Vivemos uma desigualdade alimentar na qual a comida saudável é reservada aos ricos e a fome ou ultraprocessados, para os pobres.
Patrícia Aguirre
Nos últimos anos, a discussão sobre o que comemos voltou no contexto da expansão de diferentes subculturas alimentares (veganas, ketos, ayurvédicas, etc.), do crescimento dos movimentos ambientalistas e do aumento de doenças associadas à alimentação.
Neste artigo analisaremos o sistema alimentar sob uma perspectiva sócio-histórica, como um sistema aberto, ou seja, com trocas infinitas com seu entorno – como os organismos vivos. Pela sua complexidade, para abordá-la precisaremos recorrer às contribuições de múltiplas ciências – ecologia, nutrição, antropologia, medicina, economia, etc. – que nos autorizem a relacionar as partes analiticamente separadas, apontando as suas transformações no tempo e no espaço. Delinearemos em linhas gerais a sinergia entre o meio ambiente, a tecnologia extrativista e a organização social (principalmente o sistema econômico-político), que afeta a alimentação e a culinária (com sua construção social de gostos e corpos) e, embora a alimentação seja um fator pré-patogênico por excelência, condiciona fortemente a forma como a população adoece e morre 1 .
O corpo da espécie
Se procurarmos no passado exemplos da referida relação, não podemos deixar de mencionar as glaciações do Holoceno e o desenvolvimento de culturas de caça e coleta com tecnologias de extração extremamente eficazes, principalmente usando ferramentas de pedra – que dão o nome a essa época. Cestos, bolsas, varas, recipientes de cabaças, fibras e folhas, juntamente com fogões (verdadeiros sistemas de cocção, porque não só assavam, mas grelhavam, ferviam e picaneavam) dão conta da variedade de preparações destinadas a transformar uma grande diversidade de plantas e produtos de origem animal em comida, o que ajudou diversas populações em ambientes muito diferentes a terem uma vida boa.
Poderíamos voltar ainda mais atrás e ver a importância da alimentação no próprio processo de nos tornarmos humanos; então veríamos que as paleoespécies que antecederam o nosso gênero, utilizando ferramentas como outros primatas 2 , conseguiram ter uma dieta baseada em vegetais, acessando a carne de forma irregular. Há 2,5 milhões de anos, observamos em ossos fósseis um traço crescente de zinco (o que significa aumento na ingestão de carne) e também modificações anatômicas (cérebro maior, intestino mais rápidos, etc.) que falam de uma mudança na alimentação (onívora) que vai além modificações genéticas e epigenéticas que impulsionam e são impulsionadas por grandes mudanças metabólicas e comportamentais. Somos uma espécie que passou de presa a predador através de nossas próprias criações. Sem garras ou caninos poderosos, tivemos que nos unir, melhorar nossa comunicação e aperfeiçoar ferramentas para obtermos carne em conjunto. Mais do que um necrófago, um caçador ou um coletor, a espécie humana era uma espécie oportunista que usava o que podia para aumentar sua ingestão, e a primeira estratégia era a diversificação e a flexibilidade. Ferramentas de pau, chifre e pedra com especialização crescente indicam a modificação do comportamento comensal. Com anatomia de presa deve ter sido muito difícil atuar como predador, por isso era necessária organização social para obter carne. A dinâmica com aquele ambiente e as relações com aquelas espécies naqueles tempos distantes ainda marcam nossos corpos. Ainda hoje, quando o ritmo rápido da mudança cultural deixou para trás a lenta evolução biológica e o nosso ambiente não é mais uma savana mas a cultura da cidade, estamos mais preparados para a escassez do que para a abundância de alimentos. Resistência à insulina, metabolismo da gordura, estresse prolongado, intolerância ao glúten ou à lactose etc. São características evolutivas que respondem ao nosso passado como espécie onívora que se adaptou a diferentes ambientes (da savana africana às pastagens americanas ou às selvas asiáticas). A tecnologia extrativa necessária para atender às demandas metabólicas nos posicionou como apenas mais um predador, mas para isso foi necessário substituir as pequenas presas e unhas planas da espécie homo3 .
Há cerca de 50 mil anos, o homo sapiens anatomicamente moderno, que vivia em bandos de caçadores-coletores, já havia colonizado todos os ecossistemas do planeta, com exceção da Antártida. Seus corpos, sua alimentação e um pouco de sua vida social podem ser reconstruídos a partir de evidências arqueológicas, com algumas referências etnográficas dos poucos grupos que ainda não foram exterminados pelas sociedades atuais, uma vez que toda a expansão desde as primeiras sociedades agrícolas até as atuais sociedades industrializadas foi realizadas à custa dos seus territórios, da sua cultura e das suas vidas.
Nos bandos de caçadores-coletores, atuais e passados, a chave para a sobrevivência é a organização social e a obtenção de alimentos proporciona um eixo poderoso para a ação coletiva. Comer está em primeiro lugar e extrair o alimento não é fácil em nenhum ambiente, por isso todos (com suas diferentes possibilidades e habilidades) colaboraram para provê-la com seu trabalho diário. Os bandos – embora formadas por vários grupos familiares – compartilhavam um único fogão, o que demonstra reciprocidade no consumo. Embora a coleta de hortaliças fosse a base da alimentação, a carne tornou-se um bem social, pois a caça, por ser difícil e perigosa, era coletiva e promovia a reciprocidade como forma de distribuição, reduzindo o risco de dependência de recursos móveis e atividades penosas. Quando há, há para todos. Quando não há, não há para ninguém.
A dieta média dos nossos antepassados paleolíticos era nutricionalmente adequada. Mas é preciso falar de dietas – no plural –, pois os diferentes bandos, em ambientes diferentes e com tecnologia e organização diferentes, comiam alimentos diferentes que organizavam em diferentes tipos de preparações, em que a criatividade humana transformaria em diferentes refeições. Viver nos trópicos não é o mesmo que viver num glaciar, por isso esta síntese compacta generaliza-se num mundo de particularidades. No entanto, existe uma característica comum a todos estes regimes: as refeições são sazonais, diversificadas e frugais. Também magras (animais selvagens correm para salvar suas vidas, então sua carne tinha 30% menos gordura do que a de seus descendentes domesticados). Exceto em ambientes marítimos, consumia-se pouco sal e, em geral, pouco álcool (proveniente da fermentação de frutas e grãos nativos), poucos carboidratos (tubérculos e grãos silvestres são sazonais), muitas fibras (de vegetais e frutas naturais), poucos açúcares (mel e frutas da estação) e nada de leite, nem açúcares ou óleos refinados. Acrescentavam-se ovos, frutas secas e insetos, quando o ambiente permitia. Uma grande variedade de espécies caiu nas cozinhas dos caçadores-coletores, resultando num regime caracterizado pela diversidade. Os efeitos desse tipo de dieta ficaram marcados nos ossos fósseis, dos quais se inferem corpos altos, magros, com boa saúde nas curtas vidas (30 anos para os homens e 27 para as mulheres, o que comprova uma vez mais os riscos da maternidade).
Se a desigualdade marca os corpos, não devemos esquecer que a igualdade também o faz, de modo que onde a reciprocidade reinou na distribuição encontramos uma forma única nos corpos. As pinturas rupestres mostram pessoas altas (só recentemente o crescimento secular do século XX recuperou, para algumas populações, a altura dos seus antepassados paleolíticos). Viviam no limite, com poucos depósitos de gordura corporal (genes parcimoniosos levavam à poupança em forma de panícula adiposa em épocas de abundância para gastar em épocas de escassez), de modo que as mulheres raramente conseguiam acumular as 23.000 kcal de reservas que são necessárias para ovular durante a lactação, por isso assumimos a existência de espaços intergênicos de quatro anos. Estas dietas foram fruto da vida paleolítica e, embora hoje estejam na moda, devemos reconhecer que não existem condições para desenvolvê-las. Se é verdade que comemos como vivemos, essa alimentação dependia desse modo de vida, e hoje nem a apropriação da terra nem a densidade demográfica permitem uma economia caçadora-coletora, nem existem animais e plantas selvagens, uma vez que na atualidade todas as espécies que constituem a base da nossa alimentação têm em média aproximadamente seis mil anos de domesticação. Mas embora seja impossível reproduzir estas dietas, elas podem servir de horizonte para direcionar o nosso consumo, uma vez que tiveram tanto sucesso que permitiram que um punhado de primatas mutantes ocupasse todo o planeta 4 .
Alguns dados sugerem que nestes pequenos bandos – nos quais as espécies viveram durante centenas de milhares de anos – prevaleceram as diferenças (idade, gênero, função), mas não a desigualdade (porque tais diferenças não expandiram nem restringiram direitos), e esses foram, talvez,as bases desse corpo singular.
Na paleoepidemiologia, mais uma vez, a diversidade é a norma. Dado que os ambientes são diversos, as infecções pŕovenientes de vermes (tênia, ancilostomíase) e mosquitos (malária, dengue) serão um problema nos trópicos e inexistentes nos climas polares. Mas acidentes (mais frequentes e fatais do que hoje), doenças degenerativas (como artrite, osteoporose e desgastes dentários) e febres transmitidas por artrópodes, diarreias, doenças gastrointestinais e respiratórias e infecções de pele eram comuns a todos os grupos. Doenças infecciosas como difteria, gripe ou sarampo, etc. eram desconhecidas ou muito raras nas sociedades de caçadores-coletores antes da domesticação ou do contato 5 .
O corpo do Estado
Há 13 mil anos, o clima mudou e a temperatura média aumentou 5 °C; isto derreteu os glaciares, fez com que as florestas suplantassem as planícies, e a subsequente migração e extinção de espécies deu início ao maior programa de conservação que a humanidade alguma vez empreendeu: a domesticação. Quando os vegetais foram domesticados, foram criados pequenos ecossistemas com certo controle e previsibilidade (parcelas), baseados na adição de energia humana, para aumentar os rendimentos. A domesticação dos animais, por sua vez, conseguiu uma reserva permanente de carne e fibras e permitiu roubar leite de outros mamíferos e conservá-lo na forma de iogurte e queijo. Este evento cultural, ao longo do tempo e em diferentes geografias, estabeleceu cinco mutações que permitem a absorção do açúcar do leite (lactose), transformando o genótipo “estatisticamente normal” que partilhamos com outros primatas de intolerante para tolerante… mas apenas nas culturas em que o gado leiteiro domesticado; para que o consumo de laticínios fosse uma cultura feita na natureza, marcada em nossos corpos e em nossos genes 6 .
As características dos grãos, embora tenham fornecido as soluções mais estáveis para o problema da produção de alimentos (são as mesmas espécies que consumimos hoje), tiveram consequências ecológicas desastrosas (homogeneização e fragilidade dos ecossistemas), demográficas (aumento da população, mas com menor qualidade e expectativa de vida), depressão da saúde neolítica (com uma perda de 20 cm na altura média), redução dos espaços intergênicos (alimentadas com cereais, as mães podiam manter a amamentação e a gravidez simultaneamente) e até epidemias das mesmas doenças infecciosas que que sofremos hoje aparecem. Todas essas modificações tiveram consequências sociais e políticas.
Se compararmos os cultivadores de grãos com os cultivadores de tubérculos, veremos até que ponto o que produzimos como alimento condiciona a organização sociopolítica, uma vez que a natureza perecível dos tubérculos impulsionou a criação de instituições redistributivas sazonais (festas e banquetes onde são consumidos até a saciedade) para metabolizar alimentos que não podem ser armazenados (o que acontece com os grãos) 7 . Em populações numerosas, circunscrita, assentada e amontoadas em vilas ou cidades, alimentadas de forma monótona e pouco diversificada, à base de cereais ou tubérculos – ricos em amido -, e que também utilizam as mesmas fontes de água para higiene, beber, cozinhar e produzir, aparecerão as primeiras epidemias. Onde as populações humanas e animais estiveram em contato próximo durante o processo de domesticação, algumas zoonoses ultrapassaram a barreira das espécies e permitiram que micróbios de animais se adaptassem aos humanos e evoluíssem para se tornarem patogênicos. Além da carne e do leite, as vacas nos transmitiram sarampo e tuberculose; porcos, a coqueluche; e patos, a gripe.
