou pagamentos por horas trabalhadas aos domingos e feriados, não garantiu os direitos aos trabalhadores que colhem os grãos de café no país, considerado um dos melhores do mundo. Além disso, a fiscalização insuficiente por parte das autoridades do país mantém a mão de obra do setor à mercê de violações trabalhistas.
Essa é a avaliação de especialistas ouvidos pela Repórter Brasil, que percorreu zonas cafeeiras colombianas para investigar as condições de trabalho no setor. O resultado dessa investigação pode ser lido no relatório: Melhor café do mundo? Alojamentos precários, longas jornadas e informalidade na colheita de café da Colômbia (disponível em português, inglês e espanhol).
“A legislação trabalhista sempre foi pensada para as grandes cidades”, explica Fabio González, diretor territorial do Ministério do Trabalho da Colômbia no estado de Antioquia. “No campo colombiano, não há trabalho decente ou digno. Há condições que se aproximam da escravidão. Porque os trabalhos são indignos, não há previdência social, não há futuro no campo”, acrescenta González.
Estefanni Barreto Sarmiento, advogada trabalhista colombiana especializada em normas internacionais do trabalho, explica que existem no país normas gerais de saúde e segurança no trabalho que se aplicam a todos os setores da economia. Mas que não há, como no Brasil, regras específicas que estabeleçam, por exemplo, parâmetros mínimos para a manutenção de alojamentos de trabalhadores temporários em fazendas ou para regular jornada e remuneração que considere as particularidades do setor agrícola.
Para a advogada colombiana, há um “vazio normativo” e “mecanismos insuficientes para garantir a aplicação efetiva das normas” no contexto do trabalho rural. Ela destaca que o modelo de contratação formal na Colômbia deve ser adaptado para incluir os trabalhadores que atuam em colheitas sazonais, caso do café. “Isso permitiria adaptar as condições de saúde e segurança no trabalho e criar um sistema de inspeção adaptado”, avalia. “Seria fundamental uma regulamentação clara e específica”, acrescenta.
Entreposto de venda de café da cidade de Andes, no estado colombiano de Antioquia. Segundo a OIT, a informalidade dos contratos do campo supera os 80% no país (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Reforma deixou de fora os trabalhadores rurais
A reforma trabalhista da Colômbia aprovada em junho de 2025 excluiu as propostas que tratavam de trabalho agrícola. O texto inicial incluía dois artigos sobre o trabalho no campo: a criação de um contrato agropecuário, estimulando a formalização das relações de trabalho permanentes e sazonais, e o estabelecimento de uma jornada agropecuária diária, que flexibilizava a duração dos contratos, permitindo o pagamento com recolhimento de benefícios por dia. Um terceiro artigo ainda trazia garantias sobre as condições de moradia de trabalhadores permanentes de propriedades rurais.
Os pontos que criavam regras para o trabalho rural foram retirados durante as discussões na Câmara de Representantes da Colômbia (o equivalente à Câmara de Deputados do Brasil) em outubro de 2024.
“Nosso campo continuará a sofrer violações de direitos trabalhistas. Essa é a única maneira de ter um campo produtivo, de acordo com o Legislativo”, opina González. “Esse é um modelo mais parecido com um modelo de escravidão do que com um modelo de negócios para o campo”, completa.
Trabalho infantil persiste na colheita de café colombiano
Um estudo produzido pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) em 2022 apontou que o trabalho infantil na colheita de café na Colômbia é “persistente”.
Não há clareza sobre esse cenário nas estatísticas colombianas. Os números oficiais, registrados no SIRITI (Sistema de Identificação, Registro e Caraterização do Trabalho Infantil e suas Piores Formas), vinculado ao Ministério do Trabalho colombiano, apontam para apenas 61 crianças e adolescentes foram identificados trabalhando no cultivo de café no país em 2024. Os dados foram obtidos através de um pedido de esclarecimento ao órgão baseado na Lei 1755/2015, que estabelece, na Colômbia, o direito de solicitação de informações públicas.
Esses dados podem estar subnotificados, reconhece o próprio Ministério do Trabalho colombiano. “É preciso esclarecer que não é que esse flagelo não exista nas regiões, mas que os territórios ainda não realizaram o trabalho de aplicação de pesquisas nas zonas detectadas como de alto risco, por essa razão é o que o SIRITI não detecta a realidade do trabalho infantil do setores onde se cultiva café”, reforçou a pasta em resposta ao pedido de LAI (Lei de Acesso à Informação).
Apagão de dados sobre trabalho forçado
Questionado pela reportagem, o Ministério do Trabalho da Colômbia não soube informar quantos flagrantes de trabalho forçado foram identificados em fazendas de café no país na última safra. Segundo a pasta, os inspetores trabalhistas do país fazem a função apenas de prevenção à prática. Se o crime for identificado durante inspeções em fazendas, a denúncia deve ser apresentada à Procuradoria-Geral da Colômbia.
A Repórter Brasil entrou, então, em contato com a Procuradoria-Geral da Colômbia para saber o número de flagrantes e casos em investigação no setor cafeeiro. A resposta do órgão é que a consulta pública não apresenta o dado filtrado por setor da economia. “Deve-se esclarecer que isso não significa que não existam registros de processos com as características solicitadas; no entanto, essas informações podem estar contidas nos arquivos das promotorias que conhecem ou conheceram cada um dos casos em questão, que não podem ser identificados por meio de nossos sistemas de informação”, afirmou o órgão à reportagem.
A Colômbia adota o conceito de “trabalho forçado”, convencionado pela OIT em 1930. A prática é aquela “exigida de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”.
No Brasil, o trabalho forçado é apenas um dos quatro elementos que caracteriza o “trabalho em condições análogas à escravidão”, crime tipificado no artigo 149 do Código Penal. Os outros três elementos são a submissão à servidão por dívida, condições degradantes e jornadas exaustivas. “Vocês [no Brasil] estão muito mais avançados nesse tema”, avalia González.
0,07% das fazendas inspecionadas
O número de fazendas inspecionadas na Colômbia pode explicar o baixo número de flagrantes de trabalho infantil e forçado. Em 2024, apenas 464 propriedades dedicadas ao cultivo de café foram inspecionadas pela Subdireção de Inspeção do Trabalho na Colômbia, segundo o órgão. Esse número é apenas 0,07% do total de propriedades destinadas ao cultivo de café no país, estimado em 658 mil, de acordo com dados da FNC (Federação Nacional de Cafeicultores da Colômbia). Desse total, 406 inspeções ocorreram em caráter de assistência técnica preventiva.
Procurada pela Repórter Brasil, a FNC avalia que “pode-se dizer que a maioria da população trabalhadora do café pode estar no setor informal, mas não no setor ilegal – conceitos diferentes – devido à falta de regulamentações adequadas e aplicáveis”. Para o órgão, a legislação trabalhista colombiana “apresenta lacunas em termos de como aplicar os conceitos de contratos de trabalho para atividades urbanas às atividades rurais, especialmente na cafeicultura, em que a itinerância e a sazonalidade são o denominador comum”.
*A investigação da Repórter Brasil foi acompanhada por integrantes da Voces por El Trabajo, organização que realiza pesquisas sobre condições de trabalho em diversos setores da economia colombiana, e apoiada pela Coffee Watch.