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Fast foods: estresse dos trabalhadores é parte do negócio

Fast foods: estresse dos trabalhadores é parte do negócio

Na indústria de fast-food, o estresse dos trabalhadores é parte do sistema. Quanto mais rápido e insustentável o ritmo, maiores são os lucros corporativos.

Alex Park

Dentro do ambiente, semelhante a uma fábrica, de uma cozinha de fast-food, os refrigerantes deveriam ser o item mais fácil de servir do cardápio. No restaurante onde trabalho, duas máquinas os servem automaticamente assim que os registramos no sistema. Tudo o que um funcionário precisa fazer é colocar uma tampa no copo e colocar um canudo na sacola.

Mas os clientes no McDonald’s suburbano da Califórnia, onde trabalho há cerca de uma semana, não sabem que refeições grandes vêm com bebidas médias. Em um único turno, cometi o erro de registrar o pedido sem alterações duas vezes, quando um cliente realmente queria uma bebida grande para acompanhar a refeição grande. Os clientes, compreensivelmente, ficam confusos. Eu não posso ficar.

“Você fez isso de novo!” grita Tranh, a gerente da loja, com a janela de atendimento ainda aberta e o cliente ouvindo. “Não temos tempo!”

Eu só vou trabalhar neste McDonald’s por seis semanas, mas todos os dias serão assim.

A maior parte do que eu falo no trabalho vem de um roteiro originado em um escritório em Chicago. A maioria das minhas ações também é igualmente regimentada. A correria do almoço começa às onze e se prolonga até a hora do jantar, que continua até as 20h. Quando está ocupado, quase tudo o que faço e digo é pré-determinado. Mas, apesar do meu discurso e movimentos predefinidos, cometo erros.

Quando cometo um erro, peço desculpas. “Está tudo bem”, diz Olivia, uma das assistentes de gerência, quando a encontro do lado de fora durante uma pausa na correria do almoço. “Não vamos nos estressar. Estamos superando isso.”

Eu já a ouvi dizer esse tipo de coisa antes, sobre o estresse. É natural dizer isso, mas me incomoda ouvi-la dizer, como se houvesse outra coisa para sentir, como se o estresse fosse uma emoção a ser combatida, e não uma resposta a condições além do nosso controle. É como dizer “Não vamos nos molhar” antes de pular no oceano.

A Brecha dos Franqueados de fast foods

Mesmo antes da COVID, um fast food típico em um subúrbio poderia ter ganhado 70% ou mais de sua receita através da janela de drive-thru. Quando a pandemia chegou, o contato com estranhos se tornou não apenas indesejável, mas perigoso, então a arquitetura de interações rápidas da indústria — drive-thrus, quiosques de pedidos na loja e estacionamento dedicado para retirada no local — parecia presciente. As pessoas que comiam fast food raramente começaram a frequentar mais, e as que normalmente pediam no balcão começaram a pedir do conforto de seus carros. De 2019 a 2022 — o ano da minha breve passagem — os pedidos de drive-thru aumentaram 30%.

Com o aumento do tráfego de drive-thru, os trabalhadores de fast-food foram designados como “trabalhadores essenciais”, ao lado de enfermeiros e médicos. Mas raramente receberam os equipamentos de proteção necessários para limitar sua exposição ao vírus, e seus salários permaneceram miseravelmente baixos. Em resposta, o movimento ‘Fight for $15’ viu um ressurgimento do interesse dos trabalhadores na Califórnia, culminando com a aprovação de um aumento de salário mínimo há muito esperado pelo estado, em setembro passado.

No entanto, o que os líderes do movimento comemoraram como uma vitória também sinalizou, em parte, uma retirada tática. Em anos anteriores, o movimento tinha mais em mente do que salários. O ‘Fight for $15’ na Califórnia pressionava por novas regras que garantissem que grandes corporações de fast-food seriam tão responsáveis por abusos trabalhistas quanto seus franqueados — as empresas independentes que possuem a maioria dos restaurantes e empregam diretamente a vasta maioria dos meio milhão de trabalhadores de fast-food do estado. Mas para aprovar o projeto de reforma, os legisladores eliminaram a proposta de responsabilidade corporativa em favor de um aumento no salário mínimo: $20 por hora para trabalhadores de fast-food.

Enquanto toda a indústria de restaurantes caminhava para seu melhor ano na história, as redes de fast-food prometeram salários mais altos. Mas também mantiveram a estrutura que protege as grandes corporações de qualquer responsabilidade sobre as condições de trabalho. E são essas corporações que escrevem os roteiros que meus colegas de trabalho e eu seguimos, os que causam tanto estresse todos os dias.

O fast food promete atender aos desejos dos clientes em poucos segundos. Mas, as empresas não conseguem cumprir essa promessa de conveniência, a menos que alguém seja forçado a trabalhar em um ritmo antinatural e insustentável. No fastfood, o estresse não é uma condição rara sofrida pelos inexperientes. É uma realidade constante para todos os funcionários, independentemente de sua experiência ou capacidade.

Sem a capacidade de responsabilizar as grandes corporações de fast food pelo que acontece em suas franquias, cada caso de abuso no local de trabalho é tratado como uma aberração local. Na realidade, o abuso faz parte do modelo de negócio.

Gestão Pelo Estresse em fast foods

Quando o fast food surgiu nas décadas de 1950 e 1960, atraiu investidores com a promessa de transformar o negócio de restaurantes em algo mais parecido com uma fábrica, que poderia depender de um controle rigoroso da mão de obra para alcançar alta produtividade, produção em massa e lucratividade recorde.

Na cozinha, sinais na tela de ponto de venda listam “tempos-alvo” para aceitar um pedido (vinte e cinco segundos, ou menos), confirmá-lo (três segundos) e processar o pagamento (quinze segundos). Esses números têm origem na sede corporativa do McDonald’s antes de serem repassados para os franqueados, para Tranh e para nós.

A frase suave “tempo-alvo” implica que atender oitenta carros por hora em um dia movimentado é apenas uma expressão de otimismo, um objetivo e não uma exigência. Na verdade, temos que atender a todos os carros, e esses tempos são estimativas de quanto tempo temos, dependendo de quantos funcionários estamos. O McDonald’s não precisa usar a linguagem dura das ordens para transmitir sua mensagem. Eles têm outras formas de comunicar o que realmente querem e nos fazer cumprir.

Como escreveu o já falecido organizador sindical Mike Parker na Catalyst, nos anos 1980, montadoras americanas (seguindo o exemplo de suas rivais japonesas) reduziram cada função na linha de montagem às suas funções básicas e as rotacionaram entre as posições ao longo de um turno. O “sistema de trabalho flexível”, como era chamado, parecia bom para os trabalhadores — uma pausa na monotonia e repetição de postos fixos atribuídos em uma linha de montagem. Mas o que a gerência apresentou como um benefício era, na verdade, apenas uma maneira de desqualificar e, assim, baratear a mão de obra na fabricação.

Como Parker escreveu, atrativos ilusórios como “flexibilidade” superam a força como meio de controlar os trabalhadores e manter seus salários baixos. Atrativos como esses são essenciais para um sistema que faz os trabalhadores se encaixarem no processo de fabricação — o que Parker e outros chamavam de “gestão pelo estresse”. É uma estratégia de gestão de trabalho afetiva, que convence os trabalhadores a assumirem a responsabilidade de completar as tarefas de uma maneira que provoque recompensas, não reprimendas. O resultado é maior conformidade e um ritmo mais rápido, impulsionado pelo medo dos próprios trabalhadores de falharem.

Como uma indústria de manufatura, o fast food adotou um meio semelhante de controle dos trabalhadores. Se não atingimos os “alvos”, somos repreendidos por gerentes que estão tão estressados quanto nós. Por outro lado, a indústria frequentemente sujeita os trabalhadores a testes aleatórios de competência em serviço sob o pretexto de “competições” regionais. Quando vencemos um desses concursos, minha loja recebeu uma cesta de prêmios, broches de chapéu e alguns minutos longe de nossas estações para tirar uma foto em grupo.