Maior população, superlotação, alimentação pobre em nutrientes, água contaminada e animais domesticados: esse foi o combo explosivo que transformou doenças em epidemias. Estas devastaram as populações regularmente. Porém, a fome foi a principal epidemia que assolou a humanidade desde então. Seja por causas naturais (inundações, secas, insetos) ou por causas políticas (impostos, guerras, escravidão), a possibilidade de comer, para a maioria, sempre esteve em dúvida: desde a invenção da agricultura, a humanidade viveu em sociedades de restrição calórica onde a comida não era suficiente para todos. A acumulação, a apropriação de excedentes e as diferentes formas de distribuição foram as formas mais ou menos criativas que os nossos antepassados encontraram para aliviar a fome (das minorias e não das maiorias). E como uma população desnutrida é uma população imunocomprometida (o sistema imunológico humano é composto por proteínas, que são os alimentos mais caros, devido à energia e ao tempo necessários para produzi-los), tanto agora como no passado a possibilidade de resistir a doenças foi muito limitada. A intensificação da produção com arados e irrigação permitiu superar as carências sazonais e produzir excedentes, mas isso trouxe o problema de como distribuí-los. Foram introduzidas instituições que amplificaram as diferenças (sociais, sexuais, etárias, etc.) transformando-as em desigualdades. Embora os caçadores especializados em animais de grande porte já fizessem parte de sociedades paleolíticas hierárquicas e desiguais, onde a força masculina era a fonte de todos os direitos, a partir do acúmulo de excedentes a desigualdade passa a ser consequência da tendência de apropriação, ou seja, torna-se puramente cultural. E crianças, mulheres e outras pessoas com direitos restritos (escravos ou servos) são excluídas e subalimentadas por serem consideradas subumanas nas novas cidades, onde se concentrava o poder da principal instituição redistributiva: o Estado.
Há 6 mil anos, os Estados que surgiram em diferentes partes do mundo, apesar das suas muitas diferenças, tinham características comuns: baseavam-se na existência de grandes populações (a serem tributadas) e circunscritas (sem possibilidades de evasão), estratificações hierárquicas (de acordo com a sua apropriação) e especializações funcionais (camadas de camponeses, artesãos, guerreiros, sábios, etc.) com níveis administrativos (local, regional, nacional) que coexistiam com outros circuitos redistributivos – os templos, o mercado – de menor importância 8 .
Das pequenas cidades-estado gregas aos gigantescos impérios chineses, todos estes Estados, apesar da sua variedade, desenvolverão cozinhas diferenciadas e “corpos de classe”. Porque quando há apropriação hierárquica do excedente agrário, surge a distinção entre estilos de vida com signos particulares, aos quais a alimentação e a culinária não poderiam ser alheias.
A “baixa gastronomia” ou culinária camponesa – caseira, familiar, simples e feminina – baseava-se num cereal (arroz na Ásia, milho na América, trigo na Europa), alguns vegetais e quase nenhuma carne ou produtos de origem animal. Hoje é divinizado como saudável, quando era uma culinária de escassez. Por sua vez, a “alta cozinha” ou cozinha da corte ou aristocrática era composta por todo o resto, até por comidas exóticas. Tinha receitas escritas, preparadas por cozinheiros que organizavam banquetes para uma pequena massa de aristocratas sibaritas que não poupavam despesas. As orgias romanas são um exemplo desta cozinha política, onde a comida se come, se saboreia e é mostrada como espelho do poder 9 . Estas sociedades hierárquicas com cozinhas diferenciadas não podiam promover um corpo único, mas em vez disso geraram “corpos de classe”: pessoas ricas e gordas e pessoas pobres e magras, cada uma com formas diferentes de adoecer e morrer. Os primeiros sofrerão das doenças da abundância (sobrepeso, obesidade, gota, diabetes mellitus) e os segundos, das doenças da escassez (desnutrição, pelagra, anemia). Nos últimos cinco mil anos, o tamanho da cintura coincidiu com a classe social, e não é surpreendente que o excesso de peso fosse visto como uma coisa boa, mas também como um sinal de boa saúde: evidências empíricas alertavam que as pessoas gordas adoeciam menos e recuperavam melhor e mais rapidamente a saúde, por isso se tornaram motivo de desejo e sinônimo de beleza.
O corpo do mercado
A expansão colonial das potências europeias encontrará na África, na América e na Ásia não só o ouro que financiou o seu desenvolvimento, mas também a possibilidade de cultivar o alimento mais caro da sua pirâmide de preços: o açúcar, que deixará de adoçar as refeições da realeza para reforçar a alimentação dos pobres. O sistema de plantation do Caribe inaugura o comércio em grande escala de escravos africanos (sequestrados para remediar o genocídio dos nativos). Tanto na América como no Sudeste asiático, as plantações de açúcar (com os seus engenhos de açúcar para cristalizá-las) expandiram-se à custa de selvas e culturas. A partir do século XVII, o açúcar barato inundou as cozinhas de todo o mundo e financiou metabolicamente a Revolução Industrial e – ao destilar melaço para produzir aguardente – tornou-se tanto numa arma de dominação territorial como num “matador da fome” proletária 10 .
Se o capitalismo mercantil ampliou o comércio de açúcar para todo o mundo, o capitalismo industrial aproveitou-o ao máximo. As fábricas são construídas com base no planejamento espacial dos engenhos. A energia dos trabalhadores metropolitanos foi assegurada com infusões baratas vindas do exterior. A energia – proveniente do açúcar – e a sensação de saciedade e calor – proveniente da água quente – deram aos trabalhadores o que necessitavam para suportar longas jornadas de trabalho mal remunerado. Como a aristocracia se apropriou da maior parte da produção alimentar, os trabalhadores aceitaram de bom grado o açúcar barato. Não devemos esquecer que o sabor doce, precisamente porque era escasso quando se formou a anatomia da espécie, não vai ser rejeitado, como verificaram os abolicionistas europeus quando apelaram – com pouco sucesso – a um boicote ao consumo de açúcar para acabar com o infame comércio de escravos.
Ainda hoje, depois de meio século de pressão sanitarista que visa reduzir o açúcar nas dietas, dada a magnitude e as consequências nefastas do seu consumo, o objetivo dificilmente é alcançado pela substituição por adoçantes. Praticamente todos os alimentos industrializados contêm açúcares (sendo a sacarose e o xarope rico em frutose entre os mais comuns) porque aumentam a palatabilidade e a preservação, e também estão presentes de forma “invisível” em alimentos salgados que não se espera que o contenham.
O transporte de espécies que se seguiu à expansão colonial europeia remodelou os ecossistemas ao promover 15 gêneros à escala planetária, destruindo a paisagem e a organização local em prol da rentabilidade comercial. A indústria alimentícia que emergiu desta abundância transformou os alimentos através da conservação, mecanização, transporte, segurança controlada por sistemas especializados, publicidade e marketing baseados em redes globais de atacado e varejo. Hoje, mais do que indústrias, existem 250 holdings altamente diversificadas (empresas agrícolas, laboratórios de sementes, bancos, empresas de transporte, portos, supermercados, etc.) à escala global que decidem a dieta dos comensais nas sociedades atuais 11 . E como a escala baixa o preço, é produzido em massa e vendido globalmente e, assim, os argentinos, chineses, franceses, nigerianos compram os mesmos produtos industrializados para comer. Longas cadeias de comércio levam as embalagens a todos os cantos do planeta e transformam comensais em consumidores. São bens “bons para vender e não bons para comer” 12 porque, apesar da diversidade de marcas, todas contêm a mesma coisa. O sucesso de um alimento industrializado é que ele é produzido com baixo custo para que, embora o consumidor não saiba, há coisas dentro da embalagem que não vão faltar porque barateiam custos: carboidratos, gorduras, sal e açúcar, juntamente com conservantes, aromatizantes e corantes 13 , entre as substâncias permitidas, e resíduos de plástico, medicamentos e pesticidas entre as não permitidas. A norma do nosso tempo é comer sozinho produtos desconhecidos, em embalagens individuais e, sobretudo, comer sem parar (24 horas por dia, sete dias por semana) em qualquer lugar e a qualquer hora.
Os alimentos processados substituíram os produtos naturais, reduzindo o tempo gasto para se cozinhar (numa sociedade que gradualmente deslegitimou as tarefas reprodutivas), os alimentos ultraprocessados substituíram refeições inteiras (como a “barra de cereais” que substituiu o almoço no escritório). Essa situação benéfica para a indústria custou muito caro ao consumidor, pois esse tipo de dieta (juntamente com a redução de movimentos) é considerada responsável pelas doenças crônicas não transmissíveis (diabetes, hipertensão, colesterolemia, acidente vascular cerebral, etc.) que afligem o mundo hoje a ponto de se transformarem em pandemias: a obesidade é a primeira pandemia não infecciosa declarada como tal pela Organização Mundial da Saúde (OMS) 14 .
Num artigo anterior, abordamos a crise alimentar 15 , que hoje se apresenta como estrutural (afeta simultaneamente a produção, a distribuição e o consumo), paradoxal (com alimentos para todos, há 800 milhões de pessoas subnutridas 16 ) e terminal (a poluição provavelmente excedeu as capacidades de neurorregeneração de todos os ecossistemas).
Na produção, enfrentamos uma crise de qualidade (excesso de carboidratos, gorduras e açúcares com situação crítica em micronutrientes como vitaminas, ferro e cálcio) e de sustentabilidade (se o modelo extrativista de agricultura química, pecuária farmacológica e pesca predatória, a deterioração do meio ambiente compromete a produção futura). Dado que a distribuição é feita através de mecanismos de mercado, há uma crise de equidade, porque os alimentos não vão onde são necessários, mas onde podem ser comprados, com consequências desastrosas para a população, como o subconsumo e o sobreconsumo, ambos insalubres. E no que diz respeito ao consumo, vivemos uma crise de comensalidade, uma vez que a alimentação industrial substituiu todos os padrões locais, boicotando as identidades alimentares (que fazem parte da identidade) e apagando a comida caseira e a mesa numa bicada permanente de “ocnis”: objetos comestíveis não identificados 17 .
O extraordinário crescimento da disponibilidade de alimentos no século XXI não garantiu o fim da fome ou das doenças de origem alimentar. Com uma disponibilidade aparente de 3.200 kcal/pessoa/dia como média global (o que implica uma produção capaz de alimentar 10 bilhões de pessoas), os oito bilhões de pessoas que hoje habitam o planeta deveriam ter acesso às 2.000 kcal/pessoa/dia recomendadas pelos nutricionistas. Oculta-se que 30% dos alimentos produzidos são perdidos no transporte e na industrialização, desperdiçados (devido ao mau manuseio) ou jogados fora (para manter os preços). E esconde-se que à medida que o sistema alimentar se globalizou até se tornar, como hoje, um sistema mundial, com enclaves produtivos e nichos de mercado, a fome já não dependia de causas naturais (secas, inundações), mas de causas econômicas (acesso aos alimentos), e entre aqueles que podem comprar, os corpos de classe do passado foram invertidos: agora os pobres têm maior probabilidade de serem obesos, enquanto os ricos podem permanecer magros, ambos com doenças específicas associadas a esses corpos.
Hoje é mais fácil encontrar excesso de peso e obesidade na pobreza do que na riqueza. Porque os pobres do mundo compram (ou recebem) alimentos de alto rendimento (processados pela indústria global), cheios de energia (baratos) e carentes de micronutrientes (caros). Esta desnutrição também tem sido chamada de fome oculta: porque esconde com abundância (de pão, batata, gordura e açúcar) todos os males da escassez (de carne, laticínios, frutas e vegetais). O triste é que as próprias vítimas não questionam a natureza social da sua pena, porque séculos de associação de corpos opulentos com bem-estar significam que o excesso de peso não funciona como um alerta de saúde; no máximo, é visto como um incômodo estético.
Podemos ver esta desnutrição induzida pela indústria (porque é a oferta hegemônica nas cidades) como funcional ao desenvolvimento da vida social, econômica e política. Com esta configuração de consumo, todos parecem obter algum benefício: a população, o mercado e o Estado, só que neste tipo de jogo perverso o ser humano está condenado a perder antecipadamente pelo simples fato de o jogar.
Para os pobres é lucro porque, ao contrário do que aconteceu no passado, agora comem. Ruim, mas eles comem. Eles podem desenvolver suas vidas, aprender, trabalhar, reproduzir, participar de atividades sociais, etc. É uma organização de consumo pouco saudável, mas inclusiva. Deficiências de micronutrientes, imunossupressão ou infecção tornam-se visíveis a longo prazo e como adoecimento individual (maior sensibilidade a infecções, menor nível de aprendizagem, baixo peso ao nascer, anemia, etc.). O sistema médico tem respostas clínicas (individuais). Cuida, controla, legitima, regula e medica, o que resulta na ampliação de suas funções (desde tratar doenças até controlar a saúde). A indústria farmacêutica se expande com a medicalização dos alimentos (fortificados). A desnutrição também é funcional para o sistema agroalimentar, pois mesmo o consumo limitado dos pobres permite a criação de um mercado que produz lucros (e sem dúvida mais lucros do que a ausência de consumo por uma população faminta ou do que o consumo num sistema alternativo, informal, autoprodução e autoconsumo).
