É indiscutível a importância dos sindicatos. A sua atuação está coberta pelo manto da fundamentalidade e petreicidade (artigo 60, § 4º, inciso IV, a Constituição da República), na forma do artigo 8º, inciso III, constitucional, que atribui aos sindicatos a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas.
Conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal no Tema nº 82 da Repercussão Geral, à diferença das associações civis comuns, jungidas ao artigo 5º, inciso XXI, da Constituição da República, os sindicatos — associações civis de natureza especial — têm ampla legitimidade, inclusive para atuar em substituição processual, em nome próprio, por direito alheio, sem necessidade de qualquer autorização individual.
Ações coletivas
Vejo frequentemente ações civis coletivas, propostas por sindicatos da categoria profissional, em nome próprio, pedindo direitos individuais homogêneos de trabalhadores em razão da exposição a agentes insalubres.
Tais entidades narram, nas suas petições iniciais, situações gravíssimas de exposição a atividades ou operações insalubres sem qualquer tipo de proteção, prevenção ou precaução por parte das empresas.
Mas, curiosamente, o que pedem, liminarmente? O pagamento do adicional de insalubridade, apenas e tão somente.
Monetização da saúde
Embora muitos defendam, certo é que inexiste qualquer tipo de monetização da saúde do trabalhador na Constituição da República.
A par do artigo 7º, inciso XXIII, da Constituição da República prever o pagamento do adicional de insalubridade, trata-se de um inciso — portanto, subordinado ao caput (vide Lei Complementar nº 95/1998 quanto às estruturas normativas).
E o caput do artigo 7º da Constituição da consagra a norma-princípio da vedação ao retrocesso socioambiental e prevê uma cláusula de avanço social, de progressividade, tal qual a maioria dos diplomas internacionais de direitos humanos (Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Convenção Americana de Direitos Humanos etc.).
Ainda, conforme inciso XXII do artigo 7º da Constituição da República — imediatamente anterior ao inciso que prevê o pagamento do adicional de insalubridade —, existe a obrigação constitucional de redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, o que consagra, em si, as normas-princípios do risco mínimo regressivo e a retenção do risco na fonte.
Tutela provisória
Portanto, torna-se clara a incompatibilidade da concessão de tutela provisória para “pagamento imediato” de adicional de insalubridade, por dois fundamentos autônomos.
Primeiro, porque na forma da Norma Regulamentadora nº 15, a constatação de exposição em atividades ou operação insalubres se dá pela aferição qualitativa do agente insalubre, constatação da superação dos limites de tolerância ou comprovação por laudo de inspeção do local de trabalho (itens 15.1.1, 15.1.3 e 15.1.4).
E, em todas as hipóteses, no caso de processo judicial perante a Justiça do Trabalho, exige-se perícia técnica (artigo 195 da Consolidação das Leis do Trabalho), o que afasta o reconhecimento, em juízo precário, de elementos que evidenciem a probabilidade do direito (artigo 300, caput, do Código de Processo Civil).
Perigo da demora
Em segundo lugar — e isto devia soar óbvio —, o perigo da demora deve estar jungido à manutenção da higidez física, mental e social dos trabalhadores; se o sindicato pede apenas o pagamento de adicional, e o magistrado concede a tutela provisória, em vias transversas concede uma espécie de “autorização judicial” para a exposição a atividades ou operações insalubres sem nenhuma proteção, prevenção ou precaução pela empresa (artigos 141 e 492 do Código de Processo Civil).
Porém — e nunca olvidemos —, conforme expressa previsão no item 1.4.1, alínea “g”, item I, da Norma Regulamentadora nº 1 — que trata do Gerenciamento dos Riscos Ocupacionais —, a ordem prioritária, quanto às medidas de prevenção, é quanto à efetiva eliminação dos fatores de risco, e, se não for possível, adota-se a minimização e controle dos fatores de risco, respectivamente: (a) com a adoção de medidas de proteção coletiva ou (b) medidas administrativas ou de organização do trabalho ou (c) pela proteção individual.