Para os trabalhadores mais confiáveis, os incentivos podem assumir a forma de aparente progressão na carreira. Mas cargos de gerência muitas vezes não são tudo o que aparentam ser. Em troca de um pagamento ligeiramente mais alto, os assistentes de gerência podem esperar um trabalho que é pouco diferente do de um funcionário comum, e uma agenda mais exigente e mais aleatória.

Quando foi promovida, Danielle, uma assistente de gerência alguns anos mais jovem que eu, me disse que assinou um contrato prometendo estar disponível praticamente a qualquer hora em que o restaurante estivesse aberto. Em um local de trabalho onde as pessoas frequentemente pedem demissão inesperadamente ou não aparecem, o acordo significava que ela, como todos os outros assistentes de gerência, muitas vezes tinha que trabalhar em um dia que deveria ser de folga.

Fast food são locais propensos ao caos

Mesmo em um minuto, pegar pedidos é apenas metade do meu trabalho. A seis ou sete pés à direita da minha tela, há a “hopper” de batatas fritas — um freezer do tamanho e forma de uma geladeira doméstica, que dispensa batatas congeladas nas cestas abaixo. À esquerda, mais perto de mim, há uma cuba de óleo quente com espaço para quatro cestas, seguida por um compartimento para as batatas prontas. Quando um cliente chega para fazer um pedido, um sino toca no meu fone de ouvido e eu faço a saudação padrão, pergunto se pretendem usar o aplicativo para pagar e se gostariam de adicionar um sanduíche de café da manhã por um dólar.

Toda essa sequência leva entre vinte e trinta segundos, durante os quais lanço as batatas na cuba de óleo e as fritas ficam prontas. Às vezes, o cliente quer discutir o pedido com um parceiro, adicionar ou remover um item. Eu não posso realmente demorar ou esperar que o cliente termine de falar, então coloco as fritas na lixeira. Nos raros casos em que um cliente quer cancelar um pedido depois de fazer a encomenda, a pressão aumenta — eu ainda tenho que resolver o problema rapidamente e em um tempo-alvo. Esse esforço é, é claro, recompensado com uma batata frita que pode ser jogada no lixo, literalmente.

Esse tipo de experiência não é único — qualquer um que já trabalhou em um fast food sabe que esses locais são propensos ao caos. Durante os dias mais movimentados, recebo ordens aleatórias e sem sentido do outro lado da cozinha. Em um caso memorável, Tranh ordenou repetidamente que eu “movesse os carros”, apesar de minha função ser uma das poucas no prédio que não interage diretamente com os clientes.

Na sala de descanso, os comentários giram sobre como os gerentes agem e tratam os outros. Mas o que importa não é o caráter do gerente, é o que se espera dele. Se o estresse faz parte do modelo de negócios, ele se aplica tanto aos gerentes quanto aos funcionários.

Os patrões em outros campos se apoiam na divisão entre os trabalhadores para manter o controle, com o que estudiosos chamam de “despotismo de mercado”. A gerência em um fast food, de forma similar, joga com as diferenças entre as posições e níveis de stress, tudo em nome de um resultado: conveniência rápida.

O constante estresse do trabalho é uma das razões pelas quais a rotatividade de funcionários geralmente ultrapassa 100% na indústria de fast food. No entanto, uma constante mudança de trabalhadores esconde o fato de que muitos permanecem no emprego por anos, muitas vezes por puro desespero. Na Califórnia, talvez 1 a 2% da força de trabalho da indústria (mais de dez mil ao todo) sejam desabrigados, de acordo com um estudo publicado no ano passado. Outros 10% têm um lugar para ficar, mas gastam 70% ou mais de sua renda familiar com aluguel — o dobro da proporção de trabalhadores em outras indústrias.

Oito e oito

Eu pego meu último cheque às 9 p.m. de um sábado à noite, quando sei que o drive-thru estará mais lento. Algumas noites antes, Danielle me contou que Tranh estava doente há duas semanas. Os médicos não conseguiam descobrir o que estava errado. “Ela pode estar esgotada,” disse ela. Mesmo assim, as coisas estavam tão desesperadoras que Tranh veio na semana passada, cambaleando, para ajudar Olivia a fazer os horários.

Compro um cartão e um saco de tangerinas secas no caminho e me sento na sala de jantar. Escrevo algo simples sobre melhorar logo. Fico tentado a dizer que posso voltar a trabalhar, pensando que talvez isso animaria seu humor. Mas me contenho e termino com uma assinatura.

“Tenho uma hora de trabalho restante,” diz Danielle, desabando no banco em frente ao meu. “Acho que vou só ficar no fundo. Contanto que eu não tenha que interagir com os clientes.” Ela se sentiu enjoada o dia todo, diz ela. Algumas pessoas novas foram contratadas e ela teve que treiná-las. Os clientes se acumularam. “Acho que vou ligar amanhã dizendo que estou doente.” Parece sensato, eu digo. disso, então o controle e a exploração são apenas uma consequência do projeto.

Ela não precisa do meu conselho. “Vou tirar um tempo de folga no próximo mês também. Disseram que todos têm que estar aqui, todos os gerentes assistentes, mas eu simplesmente disse não. Então, o que você vai fazer hoje à noite?”

Depois de um pouco de insistência, confesso que talvez vá ao Jack in the Box na esquina. Antes do trabalho, eu era um cliente ocasional de fast food, mas depois de começar a trabalhar, havia um certo prazer em sentir a engrenagem de um drive-thru funcionando a meu favor. Vou de vez em quando, durante as horas mais tranquilas.

“Tenho um amigo que costumava trabalhar lá,” diz Danielle.

“É mesmo?”

“Sim, ele disse que lá eles recebem muito mais viciados.”

“É 24 horas,” digo. A sala de jantar é menor, mas o drive-thru fica aberto a noite toda, muitas vezes com uma fila de carros que se estende além da entrada do estacionamento, como um rabo balançando na rua.

“Sim, é por isso que ele trabalhava lá. Aqui e ali,” ela diz, com os olhos arregalados. “Ele costumava trabalhar aqui, um turno inteiro, fechava comigo depois da meia-noite e, em seguida, caminhava até lá e fazia outro.” Há um alarme em sua voz, um reconhecimento de que uma pessoa não deveria ter que trabalhar em um emprego como esse duas vezes ao dia. “E a Rosa? Você sabe que ela trabalha 16 horas por dia. Foi o que ela me disse ontem. Oito e oito. Ela começa às 5 a.m. no outro trabalho, vem aqui e faz outro turno. E as pessoas se perguntam por que estão tão prontas para desistir.”

“Quem está desistindo?” Além de mim, quero dizer.

Danielle esclareceu que ela se referia a sair no final do turno, não a deixar o emprego.

Ela verifica o relógio no celular pela terceira vez desde que começamos a conversar. Seu intervalo acabou. “Vou levar isso para a Tranh,” diz ela enquanto pega meu presente simbólico e desliza para fora do banco. Ela caminha de volta para a cozinha sem dizer mais nada.

Do Jack in the Box, é uma viagem de 10 minutos até em casa, passando por um Popeyes e um Wendy’s, cada um com alguns carros esperando. Quando verifico meu calendário em casa, suspiro, aliviado ao saber que Danielle planeja ficar em casa amanhã. É domingo de Páscoa. Feriados podem ser especialmente movimentados.

Esta história foi apoiada pela organização sem fins lucrativos de jornalismo Economic Hardship Reporting Project.

*Os nomes foram alterados para proteger a identidade dos colegas de trabalho do autor.

Alex Park é escritor e pesquisador em Oakland, Califórnia. Atualmente, ele está trabalhando em um livro sobre a ascensão global da indústria de fast-food.