Quando o consumo das famílias cai para níveis críticos, o Estado complementa o seu consumo pouco saudável com os mesmos alimentos insalubres. Seja pela economia (barato), pela logística (seco, embalado, fácil de transportar) ou pela aceitação (são os mesmos macarrão, óleos e açúcares que comem quando podem comprá-los), para o mercado eles até simplificam a demanda. São também funcionais ao componente político, que gera clientela partidária através de planos que reduzem o conflito social.
São funcionais para a organização econômica porque os desnutridos trabalham, produzindo mesmo com baixa produtividade, nos mercados de trabalho urbano formal e informal. Funcionais às concepções que diferentes setores têm sobre si e sobre os outros, porque marcam, delimitam, relacionam, opõem e complementam visões de vida, de sociedade e de corpo, em parte marcando, em parte mascarando as relações entre eles.
Se a nossa análise foi acertada, é necessário repensar a dieta atual na sua totalidade e agir agora. Porque dadas as vantagens sistêmicas da desnutrição, da baixa estatura, da obesidade e das deficiências de micro e macronutrientes, e dado que, apesar do sofrimento individual, são funcionais ao desenvolvimento da vida social, então, devemos esperar que esta seja a nova forma da fome no novo milênio.
Notas
1. P. Aguirre: Una historia social de la comida, Lugar Editorial, Buenos Aires, 2017.
2. Los chimpancés buscan raíces y extraen termitas con ramas, usan piedras para abrir o aplastar semillas y cazan otros monos con palos.
3. José Campillo Álvarez: El mono obeso. La evolución humana y las enfermedades de la opulencia, Crítica, Barcelona, 2010.
4. Julio Montero: «Alimentación paleolítica en el siglo XXI» en Revista de la Sociedad Argentina de Nutrición vol. 13 No 1, 2010.
5. P. Aguirre: Una historia social de la comida, cit.
6. Sarah A. Tishkoff et al.: «Convergent Adaptation of Human Lactase Persistence in Africa and Europe» en Nature Genetics No 39, 2007.
7. Marvin Harris: Bueno para comer. Enigmas de alimentación y cultura, Alianza, Madrid, 1985.
8. Francis Berdan: «Comercio y mercados en los Estados pre-capitalistas» en Stuart Plattner: Antropología económica, Alianza / Patria, Ciudad de México, 1991.
9. Jack Goody: Cocina, cuisine y clase. Un estudio de sociología comparada, Gedisa, Barcelona, 1985.
10. Sidney Mintz: Dulzura y poder. El lugar del azúcar en la historia moderna, Siglo XXI Editores, Madrid, 1996.
11. Raj Patel: Obesos y famélicos. Globalización, hambre y negocios en el nuevo sistema alimentario mundial, Marea, Buenos Aires, 2008.
12. M. Harris: ob. cit.
13. Marion Nestle: Food Politics: How the Food Industry Influences Nutrition and Health, University of California Press, Berkeley, 2003.
14. Margaret Chan: «Alocución de la Dra. Margaret Chan, Directora General, a la 66.ª Asamblea Mundial de la Salud», 20/5/2013, disponible en www.who.int/dg/speeches/2013/world_health_assembly_20130520/es.
15. P. Aguirre: «Alternativas a la crisis global de la alimentación» en Nueva Sociedad No 202, 3-4/2016, disponible en www.nuso.org.
16. FAO, FIDA, UNICEF, PMA y OMS: «El estado de la seguridad alimentaria y la nutrición en el mundo. Fomentando la resiliencia climática en aras de la seguridad alimentaria y la nutrición», Roma, 2018.
17. Claude Fischler: El (h)omnívoro. El cuerpo, la cocina y el gusto, Anagrama, Barcelona, 1995.
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 20/06/2024
As consequências da execução do Plano real e de sua política macroeconômica, em especial a monetária e a cambial, foram desastrosas para a estrutura e dinâmica da economia brasileira.
Luiz Filgueiras
Introdução1
No dia 1º de julho próximo, o Real fará trinta anos de existência; mas o Plano de Estabilização que criou e deu vida a essa moeda, denominado inicialmente como Plano FHC e posteriormente como Plano Real, foi instituído em dezembro de 1993 com o anúncio de um “ajuste fiscal”, seguido pela criação da URV (Unidade de Referência de Valor) em fins de fevereiro de 1994 e, finalmente, o surgimento da nova moeda (o Real) no início do mês de julho.
Mas esse Plano não foi simplesmente um Plano de Estabilização monetária, de controle da inflação; apesar de, em geral, ser visto e compreendido como tal, mesmo entre a maioria dos economistas, que destacam, sobretudo, o seu sucesso no combate à inflação – após o fracasso de quatro Planos anteriores: o Cruzado (1986), o Novo Cruzado ou Bresser (1987), o Verão (1989) e o Collor (1990). Com isso, coloca-se na sombra: as suas consequências conjunturais e estruturais para o conjunto da economia brasileira; e o seu papel mais abrangente na transformação mais recente do capitalismo brasileiro.
No primeiro caso, não se evidencia e muito menos se destaca o impacto devastador que o Plano Real e sua política macroeconômica teve sobre todas as demais variáveis (dimensões da economia brasileira) para além da inflação: deterioração das contas externas do país (Balança Comercial e de Serviços, Transações Correntes), crescimento das dívidas externa e interna, piora das contas públicas (Déficit Púbico), estagnação econômica e aumento do desemprego, e desnacionalização da economia. Em suma, vulnerabilidade externa (Balanço de Pagamentos) e fragilização interna (Finanças Públicas).
Além disso, obscurece-se o seu papel político crucial na eleição de FHC para Presidência da República, ocorrida no início de outubro de 1994 – três meses após a implantação da nova moeda –, e, o mais importante, o fato do Plano Real ter sido peça-chave na integração do capitalismo dependente brasileiro ao novo regime de acumulação mundial (capitalismo financeiro mundializado) que então se constituía, ajudando a consolidar no Brasil a transição entre dois Padrões de Desenvolvimento Capitalista: do Padrão de Desenvolvimento de Substituição de Importações (PDSI) ao Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico (PDLP).
Esse texto recupera todas essas dimensões, “esquecidas”, do Plano Real e evidencia a “camisa de força” que aprisionou o país em uma trajetória de baixo crescimento econômico e domínio das finanças, com a apropriação do Estado por um bloco no poder que, com uma ou outra inflexão, tem, desde então, a hegemonia do capital financeiro nacional e internacional. Em particular, o texto destaca a nova forma de dependência constituída a partir de então, bem como as principais características do novo Padrão de Desenvolvimento Capitalista (Liberal-Periférico).
Além dessa Introdução e da Conclusão, ele é constituído por mais quatro seções, denominadas: “Conjuntura internacional: constituição de um novo regime de acumulação”; “Conjuntura nacional: a crise do PDSI e a transição para o PDLP”; “O Plano Real: muito além de um Plano de Estabilização”; e “O Novo Padrão de Desenvolvimento: PDLP”.
Conjuntura internacional: constituição de um novo regime de acumulação
Na década de 1990 o capitalismo, no plano mundial, estava consolidando, a partir dos países imperialistas, uma nova forma de existência, expressa em um novo regime de acumulação, agora sob a hegemonia das finanças. Resultante de grandes transformações derivadas da conjunção de três fenômenos de natureza econômica e política, quais sejam: a reestruturação produtiva, a mundialização-financeirização do capital e a ascensão político-ideológica do neoliberalismo, essa nova forma de existência do capitalismo substituiu o regime de acumulação fordista – que vigorou desde o pós-2ª Guerra até os meados dos anos 1970.
A reestruturação produtiva, iniciada nos países centrais na década de 1970, e posteriormente difundida para a periferia, foi a resposta do capital à desaceleração da produtividade do trabalho e à redução da taxa de lucro – constituindo-se em uma grande transformação sociotécnica-produtiva, com a introdução de novas tecnologias (3ª revolução tecnológica) e de novas formas de gestão da produção e do trabalho (parte delas oriundas do denominado “Modelo Japonês” ou “Toyotismo”: just-time, terceirização, um novo tipo de participação da força de trabalho no processo produtivo etc.).
Como resultado dela, a relação capital-trabalho sofreu uma forte alteração, em razão do aumento do desemprego estrutural (“enxugamento das empresas”) e do enfraquecimento dos sindicatos, que mudaram a correlação de forças em detrimento do trabalho. Na periferia do capitalismo esse processo iniciou-se na segunda metade dos anos 1980, aprofundando-se nas décadas seguintes. Nessas transformações o capital financeiro teve papel fundamental, ao impor a sua lógica volátil à esfera produtiva, pressionando as empresas a reduzirem o seu quadro de funcionários e apresentarem resultados econômico-financeiros de curto prazo – colocando os interesses imediatos dos acionistas como prioritários.
Por sua vez, o processo de mundialização-financeirização do capitalismo iniciou-se ainda no início dos anos 1970, quando a ordem financeira internacional de Bretton Woods começou a ser desmontada unilateralmente pelos EUA, com o fim do sistema dólar-ouro que regulava as relações comerciais e financeiras desde o pós-2ª Guerra. Desde então, as restrições à livre movimentação do capital financeiro foram sistematicamente retiradas, levando ao apagamento das fronteiras entre os diversos tipos de mercados financeiros, ao surgimento de novos agentes financeiros (investidores institucionais como os fundos de pensão, fundos de investimento, seguradoras etc.) e novos instrumentos de acumulação financeira (genericamente englobados em todos os tipos dos chamados “derivativos”).
Nesse processo, a partir dos anos 1990, os países periféricos foram incorporados como plataformas de acumulação para o capital financeiro, através da securitização de suas respectivas dívidas públicas, obrigados a abrirem os seus mercados comerciais e financeiros, e tendo as suas políticas macroeconômicas tuteladas e condicionadas, quando não subordinadas, ao movimento especulativo e volátil de curto prazo dos capitais internacionais. Nessas novas circunstâncias, o fundo público passou a ser apropriado e controlado pelo capital financeiro, através das políticas de ajuste fiscal permanente, instrumento de transferência de renda das populações para uma reduzidíssima minoria de detentores da dívida pública. Do ponto de vista macroeconômico, a instabilidade exacerbou-se e as crises cambiais sucederam-se, primeiro na periferia e depois, quando da crise geral de 2008, no centro do sistema, difundida a partir dos EUA.
Por fim, a ascensão político-ideológica do neoliberalismo (construção teórica desenvolvida nas décadas de 1930 e 1940), consolidada com as eleições de Margareth Tatcher na Inglaterra (1979) e Ronald Reagan nos EUA (1980), após uma primeira experiência na Ditadura de Pinochet no Chile (1973), expressou, no plano político, a derrocada do Estado de Bem-Estar Social e a radical mudança na correlação de forças capital-trabalho em desfavor do segundo. Isso se expressou em reformas e políticas que modificaram a forma de articulação do Estado com o processo de acumulação, privatizações de empresas públicas, desregulamentação das relações trabalhistas, liberalização das relações comerciais e financeiras, redução dos regimes de Previdência e Assistência Social e repressão aos sindicatos.
Compreendido como uma ideologia, uma política econômica e/ou uma nova forma de racionalidade, o neoliberalismo passou a dominar todas as instâncias da vida econômicosocial, pautando o comportamento das economias, dos governos, das empresas, instituições e das famílias e pessoas em geral. Intrinsecamente articulado com os processos de reestruturação produtiva e financeirização, tem como ponto central a defesa do mercado, do capital em geral e do capital financeiro em particular, com a promoção da sua liberdade total de movimento e de seus valores (individualismo, concorrência em todos os âmbitos, empreendedorismo etc.).
O resultado mais geral dos três processos acima descritos, que constituíram o capitalismo contemporâneo, pode ser resumido como o advento da acumulação flexível, isto é, total liberdade de movimento do capital, com a flexibilização de todas as esferas e dimensões da acumulação de capital: flexibilidade espacial e temporal (comercial-financeira), flexibilidade produtiva (máquinas de comando numérico e trabalhador polivalente) e flexibilidade-desregulação do mercado de trabalho (extinção de direitos sociais e trabalhistas).