Desimportância
Há muito se fala em mudança de paradigma. E ela é mesmo necessária. Talvez urgente. Yuval Harari cirurgicamente pôs em questão: o século passado foi marcado pela desigualdade; este, pela desimportância. O ser humano perdeu o seu valor humano intrínseco.
é doutor em Direito pela UFPA (Universidade Federal do Pará), mestre em Direitos Fundamentais pela Unama (PA), especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Ucam (RJ) e em Gestão de Serviços Públicos pela Unama (PA).
A proteção da boa-fé é um princípio constitucional e deve prevalecer quando em conflito com norma jurídica que dispõe sobre os benefícios da Previdência Social.
Esse foi o entendimento adotado pelo juiz Antônio Lúcio Túlio de Oliveira Barbosa, da Vara Federal com JEF Adjunto de Teófilo Otoni (MG), para dar provimento a uma ação declaratória de nulidade de descontos sobre benefício previdenciário.
No caso concreto, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) cobrava R$ 83 mil de um idoso, com a alegação de que ele havia recebido benefício de prestação continuada (BPC) indevidamente entre 2006 e 2015.
Por seu lado, o autor da ação alegou que, após alcançar os requisitos legais, obteve administrativamente o benefício. Contudo, depois de uma reavaliação, o INSS cancelou o benefício por entender que a concessão foi indevida, determinando a devolução dos valores recebidos.
Desconto de 30%
Em seguida, o idoso passou a sofrer um desconto de 30% no seu benefício. Ao Poder Judiciário, ele pediu a declaração de nulidade da cobrança, com o argumento que os valores foram recebidos de boa-fé.
Ao analisar o caso, o julgador concluiu que a simples alegação do INSS de que o demandante omitiu informações propositalmente deve ser afastada, já que a própria autarquia, posteriormente, concedeu a ele novo benefício assistencial.
Diante disso, o juiz concedeu tutela de urgência para determinar que o INSS se abstenha de deduzir do benefício previdenciário os valores que estão sendo descontados a título de ressarcimento ao erário.
O autor foi representado pelo advogado Olavo Ferreira dos Santos Filho.
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Processo 6001484-34.2023.4.06.3816
A data de 4 de março é marcada por ser o “Dia Mundial da Obesidade”, de sorte que tal referência tem por finalidade aumentar a conscientização da população sobre essa doença crônica que afeta pessoas de todas as idades. Nesse sentido, o Brasil tem implementado algumas medidas visando reduzi-la entre os jovens, assim como para deter o seu crescimento entre adultos [1].
Dados estatísticos
De acordo com a projeção do Atlas Mundial da Obesidade 2024, lançado pela Federação Mundial da Obesidade, o Brasil pode ter até 50% das crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos com obesidade ou sobrepeso em 2035. Ainda, segundo tais informações, quase 3,3 bilhões de adultos serão afetados pela obesidade até esta data [2].
Dito isso, e não obstante os cuidados necessários e a preocupação em âmbito mundial com esse cenário de saúde, nos últimos tempos tem se observada uma prática discriminatória no ambiente laboral denominada de “gordofobia”.
Muitas vezes, por falta de orientação adequada e padrões culturais enraizados na sociedade brasileira, essa conduta aparece quase que frequentemente no ambiente de trabalho por meio de “brincadeiras”.
Segundo um levantamento feito pela Data Lawyer, revelou-se que o número de casos sobre denúncias de “gordofobia” aumentou em 314% entre os anos de 2019 e 2022 [3]. Aliás, no período da análise, entre 2014 a fevereiro de 2023, foram identificados 721 processos judiciais trabalhistas com a alegação de discriminação contra pessoas reputadas como obesas.
De outro norte, em outro estudo feito pela lawtech Deep Legal, apontou-se que dos processos julgados em 1º grau, 37% foram considerados parcialmente procedentes; 5% procedentes; 14% improcedentes; 14% tiveram acordos entre as partes; 3% das ações foram extintas; e 27% ainda não receberam sentenças [4].
Spacca
A pesquisa concluiu também que os Estados da Federação com os maiores números de processos são os seguintes: São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
Por certo, em razão das mudanças e avanços frequentes envolvendo o meio ambiente do trabalho, o tema foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista aqui na ConJur [5], razão pela qual agradecemos o contato.