Fonte: Rádio Peão, com Jacobin
Tradução: Luciana Cristina Ruy
Data original da publicação: 12/08/2024

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/fast-foods-estresse-dos-trabalhadores-e-parte-do-negocio/

Fast foods: estresse dos trabalhadores é parte do negócio

Humildade, deliberação e trabalho coletivo

É tempo da esquerda voltar a descrever o sistema econômico alternativo a que aspira.

Thomas Piketty

Apesar da maioria relativa obtida pela Nova Frente Popular (NFP), o panorama político francês continua marcado por divisões e incertezas. Sejamos claros: os ganhos obtidos pela esquerda em votos e assentos são, na realidade, muito limitados e refletem um trabalho insuficiente tanto em relação ao programa como às estruturas. Só enfrentando resolutamente estas insuficiências que os partidos de esquerda poderão ultrapassar o período de turbulência e de governos minoritários que se anuncia e obter um dia a maioria absoluta que lhes permitirá governar o país no longo prazo.

O programa adotado pela Nova Frente Popular alguns dias após a dissolução do antigo governo teve certamente o imenso mérito, em comparação com os outros, de indicar onde encontrar os recursos para investir no futuro: saúde, educação, pesquisa, infraestrutura de transportes e de energia, etc. Estes investimentos essenciais aumentarão fortemente e só há duas formas de financiá-los.

Ou aceitamos o início de um novo ciclo de socialização crescente da riqueza, impulsionado pelo aumento dos impostos sobre os mais ricos, como propõe a Nova Frente Popular, ou rejeitamos por ideologia qualquer alta fiscal, colocando-nos nas mãos do financiamento privado, sinônimo de desigualdade de acesso e de eficácia coletiva mais que duvidosa. Impelidas por custos privados gigantescos, as despesas de saúde aproximam-se de 20% do PIB nos Estados Unidos, com indicadores desastrosos.

Entretanto, os montantes mencionados pela Nova Frente Popular podem ter assustado: cerca de 100 bilhões de euros em encargos e novas despesas daqui a três anos, ou seja, 4% do PIB. No longo prazo, estes montantes não têm nada de excessivo: as receitas fiscais na Europa Ocidental e Nórdica passaram de menos de 10% da renda nacional antes de 1914 para 40-50% depois dos anos 1980-1990, e foi este aumento do poder do Estado de bem-estar social (educação, saúde, serviços públicos, proteção social, etc.) que permitiu um crescimento sem precedentes da produtividade e do nível de vida, independentemente do que os conservadores de qualquer época possam ter dito.

Forte demanda por justiça social

O fato é que há incertezas consideráveis quanto ao calendário e à ordem de prioridades de um governo de esquerda que chega ao poder. Mesmo sendo forte a demanda por justiça social no país, a mobilização de novos recursos continua sendo um processo frágil, do qual os cidadãos podem retirar seu apoio a qualquer momento. Concretamente, enquanto não for demonstrado de forma incontestável que os milionários e as multinacionais estão realmente sendo obrigados a contribuir, é impensável pedir a qualquer outra pessoa que faça um esforço suplementar. Ora, o programa da Nova Frente Popular continua muito vago sobre este ponto crucial.

É ainda mais problemático que os governos de esquerda das últimas décadas, na ausência de um programa suficientemente preciso e de uma apropriação coletiva suficientemente forte, estejam sempre cedendo aos lobbies assim que chegam ao poder, por exemplo, isentando do ISF [imposto de solidariedade sobre a fortuna] os chamados ativos profissionais e a quase totalidade das grandes fortunas, o que faz com que as receitas sejam ridiculamente baixas em relação ao que poderiam e deveriam ser.

Para não repetir estes erros, será necessário envolver a sociedade civil e os sindicatos na defesa destas receitas e dos investimentos sociais a elas associados. Nestas questões, como em outras, os slogans não podem substituir o trabalho de fundo e a mobilização coletiva.

Há problemas semelhantes com as aposentadorias. Não faz muito sentido adotar o slogan da aposentadoria para todos aos 62 anos, ou mesmo aos 60 anos, quando todos bem sabem que existe também uma condição de tempo de contribuição para obter uma aposentadoria completa no sistema francês. Uma palavra de ordem do tipo “quarenta e dois anos de contribuição para todos” seria mais bem compreendido pelo país, e deixaria claro que as pessoas com formação superior não se aposentarão antes dos 65 ou 67 anos, insistindo, ao mesmo tempo, na injustiça inaceitável dos 64 anos da reforma de Emmanuel Macron, que obriga, por exemplo, quem começou a trabalhar aos 20 anos a contribuir durante quarenta e quatro anos.

Os exemplos poderiam ser multiplicados. É bom que se anuncie a supressão da plataforma Parcoursup, mas teria sido ainda melhor descrever precisamente o sistema alternativo, mais justo e mais transparente, que o substituirá. É bom que se denuncie o grupo de mídia Bolloré, mas seria melhor comprometer-se com uma lei ambiciosa para democratizar os meios de comunicação e desafiar os acionistas todo-poderosos.

Por etapas

Lembremos também da proposta que visa atribuir um terço dos assentos nos conselhos de administração das empresas aos representantes dos trabalhadores. Esta é a reforma mais profunda e autenticamente social-democrata do programa da Nova Frente Popular, mas seria melhor que fosse colocada num quadro mais amplo. Para permitir a redistribuição do poder econômico, seria necessário aumentar o número de assentos nas grandes empresas para 50%, limitando simultaneamente os direitos de voto dos maiores acionistas e comprometendo-se com uma verdadeira redistribuição do patrimônio.

Em vez de condescender com uma radicalidade retórica de fachada, é tempo da esquerda voltar a descrever o sistema econômico alternativo a que aspira, reconhecendo ao mesmo tempo que as coisas ocorrerão por fases.

Em todas estas questões, só o trabalho coletivo nos permitirá progredir, o que exige a criação de uma verdadeira federação democrática de esquerda, capaz de organizar a deliberação e resolver as divergências. Estamos muito longe disso: nestes últimos anos, A França Insubmissa não parou de tentar impor sua hegemonia autoritária à esquerda, à maneira do Partido Socialista de outrora, só que pior, dada a recusa de qualquer processo de votação por parte dos dirigentes “insubmissos”.

Mas o eleitorado de esquerda não se deixa enganar: sabe muito bem que o exercício do poder exige, acima de tudo, humildade, deliberação e trabalho coletivo. Já é tempo de responder a esta aspiração.

Thomas Piketty  é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics.

Fonte: A Terra é Redonda, com Le Monde
Tradução: Fernando Lima das Neves
Data original da publicação: 07/08/2024

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/humildade-deliberacao-e-trabalho-coletivo/

Fast foods: estresse dos trabalhadores é parte do negócio

E os precarizados que alimentam a IA?

No projeto que visa regular a tecnologia, um tema está ausente: os direitos dos trabalhadores precarizados do “andar de baixo” das Big Tech.

Diversas entidades

No âmbito da análise do  Projeto de Lei No 2.338 de 2023, que cria um marco legal para a Inteligência Artificial no Brasil, na Comissão Temporária sobre Inteligência Artificial, os signatários desta carta ressaltam tema ainda ausente no texto. Saudamos a importância da análise pelo Senado Federal e pela Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial no Brasil (CTIA) do Projeto de Lei. O relatório do senador Eduardo Gomes (PL-TO) avançou e apontou para a fixação de diretrizes e obrigações fundamentais para o desenvolvimento e uso dos sistemas de Inteligência Artificial, incluindo medidas para mitigar riscos e assegurar direitos aos vários grupos afetados, especialmente aqueles mais vulneráveis.