Os impactos sobre as relações capital-trabalho foram profundos: salto no desemprego estrutural, precarização do trabalho de várias formas (que tem na “uberização do trabalho” o seu ápice atualmente), destituição de direitos trabalhistas e sociais, crise dos sindicatos e forte diferenciação da classe trabalhadora. No âmbito mais amplo da sociedade, acirrou-se a instabilidade, a incerteza e a insegurança; com o aumento da pobreza e da exclusão social, e o retorno a um elevadíssimo grau de concentração de renda existente no pré-2ª Guerra Mundial, mesmo nos países centrais, em especial os EUA. E, na esfera política, o pior de tudo: o retorno do fascismo na esteira do fracasso do establishment (a direita neoliberal e os partidos socialdemocratas cooptados para a agenda da direita) em responder aos problemas e os anseios da maioria da população, expressando uma crise profunda de representação e da democracia liberal.
Conjuntura nacional: a crise do PDSI e a transição para o PDLP
No âmbito interno, o Brasil pré-Real, em toda a década de 1980, conviveu com a crise terminal (estrutural) do Padrão de Desenvolvimento de Substituição e Importações (PDSI), expressa na chamada “crise da dívida” (determinada por dois “choques do petróleo e, principalmente, pela elevação da taxa de juros dos EUA em 1979) – que abarcou toda a periferia mundial e em particular a América Latina –, no fenômeno da estagflação e no estrangulamento externo. A segunda razão foi particularmente trágica para o aumento (e autonomização) da dívida externa, em um contexto no qual os contratos entre credores e devedores estabeleciam a cláusula de taxas de juros flutuantes.
Na primeira metade dessa década, fase final da Ditadura Militar, o governo, subordinado ao FMI, adotou o chamado “Enfoque Monetário do Balanço de Pagamentos”, que respondeu diretamente aos interesses dos credores da dívida externa. Essa política, ao priorizar a obtenção de elevados saldos na Balança Comercial, através da desvalorização sistemática (maxi e mini) da moeda nacional e da redução dos gastos públicos, produziu duas fortes recessões (1981 e 1983) e acelerou o crescimento das taxas de inflação, que saíram completamente fora de controle. Ao mesmo tempo, as dívidas públicas, interna e externa, dispararam, com a deterioração das finanças do Estado. A estagflação produzida por essa política enfraqueceu de vez a Ditadura Militar.
Na segunda metade dos anos 1980, já com a restauração democrática, a política ortodoxa da Ditadura deu lugar a sucessivos Planos de Estabilização, que fracassaram no combate à inflação, por razões internas e externas. Os três primeiros (Cruzado, Bresser e Verão) tinham um diagnóstico semelhante correto, o de que a inflação do período tinha um componente inercial fortíssimo e, para enfrentá-la, se utilizaram do mesmo procedimento (equivocado), qual seja: o congelamento de preços e salários.
A passagem abrupta da velha para a nova moeda sempre traz as pressões inflacionárias previamente existentes, que se manifestam aberta e imediatamente após o término dos congelamentos. A razão disso não é difícil de entender: todo congelamento, quando decretado, sanciona as assimetrias de preços previamente existentes, favorecendo alguns setores da economia (que acabaram de reajustar seus preços) e prejudicando outros (que estavam na eminência de reajustarem os seus preços e foram pegos de surpresa). O resultado é sempre o mesmo, desabastecimento e/ou comercialização dos produtos com ágio (ilegalmente, por fora do tabelamento oficial).
Mas a questão central do fracasso desses Planos, todos executados na 2ª metade dos anos 1980, foi a ausência de liquidez internacional (prevalecente em toda a década), derivada da já mencionada elevação da taxa de juros nos EUA em 1979 (política do dólar forte para restaurar a competitividade de sua economia), e que levou reiteradamente ao estrangulamento externo dos países periféricos. Além disso, a crise estrutural do PDSI, iniciada pela crise de seu padrão de financiamento (apoiado no Estado e no endividamento externo), foi interpretada e tratada como se fosse uma crise conjuntural. Por isso, nem a ortodoxia apoiada pelo FMI nem a heterodoxia que acreditava no combate à inflação com crescimento econômico, conseguiram superar os dois problemas centrais da economia brasileira: o estrangulamento externo e a inflação.
O último Plano, antes do Plano Real, elaborado e executado no início da década de 1990, independente de seus equívocos e de ter também fracassado no combate à inflação, expressou o ápice da disputa política entre as várias frações do capital e da burguesia – que vinha se desenrolando durante toda a década anterior –, com a vitória daquela associada ao imperialismo e identificada com o programa político-econômico neoliberal: abertura comercial e financeira, desregulação da economia e privatizações das empresas estatais.
Por isso, o Plano Collor, para além do combate à inflação – através de um drástico “enxugamento da liquidez” da economia, com o sequestro momentâneo de parte da riqueza financeira existente nas Instituições bancárias: depósitos, cadernetas de poupança, todos os tipos de fundos de investimento etc. –, preconizava e iniciou a abertura comercial-financeira (queda das alíquotas de importação), desregulamentação de um conjunto de atividades e setores econômicos (fim da reserva de mercado para os capitais nacionais, com a entrada de capitais estrangeiros) e privatizações de empresas estatais.
Naquele momento, o país, o último na América Latina a assumir o neoliberalismo, estava iniciando a sua passagem do PDSI para o PDLP, superando a crise de hegemonia política que atravessou toda a década de 1980. Portanto, antes do Plano Real, o Plano Collor já trazia um conteúdo que ia muito além de um plano de estabilização. Contudo, diferentemente do primeiro, não teve sucesso na sua forma tosca de combate à inflação (“sequestro das poupanças”); o que foi decisivo para efetivação do impeachment do Presidente da República.
Mas a tentativa autoritária, de caráter bonapartista, de Fernando Collor de Mello, de comandar, sem negociar, a transição do país para o neoliberalismo, foi atropelada, sobretudo, em razão da disputa que ainda se travava entre as várias frações do capital, com relação às características que definiriam o novo Padrão de Desenvolvimento em gestação, em especial as divergências com relação à abertura da economia (o seu grau e a sua temporalidade). Essa negociação seria levada a cabo pelo Governo Itamar Franco, tendo como condottiere FHC, através da elaboração e execução do Plano Real.
O Plano Real: muito além de um Plano de Estabilização
O Plano Real nasceu como Plano FHC em dezembro de 1993, evoluindo em um processo constituído por três etapas sucessivas. Inicialmente anunciou-se um “ajuste fiscal” que, na realidade, como constatado posteriormente, não teve nenhum papel no combate à inflação. Nesta primeira etapa o importante foi a criação de um instrumento denominado de Fundo Social de Emergência (FSE) que, de fato, não era nem social nem de emergência; mas um Fundo a disposição do governo constituído pela desvinculação de 20% das receitas da União, para gastar conforme o seu livre arbítrio. Posteriormente, o nome desse Fundo mudou para Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, mais adiante, passou a ser chamado de Desvinculação das Receitas da União (DRU); este último expressando, de fato, o real significado e conteúdo do Fundo.
Na segunda fase, criou-se em fins de fevereiro uma espécie de superindexador, denominado URV (Unidade de Referência de Valor), uma “quase moeda” (que cumpriu as funções de unidade de conta e reserva de valor, mas não de meio de troca, pois não tinha curso legal)2, que viria a se constituir então no instrumento fundamental de combate à inflação inercial, possibilitando a passagem da velha para a nova moeda sem o congelamento de preços e salários e, portanto, sem levar as pressões inflacionárias previamente existentes para a nova moeda.
Quando de sua criação, o valor de uma URV equivalia a um Cruzeiro Real; esse valor passou a ser corrigido diariamente de acordo com, aproximadamente, a variação da média de três índices de preço (o IGPM da Fundação Getúlio Vargas, o IPCA do IBGE e o IPC da FIPE). Essa correção, na época, era similar à correção sofrida pelo valor do dólar, o que significa dizer que, já nesse momento, antes mesmo do surgimento da nova moeda, foi instituída a “âncora cambial” que viria acompanhar a nova moeda e que se constituiria no mecanismo fundamental do Pano Real para controlar o processo inflacionário.
Portanto, a partir daí, os preços e salários que fossem estabelecidos em URV manteriam o seu valor real, variando diariamente de acordo com a variação da inflação. No entanto, inicialmente só os preços administrados e definidos pelo governo (energia, telefonia, água, impostos, taxas etc.), além dos salários de toda a economia passaram a ser cotados em URV. Os preços do setor privado, de acordo com o livre arbítrio dos empresários, só foram transformados em URV à véspera do lançamento da nova moeda.
A última fase (dia 1º de julho de 1994) foi a transformação da URV na nova moeda, o Real. Operação realizada três meses antes da eleição para Presidente da República, foi decisiva para a vitória de FHC. Até à véspera da entrada em vigor da nova moeda, o candidato Lula da Silva era franco favorito (quando a inflação mensal chegou a 42%); no início de agosto as pesquisas já apontavam um empate técnico entre esses dois candidatos; no começo de setembro FHC já ultrapassava Lula da Silva; um mês depois, na eleição realizada no dia 03 de outubro, FHC venceu no primeiro turno, tornando-se o novo Presidente da República para o período 1995-1998.
A partir da nova moeda (Real) as taxas de inflação despencaram imediatamente, com alguns índices chegando a apontar deflação, isto é, redução média nominal de preços. Além da URV ter cumprido o papel de eliminar a inflação inercial, a deflação decorreu do fato dos empresários terem reajustados os seus preços de forma artificial, antes de transformá-los em URV na véspera do dia 1º de julho. Desse modo, quando foram transformados de URV para Real, conforme a paridade de um para um, esses preços, inflados preventivamente, não conseguiram ser sustentados pelos empresários e, assim, tiveram que ser reduzidos, agora na nova moeda.
Na sequência, diferentemente dos Planos anteriores, a inflação não retornou com o passar dos meses, por duas razões: promoveu-se uma queda generalizada das alíquotas de importação, estimulando-se a aquisição de produtos estrangeiros e acirrando-se a competição intercapitalista; adotou-se uma política de sobrevalorização do Real, mantendo-se sua paridade real (estabilidade) em relação ao dólar, que foi fixada inicialmente em um para um – variando posteriormente nominalmente, mas sempre mantendo-se a sobrevalorização; com isso, reforçou-se o estímulo às importações.
Na prática estabeleceu-se uma “âncora cambial” que sustentou a estabilidade da nova moeda durante quatro anos, mas que só foi possível porque o mercado financeiro, nos anos 1990, tinha voltado a ter grande liquidez – embora de outro tipo, diferente do ocorria nos anos 1970. Em vez dos empréstimos tradicionais de longo prazo, a nova liquidez era constituída por capitais de curtíssimo prazo, extremamente voláteis, que passaram a entrar no país para aquisição de títulos da dívida pública securitizada, atraídos por elevadas taxas de juro, muito acima das praticadas internacionalmente. E também para especular com ações na Bolsa de Valores.
Desde então, o país se integrou definitivamente ao novo regime de acumulação financeirizado-mundializado; mas para isso foi necessário a retirada de uma série de empecilhos institucionais (abertura financeira) que permitiu engatar o mercado financeiro nacional ao mercado financeiro internacional. Desse modo, o país, através de sua dívida pública, passou a ser mais uma plataforma de acumulação financeira no âmbito mundial.
As consequências da execução do Plano real e de sua política macroeconômica, em especial a monetária e a cambial, foram desastrosas para a estrutura e dinâmica da economia brasileira; de forma sintética: aprofundou a vulnerabilidade externa do país (com a instituição de uma nova dependência) e fragilizou o Estado e as finanças públicas – conforme detalhado a seguir.
A abertura comercial, associada à sobrevalorização do Real, colocou o país na rota de uma crise cambial, produzindo déficits crescentes nas Balanças de Comércio e Serviços e, por consequência, déficits também crescentes na conta de Transações Correntes. Para sustentar, e prolongar essa situação, adiando a crise cambial anunciada, lançou-se mão de uma política monetária de permanente juros altos e de um Programa de Privatizações (que passou a permitir a participação de capital estrangeiro). Com isso, acentuou-se o processo de desnacionalização de inúmeros setores da economia, limitou-se severamente o crescimento econômico, aumentou o desemprego e o déficit público, cresceu a dívida externa e estourou a dívida pública. Os números referentes a todas essas variáveis macroeconômicas, compilados em meu livro História do Plano Real, podem ser vistos nas fontes oficiais do governo: Banco Central, Ministério da Fazenda, IBGE etc.
Apesar de tudo, a possibilidade de uma crise cambial no Brasil, anunciada em três oportunidades consecutivas (crises do México em 1995, da Ásia em 1997 e da Rússia em 1998) tornou-se muito mais forte em 1998, último ano do primeiro Governo FHC e momento de nova eleição para a Presidência da República. Para adiar o desenlace final, esse governo contratou um empréstimo ao FMI que aportou, em valores da época, US$40 bilhões – o que permitiu (uma vez) a reeleição de FHC, mas não impediu o fim da âncora cambial no início do ano de 1999, na esteira de um violento ataque especulativo contra o Real. Ela foi substituída pelo denominado “tripé macroeconômico” (metas de inflação, superávits fiscais primários e câmbio flutuante) que, com variações conjunturais, manteve-se até os dias de hoje.
Conclusão: o Plano Real, sustentado pelo novo regime de acumulação financeirizado-mundializado, deixou, no curto e longo prazo, uma herança terrível; mas cumpriu o seu objetivo fundamental de, com a queda da inflação, legitimar o aprofundamento e a consolidação no Brasil de um novo Padrão de Desenvolvimento Capitalista (Liberal-Periférico) articulado estreitamente com o novo regime de acumulação internacional – que drena permanentemente, sob a forma monetária-financeira, a riqueza do país, controla o Fundo Público, condiciona e subordina o conteúdo e a execução da política macroeconômica, impõe baixas taxas de crescimento da economia e mantém a trágica e histórica concentração de riqueza e renda que caracteriza o país. Nesse processo, também contribuiu fortemente, em razão das altas taxas de juros praticadas e da valorização do real, para a trajetória de desindustrialização precoce do país.
O Novo Padrão de Desenvolvimento: PDLP
A nova forma de dependência, conformada a partir dos anos 1990 com a contribuição fundamental do Plano Real e sua política econômica, expressou-se na constituição do Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico, que redefiniu a estrutura e dinâmica da economia brasileira. Produto de uma nova configuração do Bloco no Poder, que passou a ter a hegemonia do capital financeiro e da fração da burguesia associada ao imperialismo, o PDLP redefiniu as relações fundamentais da economia capitalista dependente brasileira.
A relação capital-trabalho foi profundamente afetada, pelo aumento do desemprego, a precarização do trabalho e a crise dos sindicatos, que alteraram fortemente a correlação de força dos sujeitos sociais, em prejuízo do trabalho. Com isso, implementaram-se sucessivas Reformas da Previdência e desregulamentou-se essa relação, através de vários mecanismos, mas principalmente pela implementação de uma Reforma Trabalhista abrangente que detonou a CLT.
As relações intercapitalistas foram reformatadas a partir da lógica da financeirização, que passou a orientar todas as atividades econômicas, e até das famílias, com a constituição de uma “economia da dívida”. A dominância do capital financeiro (seus interesses e a sua lógica) estabeleceu-se sobre todas as outras frações do capital e expressou-se em sua hegemonia no Bloco Político no Poder.
A nova inserção internacional, no contexto da divisão internacional do trabalho, aumentou a vulnerabilidade externa do país, criando uma nova forma de dependência: à tradicional “troca desigual” e dependência comercial-tecnológica, adicionou-se a dependência financeira (de novo tipo) e do conhecimento – derivada de sua apropriação privada e de seu monopólio pelos países imperialistas, em especial as big techs dos EUA. À transferência de excedentes na forma de lucros, royalties e juros, veio acrescentar-se a renda-conhecimento.
O Estado foi redefinido na sua relação com o processo de acumulação de capital, reduzindo-se a sua capacidade de investimento e, com as privatizações de empresas estatais e o enfraquecimento de sua capacidade de executar as políticas públicas, perdeu o poder de reorientar a economia. Adicionalmente, com a sua fragilização financeira e subordinação ao capital financeiro, em especial para a rolagem da dívida pública, os serviços públicos passaram a perder qualidade. Por fim, sofreu uma reforma de caráter “gerencial” que, além de separar os servidores públicos concursados em carreiras “típicas” de Estado (uma minoria) e as demais (a grande maioria), introduziu generalizadamente, nesse segundo grupo, o processo de terceirização em seu interior, precarizando as relações de trabalho e visando quebrar a estabilidade dos servidores públicos.
Finalmente, do ponto de vista político, as forças sociais e partidárias sofreram um reposicionamento a partir dos anos 1990, com um deslocamento à direita. Parte majoritária da esquerda, o PT e suas áreas de influência, sofreu um processo de transformismo no qual abraçou pontos fundamentais da agenda neoliberal – mimetizando o que já ocorrera com a socialdemocracia europeia a partir dos anos 1980. Adicionalmente, a influência ideológica e dos valores neoliberais penetraram profundamente no conjunto da sociedade, impondo uma nova racionalidade aos sujeitos.
Embora tendo se mantido fundamentalmente o mesmo, o PDLP apresentou nuances ao longo dos seus 34 anos de existência, quando se observa e se compara o período dos governos de FHC com o período dos governos de Lula-Dilma. Os Governos FHC promoveram ativamente as reformas e políticas neoliberais, enquanto os Governos de Lula e Dilma, de forma passiva aceitaram a herança do período anterior, sancionando, mais do que aprofundando, esse Padrão de Desenvolvimento.
Além disso, alterações nas circunstâncias conjunturais internacionais, possibilitaram que os governos de Lula-Dilma flexibilizassem o Regime de Política Macroeconômico (RPM), especificamente denominado de Tripé Macroeconômico. O resultado disso foi um maior crescimento econômico e uma redução do desemprego; essa flexibilização, combinada com políticas sociais de vários tipos (renda mínima, cotas, salário-mínimo, moradia etc.) implicou em uma diminuição da pobreza absoluta e uma leve redução da concentração de renda, especificamente entre os rendimentos do trabalho. Em suma, no interior de um mesmo Padrão de Desenvolvimento existiram, em momentos distintos, diferentes Regimes de Política Macroeconômica.
Em resumo: o mesmo Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico conviveu nos últimos 34 anos com distintos Regimes de Política Macroeconômica, fortemente condicionados por diferentes conjunturas internacionais. A ideia, bastante difundida por parte majoritária da esquerda (o PT e o seu entorno), de que os Governos Lula-Dilma haviam superado o “modelo neoliberal” e instituído um “modelo neodesenvolvimentista”, foi resultado de se confundir o PDLP (uma dimensão estrutural de longo prazo) com distintos Regimes de Política Macroeconômica (referentes a uma dimensão conjuntural). A rapidez com que os Governos Temer e Bolsonaro desfizeram, total ou parcialmente, as conquistas obtidas pelos setores populares durante os Governos de Lula-Dilma, assim como a anulação de todas as políticas e programas desses últimos, valem mais do que mil palavras – que as paixões políticas não conseguem desmentir.
Conclusão: legado e perspectiva
Desde a Crise da Dívida na década de 1980, seguida pelo Plano Real e a consolidação do PDLP nos anos 1990, o país foi tomado pelo crescente domínio político-econômico do capital financeiro; embora vivendo distintas conjunturas, mais ou menos favoráveis às forças políticas de esquerda e democráticas. Após o impeachment da presidente Dilma, a direita neoliberal retomou a iniciativa, trazendo de volta o tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit fiscal primário e câmbio flutuantes) em sua forma mais rígida e relançou uma nova rodada de reformas neoliberais (Reforma Trabalhista e mais uma Reforma da Previdência). O resultado foi o aprisionamento da política fiscal (Teto de Gastos do Governo Temer) e da política monetária (Banco Central independente do Governo Bolsonaro).
Na sequência, essa direita foi deslocada politicamente pela extrema-direita (o neofascismo-bolsonarismo), com o país reproduzindo uma tendência mundial derivada da crise da democracia liberal. A razão fundamental dessa crise localiza-se, de um lado, na incapacidade da direita neoliberal responder às necessidades da maioria da população; muito pelo contrário, suas reformas e políticas só pioraram a situação econômica e social. De outro lado, as correntes sociaisdemocratas, desde os anos 1980 nos países centrais e na periferia desde a década de 1990, passaram por um processo de transformismo, incorporando partes fundamentais do ideário neoliberal. Essa situação, de ausência de perspectiva para a maioria (desemprego, pobreza, insegurança, incerteza, desespero etc.), e sem uma alternativa robusta mais à esquerda, abriu uma oportunidade para a extrema direita neofascista se apresentar como anti-establishment apesar de, ironicamente, defender e propor um neoliberalismo ainda mais radicalizado.
No Brasil, após quatro anos de destruição do Estado e desestruturação de todas as políticas públicas, conseguiu-se derrotar eleitoralmente o neofascismo. No entanto, na atual conjuntura, e tendo as limitações estruturais do PDLP, tratadas anteriormente, o 3º Governo Lula vem sendo impedido de implementar o seu programa, consagrado nas urnas, por forças político-sociais que podem ser identificadas de forma clara, quais sejam: o capital financeiro (“o mercado” ou o “pessoal da Faria Lima”); a direita neoliberal encastelada nos meios de comunicação e em diversas instituições do Estado; o movimento neofascista com expressão parlamentar (Câmara e Senado); e mais especificamente o chamado “Centrão”, que busca “emparedar” sistematicamente o Governo Lula – retirando-lhe parcelas importantes de poder na formulação e execução orçamentária, e na implementação de políticas econômicosociais, achacando e chantageando o Poder Executivo cotidianamente – através da exigência de liberação de “emendas parlamentares” como condição para votar matérias de interesse do governo.
Esses sujeitos vêm tutelando o Governo Lula, impedindo-o de colocar em prática o seu programa, constrangendo-o por meio de uma política monetária restritiva (com elevadas taxas de juros), executada pelo Banco Central independente do Governo, mas não do “mercado”, e por uma política fiscal subordinada ao “Arcabouço Fiscal” que garante, mais uma vez, a remuneração parasitária do capital financeiro. Na verdade, desde a criação do “Teto de Gastos” no Governo Temer, formalizou-se uma situação de “ajuste fiscal” permanente. Em suma, o Fundo Público está formalmente sequestrado por uma parcela reduzidíssima dos muitos ricos, brasileiros ou não.
Nas atuais circunstâncias, o dito “Presidencialismo de Coalização” tem, aos poucos, se transformado quase que em uma espécie de “Parlamentarismo de Coalização”, um “mostrengo” ilegítimo e ilegal, pois não está previsto e nem é acolhido de forma alguma pela Constituição brasileira. Na prática, uma tentativa, já parcialmente bem-sucedida, de anular o 3º mandato que Lula da Silva recebeu da maioria dos eleitores brasileiros. Portanto, uma espécie de “estelionato eleitoral” praticado pelas forças político-sociais derrotadas na eleição para Presidência da República de 2022.
Essa situação evidencia a existência, de fato, de uma correlação de forças desfavorável às correntes político-sociais de esquerda e democráticas, colocando o Governo Lula em uma posição defensiva e desconfortável. Mas também é a evidência de que a resposta que o governo, e seus apoiadores mais próximos, têm dado a essa conjuntura adversa, isto é, restringindo-se apenas a uma prática de negociação no âmbito exclusivamente institucional, está inviabilizando o alcance dos seus objetivos econômicosociais mais importantes, anunciados e defendidos no processo eleitoral de 2022.
Mas, uma correlação de forças, qualquer que seja ela, não pode ser tratada como uma fotografia, algo estático e imutável; não pode servir de justificativa para aceitar a tutela que o Governo Lula vem sofrendo. Ela tem que ser entendida como um filme, um processo em movimento, cujos desdobramentos não estão previamente definidos. Isso significa dizer que a alteração ou manutenção de uma determinada correlação de forças dependerá fundamentalmente da luta política travada no presente, em cada momento.
As forças de esquerda e democráticas, que têm uma longa tradição e experiência de mobilização popular, precisam sair da atual passividade, como que esperando que Lula, e o seu governo, bem como o STF resolvam os impasses políticos. Por sua vez, Lula e o seu governo não podem ignorar o apoio popular que possuem, não podem recear mobilizar e estimular esse apoio.
Na realidade, a explicação para a existência da atual conjuntura de desmobilização deve ser buscada na prática e ação política atual, acomodada, das forças de esquerda e democráticas. Se essas forças não reconhecerem isso, o “monstro” do outro lado parecerá maior do que de fato ele é e a possibilidade de uma vitória eleitoral da extrema-direita em 2026 ficará cada vez mais crível.
A recente greve dos servidores (técnico-administrativos e professores) das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), além da defesa das Universidades e Institutos e da remuneração de seus trabalhadores (a defesa do trabalho decente), vai na contramão da passividade, apontando a importância da organização e mobilização das forças antifascistas e antineoliberais, e denunciando as forças políticas que vem impedindo o governo eleito em 2022 em implementar o seu programa econômicosocial.