O texto tem ensejado intensos debates, com forte e perigoso lobby de setores empresariais contrários ao estabelecimento de necessárias regras para evitar efeitos prejudiciais da implementação e adoção dessas tecnologias. Esta ofensiva das empresas já tem produzido efeitos, com flexibilizações de obrigações fundamentais para garantir o uso responsável e que mitigue consequências danosas para a população. Por isso, é mais do que urgente que a sociedade se mobilize em torno do tema e que o Senado continue persistente em sua autonomia, determinado a aprovar uma nova lei sobre tema da maior relevância para o presente e o futuro de desenvolvimento e bem-estar da população brasileira. Uma legislação soberana, que considere as oportunidades, mitigando riscos e respeitando direitos, colocará o Brasil em posição favorável na cadeia produtiva da economia digital.

Nas últimas discussões na CTIA no Senado Federal, o relator, senador Eduardo Gomes, incorporou uma emenda fundamental para incluir um tema até então pouco tratado entre as medidas: o do trabalho. O acréscimo é de extrema importância, uma vez que o impacto da IA nas relações laborais tem ensejado preocupações em todo o mundo. Reiteramos a importância  das propostas de proteção dos trabalhadores contra os efeitos prejudiciais da implementação dos sistemas de IA incluídos no texto. Sobretudo, faz-se necessário incluir a avaliação de riscos por órgãos competentes, vinculados a instituições que regem a saúde e o direito do trabalho, bem como  adotar medidas de transparência de gestão e proteção dos trabalhadores com  a obrigação de negociar a implementação desses sistemas junto a  entidades representativas dos trabalhadores.

Contudo, há ainda um tema chave ausente do PL: os direitos de trabalhadores envolvidos no desenvolvimento da Inteligência Artificial. Pesquisas acadêmicas têm demonstrado como este processo envolve uma quantidade enorme de pessoas em todas as fases do ciclo de produção dos sistemas, da coleta e anotação de dados à revisão e aperfeiçoamento dos modelos. Embora se trate de um processo essencial ao aprendizado de máquinas, esse trabalho é externalizado principalmente para plataformas digitais ou para redes especializadas de terceirização, submetendo os trabalhadores a desproteção trabalhista, bem como a formas de vigilância violadoras dos direitos à privacidade e à proteção dos dados pessoais.  Infelizmente, estudos têm revelado como tais trabalhadores têm experimentado condições precárias, especialmente nos países do Sul Global, incluindo o Brasil. Um estudo mostrou que 33% dos trabalhadores neste segmento têm nessas plataformas sua principal fonte de renda; 66% contam com uma quantia mínima de dinheiro a ser obtida nas plataformas para pagar suas contas e possuem rendimento médio 31,5% menor do que a população brasileira.

Outros estudos revelaram que estes trabalhadores sofrem não somente com baixos pagamentos, mas também com trabalho não pago, perfazendo  o montante de 8,5 horas por semana. Grupos enormes de trabalhadores são reunidos em fazendas de cliques sem condições trabalhistas adequadas. A esses trabalhadores é imposta uma condição de autônomo, o que retira o acesso a direitos trabalhistas e do sistema de proteção social, como a seguridade social. De um lado, empresas de IA não revelam quem está sendo contratado nas suas cadeias produtivas, de outro muitas companhias e plataformas que fazem este serviço estão fora do Brasil, o que aumenta a vulnerabilidade destes trabalhadores. Essa situação torna as relações de trabalho e as precárias condições de vida destas pessoas  invisibilizadas, pois ao não existirem perante a lei,  não conseguem sequer reivindicar melhores condições.

A IA é uma tecnologia que se torna cada vez mais relevante na sociedade, mas seu desenvolvimento não pode ser feito às custas da dignidade de trabalhadores. Neste sentido, as evidências dos estudos produzidos pela academia mostram a importância das legislações sobre IA tratarem da proteção ao trabalho e trabalhadores (referente ao Capítulo X, seção II do referido PL) não somente na perspectiva dos efeitos de seu uso e implementação, mas também levando em conta o trabalho envolvido nessa cadeia produtiva, o que implica:

– Estender os normativos e políticas públicas delegados à autoridade competente, autoridades setoriais, o CTIA e o Ministério do Trabalho também aos trabalhadores envolvidos no desenvolvimento dos sistemas de IA.

– Incluir estes trabalhadores nas avaliações de risco e nas obrigações de supervisão humana para decisões tomadas por sistemas automatizados.

– Incluir obrigações de transparência para empresas de IA no tocante às empresas e trabalhadores contratados na sua cadeia produtiva para permitir a fiscalização das autoridades de inspeção do trabalho.

– Assegurar aos trabalhadores envolvidos no desenvolvimento de IA direitos básicos trabalhistas previstos na legislação trabalhista quando cumpridos os requisitos para tal, indicando a necessidade de fiscalização das autoridades nesse setor.

– Delegar à ANPD, em parceria com o CRIA e o Ministério do Trabalho, a emissão de normativos que limitem a coleta abusiva de dados de trabalhadores no âmbito do desenvolvimento e uso de sistemas de IA, incluindo dados psicológicos e relativos a sentimentos.

– Acrescer às diretrizes do capítulo a transparência nos contratos e termos, na definição da alocação de trabalho, na definição de remuneração, na tomada de decisões disciplinares e nos critérios utilizados pelos sistemas de IA, bem como direitos de recurso às decisões tomadas por estes e ou com o auxílio deles.

Compreendemos que este é um momento crucial e final de tramitação do PL 2.338 de 2023 na CTIA, mas não poderíamos nos furtar de alertar para a importância do assunto uma vez que o tema do trabalho passou a fazer parte do escopo. Ao mesmo tempo, somamo-nos aos alertas contra os riscos do lobby das empresas de vários setores que atuam para descaracterizar o texto do PL.

Assinam esta carta:

Laboratório de Pesquisa DigiLabour

Projeto Fairwork

Laboratório de Trabalho, Saúde e Processos de Subjetivação (LATRAPS)

Laboratório de Pesquisa em Economia, Tecnologia e Políticas da Comunicação (Telas)

Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da Universidade de São Paulo.

ILO Essex Observatory for Work in the Digital Economy, capítulo Brasil

International Network on Digital Labour (INDL)

Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM)

Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (Abej)

Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN)

Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (ESOCITE.BR)

Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber)

Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo

Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (ABRASTT)

Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP)

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)

ADUFC – Seção Sindical dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará

Compolítica – Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política

Frente Ampla em Defesa da Saúde dos Trabalhadores

Rede de Pesquisa Trabalho e Identidade do Jornalista (Retij – SBPJor)

Rede Lavits

Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD)

União Latina de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura, Capítulo Brasil (ULEPICC-Brasil)

Instituto Distributed AI Research (DAIR)
Grupo de Pesquisa Digital Platform Labour (DiPLab)

Cátedra Luiz Beltrão de Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)

Centro de Estudos Subjetividade, Saúde e Trabalho (CESST)

ComunicAtivistas

Coordenação Coletiva Setorial de C&T,I e TI PR RS

CPCiente

Departamento de Técnicas Profissionais e Conteúdos Estratégicos – FACOM/UFJF

EMERGE-UFF – Centro de Pesquisa e Produção em Emergência, Universidade Federal Fluminense

Grupo de Estudos e Pesquisas para o Trabalho (GEPT/UnB)

Grupo de Pesquisa Classes Sociais e Trabalho

Grupo de Pesquisa CPCienTE – Interfaces em Comunicação Pública da Ciência, Tecnologias e Educação: políticas públicas, Comunicação digital e métricas, divulgação científica

Grupo de Pesquisa e Estudos das Poéticas do Cotidiano – EPCO/UEMG

Grupo de Pesquisa Economia Polìtica da Comunicação da PUC-Rio/CNPq

Grupo de Pesquisa em Comunicação, Economia Polítia e Diversidade – Grupo Comum – UFPI

Grupo de Pesquisa Trabalho e Teoria Social (GPTTS) da UnB

GT Inteligência Artificial e Trabalho da Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP)

InfoCom – Grupo de Pesquisa em Competências InfoComunicacionais

Instituto Brasileiro de Políticas Digitais – Mutirão

Instituto de Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas

International Center for Information Ethics

Laboratório ARIDA (Advanced Research in Databases)

Laboratório de Investigação em Comunicação Comunitária e Publicidade Social (Laccops/UFF)

Laboratório de Metodologias de Ensino e Tratamento de Resíduos da Universidade Federal do Ceará

Laboratório de Psicologia Social Jurìdica (UFMG)

Laboratório de Tecnologias Livres -UFABC

MediaLab.UFRJ

Movimento FeliciLab

Núcleo de Jornalismo e Audiovisual (PPGCOM UFJF)

Núcleo de Tecnologia do MTST

Núcleo de Estudos Organizacionais Sociedade e Subjetividade

Núcleo de Pesquisa em Jornalismo e Comunicação-nujoc-UFPI

Observatório de Economia e Comunicação da Universidade Federal de Sergipe (OBSCOM-UFS)

Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC)

Observatório das Plataformas Digitais (OPD/UFMG)

Observatório dos Impactos das Novas Morfologias do Trabalho sobre a Vida e Saúde da Classe Trabalhadora (Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo)

Observatório do Futuro do Trabalho

SETORIAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO PT-RS

Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho – SINAIT

SINDPD-PE – Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados, Informática e Tecnologia da Informação do Estado de Pernambuco

SOS Viamão

Trab21 – Grupo de Pesquisa Trabalho no Século XXI

TRAMPO Pesquisa

University of Salento

Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 30/07/2024

DMT: https://www.dmtemdebate.com.br/e-os-precarizados-que-alimentam-a-ia/

Fast foods: estresse dos trabalhadores é parte do negócio

Faz sentido falar em luta de classes hoje?

Nosso esforço deve ser reconduzido a entender a luta de classes não como uma escolha narrativa, mas como algo dado numa realidade material organizada a partir da exploração necessária à manutenção do capital.

Douglas Barros

No princípio era o chip

Em 1946, Mauchly e Eckert, cientistas da Universidade da Pensilvânia, na frente de uma plateia composta por colegas, curiosos e militares do exército norte-americano deixaram as luzes de toda Filadélfia piscando quando ligaram o ENIAC (calculadora e integrador numérico eletrônico). Esse foi considerado o primeiro computador. Tratava-se de um trambolho de 30 toneladas, 2,75m de altura, 70 mil resistores e 18 mil válvulas a vácuo, uma herança da Segunda Guerra. É muito provável que embora soubessem da importância do empreendimento, eles ignorassem que o piscar das luzes da cidade selaria o início de uma profunda e decisiva transformação tecnológica.1

Com efeito, o chip Intel, inventado por Ted Hoff, vinte e cinco anos depois – 1971 – daria o pontapé inicial à corrida da inovação tecnológica na área da computação. O nascimento do microprocessador tornou-se estopim de uma transformação geral no mundo da eletrônica. Já em 1976, os pós-hippies, Steve Woznick e Steve Jobs, usando a garagem de casa, lançavam a Apple após o sucesso com o Apple II; o primeiro microcomputador comercial. Uma década na qual o Vale do Silício se tornou o quartel general de onde sairiam os maiores nomes da era da informação advindos da “contracultura” da qual o pobre Marcuse, que nada tinha a ver, sofreu com as consequências.

Na corrida, a IBM, diante do sucesso da Apple, criou sua própria versão do microcomputador batizando-o de Personal Computer, o nosso popular PC. Disparos de inventividade que, após diversas experimentações no que concernia ao tráfego de dados, culminaram no desenvolvimento de softwares – adaptados primeiramente por Bill Gates e Paul Allen. Com a consolidação dos softwares, como ferramenta capaz de organizar o tráfego, houve então uma efetiva popularização da Internet que aos poucos romperia as fronteiras da Califórnia. Curiosamente, e não por acaso, tudo isso ocorreu na, assim chamada, última década vermelha quando Cassandras diziam mundo afora que a luta de classes estava arrefecendo.

Consolidada a aliança norte-americana entre a academia e o exército, algo central para o desenvolvimento da tecnologia informacional, a relação com o espaço e o tempo se alterou profundamente ao se tornar homóloga à transnacionalização dos processos de produção e reprodução do capital. Processos guiados por fluxos de produção de mercadoria que passam a ser abalizados por demandas interconectadas em redes globais que ditam just in time a demanda orientada pelos investimentos.

Nos anais dessa história, a agência de projetos de pesquisa avançada (ARPA), do Departamento de defesa dos EUA, criou um sistema de comunicação invulnerável com base numa rede independente de centro de controle. Cada ponto da rede funcionava como toda a rede de modo que não era possível localizar de onde provinha ou para onde ia a informação. Em meio à “gloriosa” Guerra Fria, a estratégia adotada visava a assegurar informações se acaso ocorresse um ataque nuclear. O excedente dessa medida foi tornar a tecnologia digital descentralizada; as mensagens encontravam suas próprias rotas ao longo da rede gerando condições tecnológicas “para a comunicação global horizontal”.2

No rastro dessa revolução informacional – sem lastro na história humana –, e que acompanhava as transformações na reprodução social, foi preciso encontrar um léxico adequado correspondente às formas administrativas que se organizavam nos porões do capitalismo: a ruína do Welfare (Warfare) State. E assim uma nova gramática que substituísse a ideia de luta de classes tornou-se um dos objetivos da reengenharia social que teria na logística sua característica central. Nascia o nosso mundo.

Há algo de podre no reino do capitalismo

A necessidade de interligar mercados passa a ter como uma das metas colher informações para estabelecer algum grau de segurança aos investimentos em sintonia com uma racionalidade cujos teóricos neoliberais, desde o Colóquio Walter Lipmann, aguardavam ansiosos para pôr em prática. A informação, central para reduzir os custos e dispersar a produção geograficamente, tem como resultado a consolidação da concorrência entre regiões do globo e Estados que precisaram vender a ideia de que eram seguros aos negócios. Ou seja, a revolução comunicacional foi paralela à transformação na morfologia do capital que passava por uma reestruturação produtiva e seria acompanhada por uma engenharia da gestão social totalmente nova impactando o Estado.

Foi assim que também um grande sistema de vigilância e colhimento de dados individuais passou a se organizar. As forças de produção high-tech tornaram as relações de produção radicalmente fantasmagóricas; reguladas por formas jurídicas e tratados transnacionais que englobam diversos países. E, portanto, a propriedade da informação se tornou, para acompanhar o argumento de Mackenzie Wark, uma nova propriedade privada que redefiniu as relações de classe.3

Com isso, uma nova gramatica administrativa viria consolidar um imaginário em concordância com as formas de gestão; uma língua administrativa que forjou uma comunidade imaginada global. Nada muito animador aí, pois, quanto mais flexíveis, e em tempo real, se tornaram as transações financeiras tanto mais rígidas e inflexíveis se constituíram as fronteiras entre indivíduos cada vez mais apegados às suas identidades.

No esteio dessas radicais transformações, porém, estavam as crises. Não há dúvida de que nos anos 1970 a crise econômica causada por uma estagflação – a mortífera combinação entre inflação e recessão; preços elevados e baixo poder de compra, endividamento maciço e desemprego – abriu alas para uma radical transformação no sistema de reprodução social. Essa crise foi fundamental ao impulso à nova figura do espírito do capitalismo. No fundo tratava-se de uma crise na absorção da mão-de-obra que impactava a valorização do valor deixando evidente o que Marx prenunciou no século XIX.

Paul Volcker, presidente à época do Federal Reserve, tendo em mente as lições tiradas de 1930, diante de graves sintomas de recessão, decidiu elevar a taxa de juros para combater a inflação. No começo dos anos 1980, o índice inflacionário é revertido,4 mas, a recuperação da economia norte-americana tem um impacto decisivo na América Latina selando qualquer esperança de integração das economias dependentes ao sonhado butim do desenvolvimento e ampliação da concorrência externa. Devemos relembrar que nos anos 1970 muitos governos latino-americanos, sob o chumbo grosso das ditaduras, optaram por projetos neodesenvolvimentistas financiados por capitais estrangeiros mediados por bancos norte-americanos e europeus.