Reiterando, só se muda uma correlação de forças desfavorável se houver ações nesse sentido. O momento positivo de aprovação da PEC da Transição apoiou-se ainda na mobilização derivada do processo eleitoral, mas que aos poucos foi-se dissipando; é preciso retomá-la, exigindo uma nova postura tanto do Governo Lula como também de todas as correntes políticas de esquerda e democráticas. Só assim poderá haver alguma alteração da correlação de forças mais favorável.
Com negociações estritamente no Plano Parlamentar e desmobilizando a sua base social, Lula e o PT conseguirão, no máximo, “garantir” as conhecidas “migalhas” para o andar de baixo e reforçar a dependência da trajetória (neoliberal) ou, na pior das hipóteses, abrirão as portas para o retorno do fascismo na eleição de 2026. Sem apostar na mobilização política efetiva de suas bases sociais, no sentido de promover ações para além do parlamento, que conteste a atual correlação de forças, pressionando-a para modificá-la, não há a menor possibilidade de conciliar “austeridade fiscal” com distribuição de renda e redução das desigualdades sociais.
Notas
1 Esse texto vai na forma de um Ensaio, sem citações bibliográficas. Quem tiver interesse em conhecer minhas referências, que embasam esse texto, podem encontrá-las nos meus livros História do Plano Real e O Brasil nas Trevas: do golpe neoliberal ao neofascismo, ambos editados pela Boitempo.
2 Para os adeptos da Moderna Teoria Monetária, a URV se constituiu em uma nova moeda indexada, pois compreendem que a função de “unidade de conta” é a decisiva para caracterizar uma moeda.
Não se poderá combater a extrema-direita sem conflitos e lutas (como as greves) contra as estruturas seculares da opressão do povo brasileiro.
Carlos Eduardo Martins
Os gráficos do Dieese sobre número de horas e dias parados entre 1983-2023 revelam quarenta anos de história dos movimentos sociais e populares no Brasi (ver abaixo). São extremamente úteis para indicar a centralidade que o seu ativismo assume no país ao condicionar as estratégias de acumulação das classes dominantes a partir das respostas que lhe dão. Tais respostas marcam pontos de inflexão, mudanças no padrão de acumulação e nos arranjos entre o Estado e as frações dominantes do capital que se estabelecem como reação aos momentos mais agudos das mobilizações populares.
Os gráficos indicam tanto o caráter acelerado, vertiginoso e concentrado do avanço da consciência popular, que se traduz na conexão entre as reivindicações econômicas e políticas e em formulações de mudanças substantivas nas políticas de Estado, como a sua brusca interrupção, provocada pela ação efetiva das frações dominantes do grande capital para destruí-la, produzindo grande regressão e flutuação, ao atingir suas bases sociais de organização, suprimindo-as parcialmente. Isso denota que a consciência política e ideológica, antes que individual, é um produto coletivo da práxis social. Esta por sua vez é condicionada pelo desenvolvimento e descontinuidades dos padrões de acumulação de capital e sua articulação com o Estado. No fomento às ondas de protestos sociais há uma dinâmica material, oriunda do próprio movimento do capital e seus processos de acumulação, outra procedente da ação consciente e capacidade de organização das classes populares e uma dimensão referente à interação dinâmica de seus vários segmentos. Rosa Luxemburgo e Lênin abordaram extensamente essas questões, dedicando-se Rosa Luxemburgo à primeira e à terceira dimensão, e Lênin à segunda, dando centralidade ao papel do partido político. A resistência das classes dominantes brasileiras a formas estáveis de avanço de consciência popular e o seu caráter acelerado abrupto, descontínuo e flutuante demonstram os limites do projeto de democracia liberal e de sua capacidade de articular o consenso e o nacional-popular em um país dependente.
A onda de greves e protestos que se estabeleceu entre 1978-90 foi resultado da modernização industrial impulsionada pela ditadura militar do grande capital nos anos 1970 e da redemocratização iniciada em 1979. Os trabalhadores dos segmentos automobilístico e metalúrgico do ABCD jogaram papel central neste processo expressando a liderança da indústria de transformação, sediada no Estado de São Paulo, no desenvolvimento nacional. Diferentemente das ditaduras chilenas e argentinas que apostaram na desindustrialização para destruir a base sindical dos cordões operários e do peronismo, a brasileira apostou na criação de uma nova classe trabalhadora vinculada à indústria manufatureira privada para romper o protagonismo da herança trabalhista, fortemente apoiada em trabalhadores de empresas estatais, de serviços e de transportes. As greves de 1978-80 aceleraram a redemocratização e se vincularam a uma onda de paralisações e protestos que cresceu durante a década de 1980 e se expressou na luta pelas eleições diretas, pela assembleia nacional constituinte e contra a política recessiva que pretendeu financiar a crise de gestão da dívida externa. Neste contexto se formou o Partido dos Trabalhadores e Lula, sua principal liderança, quase foi eleito Presidente da República após disputa acirrada com Leonel Brizola para definir o candidato das esquerdas no segundo turno das eleições de 1989. O número de horas paradas se multiplicou de aproximadamente 8.000 para cerca de 110.000 entre 1983-1990, com o pico de quase 130.000, em 1989. No mesmo intervalo, o número de greves saltou de pouco mais de 200 para cerca de 1.800, com o auge de quase 2.000 em 1989.
Frente a este formidável movimento de massas e a aproximação entre as principais lideranças do trabalhismo e do novo sindicalismo, a grande burguesia brasileira, o capital estrangeiro e o imperialismo decidiram abandonar os projetos desenvolvimentistas no país e impulsionar o desmonte das bases sindicais da indústria manufatureira por meio da desindustrialização. O Plano Collor marcou uma tentativa confusa de transição para a nova etapa por meio de uma recessão planejada, mas o novo período se consolidou com a adesão do Estado à financeirização e ao neoliberalismo por meio do Consenso de Washington, do Plano Brady e do Plano Real. Os efeitos sobre a organização dos trabalhadores foram drásticos: eliminação de empregos qualificados e formais, precarização do trabalho, aumento do desemprego e da superexploração, perda de direitos sociais, reformas previdenciária e administrativa e queda expressiva nas greves, paralisações e protestos. Após uma tentativa moderada de resistência em 1995-96, o número de horas paradas e de greves voltou a despencar para atingir cerca de 18.000 e de 300, respectivamente, em 2002.
A liderança do Partido dos Trabalhadores que emergiu do desmonte do movimento sindical é bastante diferente da que se constitui nos anos 1980. Partindo de uma concepção basista de transformação social que nega o papel estruturante e de liderança da vanguarda, o PT se opôs ao modelo de liderança política do trabalhismo e dos partidos comunistas. Seus documentos fundacionais na década de 1980 destacaram a importância da auto-organização dos trabalhadores, mas os da década de 1990 já a substituíram pela noção de organização da sociedade civil, onde também se destacam os poderes burgueses. Com a perda de força do movimento sindical nos anos 1990, a correlação de forças na sociedade civil se inclinou fortemente para os poderes do grande capital, alterando as metas, a estratégia e a tática do Partido dos Trabalhadores. A Carta ao povo brasileiro, produzida em 22 de junho de 2002, não teve por objetivo garantir a vitória de Lula, pois este já havia alcançado 40% das intenções de voto no primeiro turno nas pesquisas eleitorais (vide o Datafolha), mas sim estabelecer o centrismo como a estratégia política escolhida pelo PT. Nela se reivindica uma lúcida transição fundada em ampla negociação nacional para estabelecer novo contrato social. Esta transição deveria respeitar os contratos e as obrigações do país, gerar superávits primários para conter a dívida interna, apoiar o agronegócio e estabelecer superávits comerciais para reduzir a vulnerabilidade externa e as taxas de juros. Suas premissas determinam os limites do seu alcance e enredam o Partido dos Trabalhadores na gestão do neoliberalismo no Brasil.
A ascensão do “progressismo”, conjunto de forças que reuniu desde a centro-esquerda moderada até forças mais radicais, nacional-populares e latino-americanistas, a partir da crise do neoliberalismo na virada do século XXI, e a conjuntura internacional favorável marcada pelo boom das commodities e pelo forte ingresso de capitais estrangeiros reestabeleceram a dinâmica de crescimento econômico. Proporcionaram a elevação do emprego qualificado e formal, do salário-mínimo e do emprego público possibilitando uma nova ofensiva dos movimentos sociais no Brasil que se iniciou em 2008 e se prolongou até 2015/16, despencando com o golpe de Estado. Nessa nova ofensiva, os trabalhadores da educação e da saúde públicas cumpriram papel estratégico lançando uma expressiva ofensiva político e ideológica contra o neoliberalismo. Eles colocaram em xeque a herança neoliberal dos governos de Fernando Henrique Cardoso incorporada nos governos petistas e manifesta no tripé macroeconômico: superávits fiscais para pagar juros da dívida, taxas de juros muito superiores ao crescimento do PIB e câmbio flutuante e sobrevalorizado. As greves de 2012, impulsionadas pelos servidores públicos, alcançaram o movimento estudantil e o setor privado provocando as explosões de massa de 2013, nas quais a reivindicação da gratuidade do transporte público para estudantes cumpriu o papel detonador. O número de horas paradas saltou de aproximadamente 25.000 para cerca de 90.000 entre 2008-2012, e se estendeu para mais de 110.000 em 2013. E o número de greves subiu de aproximadamente 400 para 900 entre 2008 e 2012, alcançado mais de 2.000 em 2013.
Atemorizada com a nova ofensiva popular, Dilma derrotou as paralisações do funcionalismo federal, ameaçou instituir uma lei de greve para o setor público e elevou sistematicamente as taxas de juros Selic para produzir uma recessão e reduzir a pressão social. Em contradição com a campanha eleitoral de 2014, em seu segundo mandato, a Presidente impulsionou a financeirização. Ela nomeou um antigo secretário de política econômica do governo FHC, Joaquim Levy, como seu ministro da Fazenda, e elevou a taxa de juros Selic, entre maio de 2013 e dezembro de 2014, de 8% a.a. a 11% a.a., mantendo a trajetória de subida até agosto de 2015, quando atingiu 14,25%. A taxa de desemprego saltou de 6,6%, no trimestre das eleições presidenciais, para 9,1%, em outubro-dezembro de 2015, quando se iniciou o processo de impeachment, e alcançou 11,9% quando esse se concluiu. O PIB per capita decresceu em 2,38% a.a. em 2014-15, em dólares constantes de 2015 (UNCTAD) e o país chegou a pagar 10,2% do PIB em juros anualizados de dezembro de 2015, caindo para 9,5% em agosto de 2016. A ofensiva do movimento popular seguiu até 2016 quando o golpe de Estado e a aprovação da Emenda Constitucional 95, que pretendeu congelar por 20 anos os gastos públicos primários, limitando-os à variação da inflação, converteram a recessão em política de Estado. As horas paradas alcançaram o máximo em 2016, quando superaram 140.000, e a quantidade de greves se aproximou de 2.200, desmoronando a seguir.
Sem o suporte do gasto público, a economia brasileira estagnou no período de crise orgânica do neoliberalismo, a partir de 2015, quando este perdeu o suporte do dinamismo do mercado internacional e dos fluxos internacionais de capitais. Se entre 2016-2022, o PIB per capita da economia brasileira cresceu 0,08% a.a., entre 2003-2014 o fez em 2,45% a.a. (UNCTAD). Se tomarmos como referência o intervalo de 2014-2022, a taxa de decrescimento anual é de 0,47%. A eleição de Jair Bolsonaro, a gestão ultraneoliberal de Paulo Guedes e a repressão e intimidação dos movimentos sociais aprofundaram o descenso da onda de greves, paralisações e protestos. A taxa de desemprego aberto alcançou o seu valor máximo em julho-setembro de 2020, quando atingiu 14,9%, impulsionada pela resistência de Bolsonaro e Guedes em tomar as medidas de expansão do gasto público para conter os efeitos sociais e econômicos deletérios da pandemia. As horas paradas caíram para aproximadamente 45.000 em 2019 e 20.000 em 2020 e o número de greves desabou para pouco mais de 1.100 em 2019 e quase 700 em 2020.
As pressões sociais para o aumento do gasto público incidiram sobre o governo federal e o Parlamento e possibilitaram furos no teto de gasto para gerir a situação de calamidade pública, permitindo alguma recuperação da economia. Esse cenário se combinou com a crise política do governo Bolsonaro e as eleições presidenciais de 2022 para estabelecer uma retomada ainda incipiente do ativismo dos movimentos sociais. As horas paradas mais que duplicaram para cerca de 55.000 e o número de greves alcançou mais de 1.100 em 2022. No descenso e na recuperação do número de horas paradas e de greves cumpriu papel principal a atuação do funcionalismo público, a sua retração ou retomada. Entretanto, essa reativação se choca com a estratégia de Lula e do núcleo dirigente do Partido dos Trabalhadores para o Estado brasileiro.