Se a elevação da taxa de juros, por um lado, enxugou o dinheiro no esteio da circulação, por outro, fez com que as dívidas contraídas pelos países da região sul, feitas em moedas estrangeiras, disparassem. Com dólares em menor circulação, uma subida abrupta do valor da moeda dilapidou os valores das moedas locais e tornou impossível aos países honrarem suas dívidas. Foi esse processo que, em 1982, levou o México à moratória causando seu colapso econômico.

No Brasil, vimos um lastro de inflação que depreciou radicalmente os valores da antiga moeda e aprofundou de maneira radical as desigualdades de renda. Esse é um dos possíveis caminhos para explicar a queda abrupta do crescimento econômico e da taxa de produtividade nos países subdesenvolvidos. A fuga de capitais impôs o aprofundamento do subdesenvolvimento às economias latino-americanas que, sob regimes ditatoriais, ainda apostavam no desenvolvimentismo. Isso foi fundamental para a desestabilização das ditaduras. No Brasil isso foi acompanhado por um radical crescimento do movimento operário que, em termos mundiais, fechava as cortinas da luta de classes no século XX.

Com a revolução técnico-cientifica-informacional, como dirá Kurz, os potenciais de racionalização dos processos de produção superam os de consolidação e abertura de novos mercados.5 Se do acaso se faz necessidade e da necessidade leis, esses processos estão reciprocamente imbricados. A capacidade do capitalismo fagocitar todos os espaços da vida social para os tornar rentáveis promovendo uma subjetividade consumidora atada ao trabalho improdutivo se coloca como central.

E, assim, o novo tempo do capitalismo torna-se um tempo acelerado que promove uma financeirização na qual a busca por retornos rápidos aos investimentos dirige as relações econômicas. Os impactos dessa aceleração serão vividos também de maneira subjetiva. Com a alta aceleração “não há mais aqui a suposição de uma ‘vida mais elevada’ nos esperando depois da morte” diz Hartmut, “mas sim a busca por realizar tantas opções quanto possível dentro das vastas possibilidades que o mundo tem a oferecer”.6

Conjugada à dinâmica do consumo, como novo modelo de vida, o desejo individual é capturado pela demanda do mercado e orientado à satisfação. As opções sempre serão maiores do que nossa capacidade de experimentá-las e, por isso, a frustração se torna regra geral da vida coletiva que destrói a subjetividade promovendo patologias psíquicas como identidades e reservas de mercado.

Onde foi parar a luta de classes?

Com o aumento exponencial da produtividade e a transformação tecnológica, porém, a crise se encontra com a ontologia do ser neoliberal. A partir disso uma nova cosmovisão – amparada pela forma de reprodução do capitalismo, agora globalizado graças, entre outras coisas, à consolidação das redes e fluxos de mercado mundo afora – se efetiva de maneira dramática. Do ponto de vista do mundo do trabalho, aqueles enormes parques industriais, que comandavam a dinâmica de cidades inteiras, cedem espaços à ruina.

Como legitimação dos valores da modernização, a Aufklärung, como aliás bem sabiam Adorno e Horkheimer, não se tornou popular; também aquele universalismo relacionado à garantia de reprodução do capitalismo não pôde mais ocultar o sistema de exclusão daquelas identidades não contempladas na forma de sua reprodução. Mesmo o direito e a ideia de democracia entraram em crise e abriu-se uma nova tentativa de contemplar “identidades” excluídas nos processos de modernização.

Na nova língua da administração, o trabalhador se torna um colaborador e os mecanismos de sua atuação e autonomia, enquanto corpo político, são esvaziados pela gestão à esquerda. Vazio logo preenchido pelo fetichismo da inclusão que articula identidades enformadas com base na herança cultural e religiosa. Sendo a identidade, tal como as tradições, uma criação não uma descoberta,7 na nova gestão, a desubstancialização das identidades excluídas no processo de modernização passará pela reconfiguração de sua história, substituindo o aspecto crítico e criterioso da história por narrativas e suas “lutas”. Com isso, a luta de classes desaparece enquanto léxico administrativo sendo substituído pelo sociologismo do conflito social com anuência da intelligentsia globalizada.

No início dos 1950, após a hecatombe da Segunda Guerra feita sob as insígnias da noção racial, fica evidente algo que o conservador Tocqueville previu: a democracia liberal era incapaz de resolver esse problema.8 O direito, base de sustentação da democracia-liberal, na sua imparcialidade, organizada a partir da abstração da realidade histórica, se via numa encruzilhada. Com os modelos aritméticos de abstração em nome da troca e dos contratos, o direito burguês pós-Segunda Guerra, ante contradições no terreno social, se deparou com o seu reflexo: sua universalidade estava restrita ao homem branco e proprietário.

O caráter excludente e abstrato do universalismo formal se torna obsoleto quando o processo de globalização se efetiva e a produtividade torna inabsorvíveis o grosso da população mundial. Uma fundamental crise de valorização do valor, alicerçada na crise do mundo do trabalho, causa um empecilho fundamental à absorção da mão de obra e é precisamente nesse momento que a identidade se assenhora de maneira contraditória do quadro sócio-político.

A centralidade da identidade, que será dada pela forma de gestão dos conflitos no capitalismo de crise, expressa um sintoma do ocaso das formas de absorção de grupos humanos pela modernização. Um abandono das apostas liberais clássicas guiado pelas ilusões perdidas ante a modernidade. É a crise resultante do fracasso de integração à economia global, portanto, que intensifica os pressupostos da identidade de grupos de pertencimento. Esses pressupostos, delimitados pela identificação estatal, serão ativados de maneira inédita para reconfigurar a organização social e integrar identidades à meritocracia e à competição necessárias ao novo modelo de gestão. A noção de pertencimento retoma à cena político-social décadas depois que a pertença Nazi sucumbiu ante o antifascismo.

Daí a entrada em ação dos dispositivos de governo que orientam as demandas de grupos específicos. Há uma via de mão dupla exercida por eles: por um lado, enfraquecem a autonomia dos grupos racializados e excluídos, por outro, servem à identificação estatal que possibilita a otimização das demandas orientando-as à gestão. Esse desdobramento, que tem seu prognóstico no maio de 68, tem sua confirmação com o fim da URSS. Com o campo estreito da política vertida em administração, com a violência radical da vigilância, com a militarização do espaço social, a gestão da identidade passa a ser o funil da sobrevivência que impõe adesão forçada à colaboração por parte dos militantes convertidos em ativistas.

A armadilha do identitarismo se coloca tendo em vista que para pensar uma política da identidade é necessário torná-la fechada e determinada por grupos de afinidades organizados por dados gerenciais através de especialização da demanda frente ao Estado. Nas palavras de Silvio Almeida: “a identidade se torna uma armadilha quando se converte em uma política, ou mais precisamente em política da identidade, ou ‘identitarismo’”.9 Essa redução da política, orientada pelo jogo da semelhança estereotipada, é baseada numa narrativa fragmentada e por subjetivismos atravessados pelo relato do eu posto no seu lugar de fala. O seu limite é a instauração de uma cosmovisão governada pelas fronteiras imaginadas que o próprio mundo objetivo, organizado pelo capitalismo, produziu.

Sob toda essa parafernália ideológica rumoreja a ruína social, cria-se e recria-se diuturnamente uma gramática da gestão e oblitera-se a possibilidade de qualquer conflito político substancial que leve à luta de classes. Assim, para organizar ideologicamente os grupos de pertencimento se recria a história – que se torna mera narrativa –  e se oblitera os traumas na raiz da sua construção imaginária. Talvez, o mais importante seja a percepção do esquema sútil: não é que o esquecimento é imposto senão que a memória é reorganizada mudando os significados do passado à sombra das necessidades presentes do sistema. A memória se torna monopólio de mercado organizada pelo entretenimento.

Assim, o desenvolvimento da tecnologia da comunicação possibilitou também uma ofensiva permanente contra a noção de luta de classes que “precisou” ser extirpada do imaginário social. Através do controle daquelas identidades historicamente excluídas transformou-se a desgraça em redenção. A violência, que uma identidade é, passa a ser objeto de celebração e não de superação. E, portanto, um permanente exército de gestores – sociólogos, antropólogos, filósofos, psicólogos etc – é mobilizado diuturnamente para consolidar uma analítica pré-kantiana que estabilize uma ordem hierárquica de demandas que consolide a ideia de classes como só mais uma delas.

O problema é que por mais operações que se façam, por mais policiais que sejam as medidas que evitam dizer luta de classes, a violência da exclusão se processa e se reproduz na opressão de trabalhos cada vez mais precários e executados justamente pelos portadores das “identidades” que os progressistas dizem defender. Aliás, a violência de classe contra essas “identidades” é a marca característica dos nossos dias. Nosso esforço então deve ser reconduzido a entender a luta de classes não como uma escolha narrativa, mas como algo dado numa realidade material organizada a partir da exploração necessária à manutenção do capital. De modo que, olhando bem, sequer faz sentido perguntar se faz sentido falar em luta de classes. Se não há pergunta burra, talvez, essa seja a exceção que confirma a regra!

Notas
1 Cf. WU, T. Impérios da comunicação: do telefone à internet, da AT&T ao Google. São Paulo: Zahar, 2012.
2 CASTELLS, M. A sociedade em rede. Tradução Roneide Venancio Majer. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2021.
3 Cf. WARK, M. O capital está morto. Traduzido por Dafne Melo. São Paulo: Editora Funilaria e sobinfluência edições, 2022.
4 ROUBINI, Nouriel; MIHM, Stephen. A economia das crises: um curso-relâmpago sobre o futuro do sistema financeiro internacional. Tradução Carlos Araújo. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010.
5 Cf. KURZ, R. Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2015.
6 HARTMUT, R. Alienação e aceleração: por uma teoria crítica da temporalidade tardo-moderna. Tradução de Fábio Roberto Lucas. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 41.
7 Aqui concordam figuras dispares: Bauman e Cesairé, Benedict Anderson e Eric Hobsbawm.
8 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra.
9 HAIDER, A. Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. Tradução Léo Vinicius. São Paulo: Vendeta, 2019.

Douglas Rodrigues Barros é psicanalista e membro do Fórum do Campo Lacaniano. É doutor em ética e filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Professor filiado ao Laboratório de experiências coloniais comparadas, ligado ao Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor na pós graduação em filosofia da Unifai. Investiga principalmente a filosofia alemã conjuntamente com o pensamento diaspórico de matriz africana e suas principais contribuições teóricas no campo da arte e da política.

Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 06/08/2024

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Fast foods: estresse dos trabalhadores é parte do negócio

Licença paternidade: até 75 dias nos próximos anos

Cuidar de uma criança requer muitas coisas: vontade, dinheiro, carinho, paciência e, sobretudo, tempo. Apesar da constituição brasileira garantir direitos trabalhistas e de auxílio a famílias, a realidade é diferente. Hoje a licença paternidade permite apenas 5 dias de recesso remunerado do trabalho, o que é insuficiente para realizar as várias atividades de cuidado com crianças, especialmente de recém nascidos.

Há uma perspectiva de mudança com o Projeto de Lei 3.773/2023, que propõe a ampliação da licença paternidade para 60 dias, além de permitir a troca entre pais e mães de uso das licenças e atualizar leis relacionadas, como o Programa Empresa Cidadã, que já estende hoje em mais 15 dias a licença para pais. O PL foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) em julho deste ano e segue no processo de análise de outras comissões do congresso. A medida é bem avaliada por especialistas e ativistas da área do direito familiar, mas ainda levanta questões quanto ao impacto econômico e social que pode causar, e revela a passividade em relação à igualdade de gênero no mercado de trabalho.

A legislação atual da licença paternidade e possíveis mudanças

A Constituição de 1988 determinou que a licença paternidade deveria ser regulamentada pelo congresso nacional e, até isso ser feito, o período de recesso seria de 5 dias. Mais de três décadas depois, a pauta não foi votada, o que levou à Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 20 que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro do ano passado. A ADO determina que o congresso brasileiro deve editar a lei em até 18 meses ou a pauta será determinada pelo STF. A decisão pode colocar uma pressão adicional sobre os legisladores para avançar com o projeto, porém, com a falta de clareza em quais serão as consequências da ADO, não é garantido que a regulamentação seja aprovada ao final do prazo.

Já o projeto de lei atual surge em agosto de 2023, mas ele é consequência de anos de trabalho de organizações da sociedade civil em defesa dos direitos da família. Segundo Rodolfo Canônico, diretor da ONG Family Talks, a discussão no congresso se deu desde 2020, quando foi realizado um Grupo de Trabalho (GT) sobre licença parental que seria um direito trabalhista para que pais e mães pudessem ter o tempo necessário para criação de seus filhos, e abrange todas as licenças mais conhecidas – maternal, paternal e de adoção. Esse tipo de direito já é garantido em alguns países europeus, como Portugal, e na América Latina apenas o Chile possui uma política similar.

A licença parental é recomendada e bastante discutida pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), porém um dos problemas encontrados pelo GT de 2020 foi o desconhecimento tanto da população quanto dos parlamentares para tal política. Vários projetos de lei foram criados ao longo dos anos para expandir ou atualizar estas licenças, porém nenhum está ativamente em trâmite como o PL 3773. Com isso, o foco de trabalho de ONGs da causa passou a ser a licença paternidade, contribuindo para a criação da Coalização Licença Paternidade (CoPai), que une diversas ONGs de direito da família e equidade de gênero. Segundo Canônico, expandir a licença dos pais pode ser uma porta de entrada para expandir o tempo de recesso para pais e mães no futuro e incentivar o trabalho do cuidado em homens, pois, segundo ele, “igualdade de gênero no mercado de trabalho é ter igualdade no cuidado da família.”

Uma das modificações realizadas no projeto original foi o escalonamento do prazo de ampliação da licença-paternidade. Na proposta inicial do senador Jorge Kajuru (PSB-GO), o período de licença dos pais seria equiparado ao das mães, com 120 dias, e poderia ser compartilhado entre os genitores conforme sua preferência, inclusive de maneira simultânea. No entanto, a relatora do projeto, senadora Damares Alves (Republicanos-DF), ajustou o texto para implementar a extensão de forma gradual. Agora, o projeto prevê que a licença-paternidade aumente progressivamente: 30 dias nos dois primeiros anos de vigência da lei, 45 dias no terceiro e quarto anos, e, finalmente, 60 dias após o quarto ano. Segundo ela, o aumento gradual tem como objetivo minimizar o impacto financeiro para o Estado. “Muitos [empresas/Estado] apoiam assistência social e garantia de direitos, mas poucos querem pagar por isso”, avalia Rodolfo Canônico em relação à modificação e como vários projetos sociais sofrem impasse ou alterações por causa de questões econômicas.

Os desafios e oportunidades da ampliação da licença-paternidade

Ronner Botelho, advogado e consultor jurídico do Instituto Brasileiro da Família (IBDFAM), enxerga a proposta de ampliação da licença-paternidade para até 60 dias como uma oportunidade de equilibrar a divisão das tarefas no âmbito familiar, contribuindo para a igualdade de gênero. “A ampliação da licença-paternidade não é apenas uma questão de tempo, mas de redefinir o papel dos pais na família”, afirma. Ele também destaca que a possibilidade de parcelamento da licença em dois períodos é uma inovação que pode impactar positivamente a dinâmica familiar, permitindo que os pais estejam mais presentes em diferentes fases do desenvolvimento da criança, e facilitando o retorno da mulher ao mercado de trabalho.