Lula e o círculo dirigente do PT centraram sua estratégia de governabilidade na aliança com as principais frações do grande capital, os neoliberais, os militares e até mesmo no acercamento a forças emergentes, como as empresas neopentecostais. Sua leitura é de que as falhas no diálogo e aproximação com estes grupos estão entre as principais razões do golpe de Estado. Na disputa dessa aliança com os fascistas, Lula oferece paz e tranquilidade política, o que exige desmontar as pressões sociais que pedem o combate ao neoliberalismo, a transformação do padrão de acumulação hegemônico e mudanças nas estruturas organizacionais do Estado brasileiro que desafiem os privilégios do capital financeiro, do rentismo, do agronegócio e do monopólio midiático, o poder burguês na sociedade civil, a superexploração dos trabalhadores, o vínculo das forças armadas ao golpe de 1964 e a teologia da prosperidade. Torna-se crucial nessa perspectiva impedir uma nova ofensiva dos movimentos sociais, similar a que ocorreu entre 1983-90 e 2008-16. O governo dedica-se então a cooptar lideranças, desmobilizar organizações, pressionar e desqualificar movimentos sociais e abandonar temas históricos dos movimentos populares. O descarte do projeto do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, a desmobilização do ato das centrais sindicais no 1º maio, as metas agressivas de austeridade fiscal maiores que as expectativas do Congresso Nacional e do mercado financeiro, as articulações para desvincular os gastos em saúde e educação de um percentual fixo da arrecadação da União, a mediocridade do orçamento destinado às universidades federais, e a tentativa de desqualificar as greves dos trabalhadores da educação pública, desautorizando o ANDES, sindicato dos docentes de ensino superior, são evidências dessas diretrizes. Na negociação com as greves no ensino superior, Lula apresentou índices extremamente reduzidos de recomposição das perdas salariais acumuladas no segundo mandato de Dilma e nos governos Temer e Bolsonaro. Propôs em seu quadriênio um reajuste muito mais próximo do congelamento de perdas que da recuperação do poder aquisitivo dos salários. Caso a inflação de 2023 se repita nos próximos anos do mandato de Lula, o governo terá proposto um reajuste médio de 5%, bastante abaixo dos 26% a 30% necessários para recompor os salários dos professores de ensino superior aos valores de março de 2014.
Lula reaparece em seu terceiro mandato como um personagem com escassa relação com o seu passado de lutas, expressas em sua atuação como líder sindicalista das greves do ABC de 1978-80, deputado federal constituinte e candidato a Presidente da República de 1989. Se naquele período apoiou as lutas de massas para transformar a institucionalidade, agora ressurge buscando controlá-las e limitá-las e defendendo um conceito de democracia restrita, de baixa densidade social, muito próximo ao reivindicado por Fernando Henrique Cardoso para países periféricos e dependentes. Para Cardoso as democracias latino-americanas devem ser protegidas de lideranças populistas e de qualquer iniciativa que indique capitalismo de Estado, isto é, um padrão de acumulação no qual o Estado atue com relativa independência para exercer papel estruturante e promotor do desenvolvimento de setores, produtos e serviços que não interessem ao grande capital em seu conjunto oferecer. Se em seu segundo mandato, Lula impulsionou uma expansão anual dos investimentos federais de 27,6% garantindo para o Estado um papel de indutor do desenvolvimento, a partir da ascensão do movimento de massas e das críticas da oposição liberal, em que se destacou a voz do próprio ex-presidente da República do PSDB, o petismo hegemônico cedeu. Frente às pressões crescentes dos movimentos populares, Cardoso requentou suas teses clássicas dos anéis burocráticos, que associam o autoritarismo na América Latina a um suposto domínio do corporativismo estatal sobre a sociedade civil, para condenar a expansão do gasto público em favor de elites empresariais específicas, setores mais pobres da população e dos projetos de permanência da liderança político-partidária petista. O governo Dilma reduziu em seu primeiro mandato os investimentos federais à expansão anual de 1,0% e em seu segundo mandato a um decrescimento de -28,4% ao ano. O resultado não foi a democracia, mas o golpe de Estado do qual o próprio Fernando Henrique Cardoso participou como ideólogo e articulador.
Lula voltou à vida política eleitoral para o seu terceiro mandato presidencial dando centralidade à austeridade fiscal, descartando qualquer perspectiva de capitalismo de Estado e aprofundando a política de compressão e cortes ao custeio da máquina administrativa federal. Mesmo a nova política industrial, financiada pelo BNDES, maneja recursos modestos. Sabemos que estamos avançando para novas etapas da revolução científico-técnica e que o setor de serviços assume protagonismo no mundo contemporâneo, tanto na produção de bens e serviços quanto nas lutas sociais. Dois são os projetos em confronto para a economia política do século XXI: um prioriza a saúde, a educação, a ciência, a tecnologia, a infraestrutura, a ecologia e o lazer e está baseado nas lutas nacionais e populares dos trabalhadores e em sua internacionalização; outro prioriza o capital financeiro, o rentismo, seus lucros extraordinários e fictícios, submetendo o mundo da vida, isto é, dos trabalhadores e das pequenas e médias empresas, à expropriação para a realização de suas expectativas de rentabilidade. Ao optar por uma estratégia de governabilidade pelo alto para supostamente garantir a estabilidade da democracia liberal brasileira, Lula e o núcleo dirigente do PT desenham para o seu partido o lugar de braço operário do grande capital no país. O fazem, todavia, em um país dependente que sofre transferências negativas de mais-valor e durante uma conjuntura internacional de crise orgânica e terminal do padrão neoliberal. Trata-se do projeto de uma tecnoburocracia de origem operária que prioriza a partilha da gestão do Estado com o grande capital e os cargos e salários a que esta dá acesso. Afasta qualquer interesse popular que crie turbulências políticas e lhe prejudique na disputa com o fascismo por essa aliança. Os montantes destinados às universidades públicas no orçamento federal, inferiores aos do governo Temer e à média do governo Bolsonaro, não apenas aprofundam a dependência científico-tecnológica, mas atingem a reprodução de um dos segmentos da classe trabalhadora mais capacitados para produzir uma alternativa à hegemonia das políticas neoliberais no Brasil. Este segmento junto com os demais trabalhadores da educação, os trabalhadores da saúde e demais serviços públicos têm liderado as paralisações no Brasil no século XXI.
Entre as principais condições para a ascensão do fascismo estão o declínio do liberalismo político e a submissão das esquerdas às suas políticas públicas e projetos. A aproximação do PT às concepções estratégicas da social-democracia europeia que vem se submetendo ao neoliberalismo e ao imperialismo liberal estadunidense indicam que o caminho escolhido para combater o fascismo é equivocado. Entre 2004 e 2024, a participação da social-democracia no parlamento europeu caiu sistematicamente, desabando de 27,3% para 18,8%, enquanto a extrema-direita cresceu, principalmente na França, na Itália e na Alemanha. As contradições entre as massas e uma política social-democrata subordinada à austeridade se agravam em um país cujo padrão de acumulação se baseia na superexploração dos trabalhadores. A aproximação do PT com os neoliberais, cuja impopularidade impediu que o PSDB e o PFL/DEM lançassem candidatos competitivos à Presidência da República desde o fim do governo FHC, abre o espaço para que o fascismo utilize sua retórica demagógica sobre as massas desorganizadas para se colocar como antissistêmico, aprofundando o neoliberalismo, mas se lançando contra a democracia política, alvejada pelos acordos de cúpula que suas formas liberais-oligárquicas têm ensejado no país.
A conjuntura brasileira exige atenção e uma avaliação cuidadosa dos setores vinculados às políticas nacionais-democráticas e de emancipação popular. Não se poderá combater a extrema-direita sem conflitos e lutas contra as estruturas seculares da opressão do povo brasileiro que se aprofundam. Qualquer alternativa que busque contornar esta necessidade poderá desmoralizar as esquerdas e gerar resultados bastante negativos.
Carlos Eduardo Martins é professor associado UFRJ, editor de Reoriente: estudos sobre marxismo, sistemas-mundo e dependência e pesquisador do CLACSO.
Fonte: Boitempo
Data original da publicação: 25/06/2024
Penso que é necessário debatermos com profundidade, sem ficarmos paralisados com narrativas que cantam vitórias inexistentes (como está acontecendo agora na França), porque na verdade caminhamos para um abismo humanitário tanto inédito quanto profundo. Prefiro o desconforto da crítica e a autocrítica a um conformismo que revela falta de compromisso”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 12-07-2024. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
A esquerda surgiu dois séculos atrás como representação das classes oprimidas na luta contra o sistema capitalista. Nas diversas vertentes desta corrente, das inspiradas em Marx às seguidoras de Bakunin ou de Jesus Cristo, não se tratava de remendar o sistema, mas de superá-lo, na convicção de que os remendos não podem acabar com os sofrimentos das pessoas oprimidas, mas estendê-los até a eternidade.
Com o tempo, o surgimento da esquerda foi sendo normalizado, apareceram vertentes que apostavam em uma sucessão de reformas como o melhor caminho para alcançar a superação do capitalismo, ao passo que outras apostavam na revolução, identificada com a tomada do poder do Estado. Até o início do século passado, todos se propunham a “tomar o céu de assalto” por diferentes caminhos.
Com a Primeira Guerra Mundial, surgiu algo a mais do que diferenças. Quando a esquerda alemã apoiou a “sua” burguesia na carnificina desencadeada na Europa, o golpe foi tão forte que merecia alguma explicação, sobretudo porque uma parte considerável das bases desses partidos apoiava a guinada chauvinista. Lenin e depois outros líderes consideraram que nos países centrais havia surgido, graças à exploração das colônias, uma camada de trabalhadores privilegiados a quem chamou de “aristocracia operária”.
Esse setor estava mais interessado em se acomodar o melhor possível dentro do sistema do que em arriscar seus privilégios para superá-lo, em uma luta que, como já demonstravam os bolcheviques, não seria um mar de rosas.
Um século depois, não é mais uma aristocracia operária que constitui a base social dos partidos de esquerda, mas um quadro mais complexo e, sobretudo, completamente novo.
Entre as forças de esquerda, o debate mais forte acerca deste tema é proposto pela alemã Sara Wagenknecht, que decidiu se separar do Die Linke (A Esquerda) e formar o seu próprio partido. Foi acusada de concordar em alguns aspectos com a ultradireita e de ser pró-Rússia, mas o que interessa é se os seus argumentos se sustentam. Em uma entrevista recente, criticou o conformismo: “Hoje, quem deseja expressar o seu descontentamento contra a política imperante não costuma votar na esquerda, mas na direita”, pois tem sido mais eficaz em abordar as preocupações das pessoas empobrecidas (Público, 07/07/24).
Em sua análise sociológica das pessoas às quais a esquerda se dirige, diz que “faz política pensando em ativistas com formação acadêmica nas grandes cidades e não percebem que estão desprezando os seus antigos eleitores”.
A política alemã lança uma bomba de profundidade quando acusa os partidos dessa tendência de ser liberais de esquerda: “Na classe média acadêmica das grandes cidades, encontramos um ambiente liberal de esquerda que tende a ver os seus próprios privilégios e hábitos de consumo como virtudes morais. As pessoas compram em lojas de produtos naturais, valorizam a linguagem politicamente correta, estão comprometidas com a proteção climática, os refugiados e a diversidade e olham com arrogância para as pessoas que nunca puderam ir à universidade, vivem em ambientes de cidades pequenas ou rurais e precisam lutar com muito mais dificuldades para manter a pouca riqueza que possuem”.
Por sua vez, o historiador Emmanuel Todd argumenta em A derrota do Ocidente que a nova estratificação educacional, com a expansão do ensino superior para 25% da população, criou uma “oligarquia de massas”, ou seja, “gente que vive em sua própria bolha e que se considera superior”. Trata-se de um conceito provocativo, mas talvez adequado para descrever esta nova realidade.
Todd considera que a capacidade de ler e escrever foi o fundamento da democracia, pois alimentava um sentimento de igualdade. No entanto, isto mudou. “O avanço do ensino superior acabou transmitindo a 30 ou 40% de uma geração o sentimento de ser verdadeiramente superiores: uma elite de massas”.
Aqueles que na esquerda afirmam representar o povo, para Todd, “não respeitam mais as pessoas com ensino primário e secundário”, a ponto de considerarem que “os valores das pessoas com ensino superior são os únicos legítimos”.
Esse sentimento de superioridade contradiz o que foram os valores da esquerda no século passado e contrasta com o compromisso que os universitários de esquerda mantiveram por muito tempo.