Fora as obrigações trabalhistas já garantidas por lei, também há o programa Empresa Cidadã que, desde 2016, permite um acréscimo em 15 dias na licença paternidade e 60 dias na licença maternidade, e com a nova lei o período para os pais pode chegar a 75 dias no futuro. Hoje qualquer empresa pode aderir ao programa, porém o incentivo fiscal de redução de impostos é apenas para as que se enquadram no regime de lucro real, ou seja, empresas de grande porte. Mesmo com este corte, isso representaria 160.000 empresas aptas a estender licenças, mas apenas 14% delas fazem parte do programa, segundo pesquisa realizada pela Family Talks em 2022.

Outro desafio relacionado à licença são os impactos econômicos e a garantia dos direitos trabalhistas. Botelho aponta a necessidade de assegurar a proteção contra a demissão para trabalhadores que optarem por usufruir da licença ampliada. Ele acredita que essa “blindagem” é essencial para garantir a segurança jurídica e a efetividade dos direitos dos pais e das crianças. Além disso, ele destaca a importância de considerar o impacto econômico e social das mudanças propostas, sugerindo que o escalonamento da licença, conforme previsto no projeto de lei, pode ser uma forma de equilibrar esses impactos com os direitos das famílias.

Fonte: Humanista
Texto: Melga Marçal
Data original da publicação: 09/08/2024

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Fast foods: estresse dos trabalhadores é parte do negócio

‘Não parava de chorar’: funcionários de frigoríficos relatam rotinas de lesões

Em agosto de 2022, a Marfrig anunciou que uma nova fábrica de hambúrguer iria incrementar sua produção em 24 mil toneladas na planta de Bataguassu (MS). A empresa já ostentava o título de maior produtora de hambúrguer do mundo, sendo uma das fornecedoras da principal franquia de fast food do planeta, o McDonald’s. “A produção está subindo e tem que bater a meta. É muito puxado”, desabafa Teresa*, funcionária da nova fábrica de hambúrgueres.

O Brasil abateu 42,3 milhões de bois em 2022, um aumento de 5,28% em relação ao período anterior. E essa produção deve aumentar até 2032, mostram projeções da Organização Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD). O Programa de Pesquisa da Repórter Brasil entrevistou empregados de frigoríficos e ouviu relatos sobre como o crescimento do setor está repercutindo nas condições de trabalho. O estudo completo pode ser lido aqui.

“É muita pressão e muito rápido. Eu chorava de dor e me colocavam para trabalhar”, conta Marcela*, que atuava na unidade de abate de bovinos da Marfrig de Bataguassu (recentemente vendida para a Minerva, outra gigante do setor), até ser afastada no início de 2023 com sintomas de depressão.

O ritmo intenso, aliado ao medo de ser demitido por não bater metas, leva funcionários a ignorarem dores e lesões em meio às jornadas de trabalho. Silvia* e Alice*, ambas trabalhadoras da JBS em São Miguel do Guaporé (RO), dizem que chegaram a trabalhar machucadas: “Quando cortei o dedo, não falei com ninguém. Coloquei duas luvas e voltei a trabalhar”, recorda Silvia. Ao final do turno, quando foi cuidar da ferida, precisou levar pontos para fechá-la.

“Eu trabalhei todos os dias quando tive dengue”, completa Alice.

“A maioria de nós sente dores nos braços. Mas a gente insiste em ir levando até não aguentar mais”, concorda Marcos*, que trabalhou como desossador na JBS em Pimenta Bueno, no mesmo estado. “Se não entrega, não presta, não tem mais valor”, resume.

Por isso, Pedro* não se espantou tanto quando, no começo do seu contrato como trabalhador do frigorífico de Bataguassu, um colega mais velho o aconselhou: “você se acostuma com a dor”.

Além de perder benefícios, como o adicional de assiduidade, caso solicitem atestado médico, há medo entre os trabalhadores de eventuais demissões em casos de adoecimento. “O funcionário acha que, se relatar para a empresa, pode perder o emprego”, confirma Carlos Alberto Lopes de Oliveira, procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho da 14ª Região, em Rondônia. “Por isso, é comum que se tome remédios para dor, o que mascara uma doença do trabalho e que lá na frente pode gerar um problema muito mais grave”, completa.

“O trabalho no frigorífico é terrível; é pressão de tudo que é lado. As pessoas não aguentam mais”, corrobora o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação do Estado de Rondônia (Sintra-Intra), Marcos Cardoso dos Santos.

Procurados, os frigoríficos negaram o problema. A Marfrig disse que os relatos “não são procedentes” e a JBS respondeu que “segue as normas previstas em legislações civis e trabalhistas vigentes”.

A reportagem também entrou em contato com o McDonalds, que afirmou realizar auditorias periódicas em todos os seus fornecedores, e “verifica o cumprimento dos mais altos padrões de compliance, direitos humanos e qualidade em toda sua cadeia de produção”. “Reforça ainda que já solicitou esclarecimentos ao fornecedor sobre as questões levantadas pela reportagem”. As respostas das empresas podem ser acessadas aqui.

Aposentadoria por invalidez

Segundo Roberto Ruiz, médico do trabalho da Universidade Federal de Santa Catarina e consultor de saúde do trabalhador da União Internacional de Trabalhadores da Alimentação (Uita), já há casos de aposentadoria por invalidez provocados por este tipo de situação. “E não são poucos”, observa. “Se o funcionário seguir trabalhando por um tempo com dor, vai chegar um momento que o corpo já não vai responder, não vai ter força nem habilidade nas mãos para seguir trabalhando”, alerta.

Trabalhadores ouvidos pela Repórter Brasil relatam dificuldade em obter ajuda nos departamentos médicos das empresas. “Eu ia no médico [da empresa], tomava injeção e voltava a trabalhar”, complementa Teresa*, a trabalhadora cujo relato abriu esta reportagem. Ela contava com o apoio das colegas para dar conta do serviço: “eu falava para a minha amiga que estava doente, aí ela trabalhava por mim e por ela”. A Marfrig contesta: “é inverídica a informação de que a equipe médica aplica injeções nos colaboradores. A empresa nem sequer conta com esse tipo de recurso em suas instalações”.

Adoecidos, muitos trabalhadores buscam atendimento pela rede pública – mas novamente há temor de notificar órgãos governamentais do problema: “Como vai reclamar [de dor] se o INSS demora três meses [para liberar o recurso]?”, pondera Antônio, funcionário da Marfrig em Ji-Paraná (RO) que lesionou o joelho e precisou pedir apoio ao sindicato para garantir a cesta básica: “Foi uma burocracia louca [para afastar]”.

Também há quem busque ajuda na rede privada de saúde. Mas, neste caso, alguns esbarram nos custos dos tratamentos, impraticáveis para os salários recebidos. “Parecia uma faca cravada nas costas, eu não conseguia andar”, conta Rodrigo*, empregado da Marfrig em Bataguassu que só descobriu que tinha uma hérnia na coluna em uma consulta particular – mas teve que parar a fisioterapia “porque era muito caro e não teve melhora”.

“Segura a faca com dor mesmo, não tem outra saída”, resume Teresa, da Marfrig em Bataguassu.

Apresentada aos relatos, a Marfrig informa que conta com uma equipe profissional especializada que “trata todas as queixas e sintomatologias apresentadas por colaboradores”. A JBS também salienta que suas unidades “contam com equipe de saúde multidisciplinar de prontidão, treinada para avaliar, apoiar e encaminhar os colaboradores que registrem qualquer problema médico”.

*Nomes fictícios para preservar a identidade dos trabalhadores

Fonte: Repórter Brasil
Texto: Isabel Harari
Data original da publicação: 01/08/2024

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