É evidente que estas são posições polêmicas e impertinentes para muitas pessoas honestas de esquerda. No entanto, penso que é necessário debatermos com profundidade, sem ficarmos paralisados com narrativas que cantam vitórias inexistentes (como está acontecendo agora na França), porque na verdade caminhamos para um abismo humanitário tanto inédito quanto profundo. Prefiro o desconforto da crítica e a autocrítica a um conformismo que revela falta de compromisso.
Lucio Caracciolo, diretor da Limes, a mais respeitada revista de geopolítica italiana, fala sobre o atentando contra Donald Trump no final de semana passado. Para ele, na sociedade dos EUA, “o ódio já existe, o atentado não é um evento solto, o confronto entre Trump e Biden é apenas o reflexo de uma situação que vem se deteriorando há anos em um país dividido, onde os trumpianos pensam que são a América e vice-versa”, explica. Além disso, comenta a situação geopolítica da Europa e os impactos da guerra entre Ucrânia e Rússia.
A entrevista é de Francesca Paci, publicada por La Stampa, 15-07-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
Lucio Caracciolo, como acordam os Estados Unidos após o atentado de Butler?
Com a consciência de que há pelo menos duas Américas, a que se encarna em Trump e aquela que desgastadamente se agarra a Biden. O risco é que nos Estados Unidos, com 450 milhões de armas para 330 milhões de habitantes e um certo hábito à violência, isso não seja apenas um episódio. De um certo ponto de vista, esse atentado não deveria causar surpresa, porque ocorre em um clima já verbalmente violento e, portanto, perfeito para o deslizamento para a violência física.
E agora? O ódio chamará mais ódio?
O ódio já existe, o atentado não é um evento solto, o confronto entre Trump e Biden é apenas o reflexo de uma situação que vem se deteriorando há anos em um país dividido, onde os trumpianos pensam que são a América e vice-versa. Uma situação em que há uma América a mais.
A guerra civil que se aproxima terá impacto sobre a política externa estadunidense, que até agora tem mantido uma linha homogênea?
A falta de homogeneidade é um fato. Há tempo, todos parecem estar posicionados nesse clima do qual deriva a derrota de Biden, a começar por Zelenski, que está em uma situação crítica, sabendo que em breve a ajuda, se é que existirá, não será mais a mesma.
Os conspiradores estão enlouquecendo.
Ouviremos de tudo, o suposto assassino está morto e nunca saberemos a verdade. Dirão que não foi ele. Mas não é a história de Kennedy, algo fora do comum: esse atentado está dentro do esperado, perfeitamente dentro do clima atual.
Putin deve estar rindo satisfeito.
Não acho que Putin esteja tão tranquilo, porque a guerra desgasta até mesmo aqueles que aparentemente estão ganhando no terreno. Mas não devemos pensar apenas em Putin, pois aqui se abre uma oportunidade para os adversários dos Estados Unidos e seus aliados não tão fiéis que estão pensando em recortar para si um espaço autônomo, como a Turquia. E uma fase incerta se abre para o Ocidente, que está preocupado com o fato de Washington agora terá prioridades diferentes da sua segurança.
O que muda para a UE a aceleração da história dos EUA?
Muito. A Europa não entendeu o terremoto de 22 de fevereiro de 2022. Os países ocidentais continuam pensando na invasão da Ucrânia como uma ferida que mais cedo ou mais tarde vai se curar, enquanto os orientais estão convencidos de que Putin, dado como acabado alguns anos atrás, possa chegar a Paris. A Europa ainda não se sintonizou com o novo mundo que mudou tão rapidamente.
É preciso fazer uma distinção. Um país como a Polônia já gasta 4% do seu PIB em armas e logo aumentará para 5%. Há os países bálticos, a linha de frente antirrussa, e há aqueles que anunciam, mas não fazem. A verdade é que há falta de recursos, inclusive humanos, para uma economia de guerra, poucos europeus estão prontos para se alistar pela pátria, especialmente no oeste. Os Estados Unidos têm seus próprios interesses. A Europa não tem forças armadas para se defender e sempre contou com a Mãe América, mas essa ajuda agora será menos garantida, seja quem for que ganhar a Casa Branca.
Não está na hora de a UE planejar um exército comum?
Não, porque não há nenhum sujeito político que possa falar, um ministro da defesa requer um estado e nós somos 27, com histórias diferentes e ideias diferentes sobre quem é o inimigo. Além disso, caso isso fosse possível, levaria décadas. Vamos começar com coisas concretas, como um rearmamento mínimo para existir e o vínculo atlântico, sem o qual tudo pode acontecer.
Putin é uma ameaça militar para a UE?
A UE é vasta. Para a Irlanda não é, para os escandinavos poderia ser. Mas não me parece que Putin tenha a intenção de invadir a Europa e, caso tivesse, não poderia fazer muita coisa, pois isso significaria transformar a Rússia em um país em guerra. Além disso, Putin não tem os recursos para ir mais longe.
As guerras acabam se tornando guerras mundiais depois de tê-las combatido, foi assim com a primeira e a segunda. Quando começa, nunca se sabe. Mas as guerras sem política e sem diplomacia se expandem, preocupa-me o fato de não ver nem uma nem outra, tudo é confiado às armas e tudo poderia acontecer.
A diplomacia é suficiente para se defender em um mundo de valentões?
A alternativa é a selva. Felizmente, ainda existem pessoas que raciocinam. Também hoje há negociação, nos bastidores. A Rússia e os Estados Unidos, por exemplo, têm mecanismos de diálogo semiautomáticos. Exceto a Ucrânia em luta pela sobrevivência, é a Europa que corre o maior risco, esmagada no confronto entre os EUA e a Rússia, no qual por enquanto é Pequim quem vence.
Em nome da diplomacia, a Europa deveria desistir de fazer respeitar o direito internacional em seu território?
Não existe um sujeito europeu e, portanto, não pode exercer nenhuma ação diplomática, não há um Blinken europeu. Alguns países europeus têm uma moeda comum, mas isso não significa nada do ponto de vista político. Quem fala em nome de 27 países com opiniões diferentes? O que é viável é que alguns países compartilhem a responsabilidade por iniciativas como a mediação de Sarkozy na Geórgia em 2009 ou em Kiev em 2014. Infelizmente, hoje não vejo essa convergência.
2014 é, para a Ucrânia, o sinal verde para a invasão de 2022.
Os fatos hoje estão no terreno: em abril de 2022, a Rússia estava em choque com aquela que pensava teria sido uma campanha vitoriosa de três dias e que, em vez disso, estava se revelando uma derrota. Foi feito um acordo com a disponibilidade logística turca, mas a Grã-Bretanha disse não porque, com Moscou de joelhos, sonhava com o golpe de misericórdia. Infelizmente ou felizmente, esse não foi o caso e hoje as condições mudaram.
Se a Ucrânia tivesse rejeitado o Memorando de Budapeste e mantido o arsenal nuclear, teria sido invadida?
Acredito realmente que não, mas naquela época Kiev tinha 2.000 bombas atômicas e era a terceira potência mundial, ninguém teria aceitado uma Ucrânia assim, nem mesmo os Estados Unidos.
Se a dissuasão não vence, os prepotentes vencem.
A dissuasão durou até 2022, quando Putin mostrou que não tinha medo dela. Hoje, com os Estados Unidos no caos, é difícil reconstruí-la. E quanto aos prepotentes, sou contra a personalização da guerra. Se Putin morresse, a situação não mudaria. A Rússia é a Rússia. E a Ucrânia sabe que nunca voltará às fronteiras de 1991. A negociação hoje não diz respeito às fronteiras, mas é sobre o status da Ucrânia, desmilitarizado como quer Putin ou atlanticizado para garantir sua segurança. Sabendo que a entrada de Kiev na OTAN é uma promessa destinada a permanecer no papel, especialmente com estes Estados Unidos.
Trump vencerá?
Biden pode ser substituído. A questão de saber se ele pode representar os Estados Unidos não tem a ver com o futuro, mas com o presente. E quanto mais o tempo passa, mais Trump se torna o provável vencedor.
Lula deveria criar um departament de compliance, com quadros da CGU, para analisar cada operação mal-cheirosa de seus aliados políticos
O artigo é de Luis Nassif, jornalista, publicado por Jornal GGN, 16-07-2024.
No “Valor”, artigo com uma corretora dizendo que o capital estrangeiro está saindo da B3 por falta de boas oportunidades de investimento.
É fruto direto desse modelo maluco, em que um cartel espalha o terrorismo fiscal, a mídia ecoa, e Roberto Campos Neto é bem sucedido para manter a Selic como a segunda mais alta taxa real de juros do planeta. Enriquece o capital improdutivo, impede o grande salto – do capital financeiro financiando a economia real – e provoca um esvaziamento do mercado acionário.
Pior que isso, nos últimos anos toda a criatividade de alguns agentes do mercado consiste em promover saques contra o Estado, operações mal explicadas de privatização, contando com a cumplicidade de agentes públicos.
Esse estilo de atuação, de se valer de brechas no setor público para grandes tacadas, foi praticado na América Latina desde o golpe do Chile. O ditador Augusto Pinochet os chamava de “pirañas financeiras”.
O jogo dos piranhas é manjado:
1. Cooptação de funcionários públicos, em órgãos de controle, a exemplo do que ocorreu com o CADE e a Lava Jato.
2. Assunção do controle de grandes estatais – mesmo sem dispor de maioria do capital – e venda de seus principais ativos com os recursos sendo distribuídos através de dividendos polpudos.
O caso mais expressivo foi das refinarias da Petrobras. Mas está acontecendo na Eletrobras e acontecerá na Sabesp. São ataques irresponsáveis contra serviços públicos essenciais, assistidos pachorramente pela mídia, judiciário e executivo.
3. Uso do poder de controle para negócios obscuros.
Desde o impeachment, os piranhas financeiros ganharam uma musculatura inédita no país. Deitaram e rolaram no interinato de Michel Temer e, especialmente, no período de Paulo Guedes como Ministro da Economia.
Fontes de Brasília atestam que o grande receio de Lula é seu governo “Dilmar” – isto é, perder apoio político, como ocorreu com o governo Dilma.
Não se deve perder de vista que, em que pese a falta de jogo de cintura política, a queda de Dilma se deveu também à herança do presidencialismo de coalisão de Lula, que Dilma não soube administrar. Os escândalos da Petrobras são prova disso.
Agora, tem-se um modelo similar. Para garantir apoio político, o governo Lula loteou cargos em empresas públicas relevantes. O Banco do Brasil é presidido por uma funcionária de carreira. Mas há diretores do PP, do PL, do PSD, do MDB e do PSDB.
A presidência da Caixa Econômica Federal foi entregue ao Partido Progressista e diretorias rifadas para o Partido Liberal e para os Republicanos.
A consequência óbvia tem sido a eclosão de episódios potencialmente explosivos. No caso da CEF, o afastamento de gerentes que se opuseram a uma operação mal-cheirosa de R$ 500 milhões com o Banco Master.
No Ministério de Minas e Energia, a naturalidade com que o ministro Alexandre Silveira tem tratado os negócios com a J&F mostra que, decididamente, ele não tem medo do perigo.
Agora, no Banco do Brasil, uma operação mal-cheirosa envolvendo o banco BTG Pactual.
No ano passado, com o artigo “Xadrez do BTG e a operação dos precatórios” mostramos a jogada armada por Paulo Guedes nos anos anteriores, de dar um calote nos precatórios, derrubando seus preços, mas permitindo a instituições do mercado pagarem concessões e compra de estatais pelo valor de face dos títulos.
Lá, detalhamos o modo BTG de atuar, cooptando funcionários públicos para operações lesivas aos bancos públicos. Depois, a estranha venda de créditos podres do BB ao BTG Pactual, quando o banco vendeu à Enforce Gestão de Ativos, do banco BTG, uma carteira de créditos “estressados” de R$ 2,9 bilhões por R$ 371 milhões. Não houve avaliação, licitação, nada. E o funcionário do banco, responsável pela operação, Antonio Leopoldo Giocondo Rossin, foi trabalhar para o BTG.
Agora, uma empresa do BTG, presidida por Rossin, adquiriu os recebíveis da Construtora WTorre junto ao BB, apesar da empresa estar adimplente com o banco.
O caso rola na Justiça, mas, mais à frente, será mais um capítulo da disputa política.
Faria melhor o governo Lula em criar um departamento próprio de compliance, com os próprios quadros da CGU, para analisar cada operação mal-cheirosa de seus aliados políticos.
A única vantagem do erro é o aprendizado. Se não aprendeu, não tem salvação.