Lição de especialista
Mas, afinal, o que seria a discriminação por “gordofobia” no ambiente de trabalho e qual o entendimento jurisprudencial sobre o assunto?
A respeito da prática discriminatória, oportunos são os ensinamentos da Professora Cristina Paranhos Olmos [6]:
“Além da discriminação pelas razões já apontadas, mais comuns no contrato de emprego, há outros tipos de discriminação praticada no âmbito do pacto laboral.
É bastante comum que o empregado seja discriminado em razão de sua forma física, especialmente os que fogem do padrão estipulado de beleza, como os gordos, os muito magros, os mais altos, os muito baixos, os de cabelos com cortes extravagantes, os de cabelos pintados com cores incomuns (roxo, rosa, amarelo, verde, azul), entre outras condições físicas.
(…). Em suma, qualquer que seja o motivo da discriminação praticada pelo empregador, se não guarda relação justificável com a atividade laboral desenvolvida no contrato de emprego, é discriminação ilícita, que macula as relações sociais e, por isso, deve ser coibida.”
Legislação no Brasil e no mundo
Do ponto de vista normativo no Brasil, a Constituição Federal, em seu artigo 3º, inciso IV, estabelece dentre os objetivos fundamentais a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou quaisquer outras formas de discriminação. [7]
Já do ponto de vista internacional, a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem regulamentação específica em torno da Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação [8].
Posicionamento jurisprudencial
Sob esta perspectiva, recentemente, a Justiça do Trabalho condenou uma empresa ao pagamento de indenização por danos morais em razão do trabalhador ter sido alvo de gordofobia no ambiente de trabalho, haja vista ter sido submetido a situação humilhante e vexatória [9].
Spacca
Segundo os relatos, a empresa não disponibilizava uniforme em numeração adequada ao trabalhador, o que propiciava comentários do gerente e “brincadeiras” na frente dos colegas de trabalho, causando constrangimento.
Ao decidir o caso, a magistrada ponderou que “a aschimofobia é uma forma de discriminação estética, que deve ser repelida pela sociedade, da qual a gordofobia constitui uma das espécies”.
Noutro giro, o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo da 2ª Região manteve decisão que condenou certa empresa ao pagamento de indenização no valor de 30 mil reais, por danos morais, para uma ex-empregada que foi vítima de gordofobia [10].
Segundo o relato da trabalhadora, havia críticas do gerente da empresa em relação a sua aparência e que seria inadequada para a atividade por ser “velha, gorda e feia”. No caso em particular, a trabalhadora comprovou que os fatos relatados inclusive aconteciam na frente de outros empregados.
À vista disso, o desembargador relator entendeu que ficou comprovada a prática de “tratamento ofensivo, constrangedor, vexatório e humilhante”.[11], destacando ainda, a gravidade da conduta.
Já o Tribunal Superior do Trabalho igualmente foi provocado a emitir juízo de valor sobre o assunto, de modo que, no caso julgado, não só houve a confirmação da condenação de indenização por danos morais para uma trabalhadora que foi vítima de “gordofobia”, como também a Corte Superior majorou o valor da indenização [12]. Em seu voto, a Ministra Relatora destacou:
“A empresa não zelou pelo ambiente de trabalho de maneira mínima, com o fim de impedir que sua preposta tratasse a reclamante de maneira reiteradamente abusiva, gerando, nas palavras da própria Corte Regional, indescritível constrangimento, vergonha e humilhação.
(…). A reclamante era constantemente chamada de “gorda”, “burra”, “incompetente” e “irresponsável”, de maneira agressiva, aos gritos, na frente dos demais funcionários. Em tese seria possível enquadrar a conduta da preposta até mesmo na hipótese de discriminação (tratamento abusivo em razão de condição pessoal da reclamante — gordofobia). Dada a gravidade dos fatos, a reiteração ostensiva durante todo o contrato de trabalho, e o grau de culpa gravíssimo da empresa, deve ser majorado o valor arbitrado a título de indenização por danos morais.”
Portanto, verifica-se que a prática discriminatória, para além de ser inadmissível em tempos atuais de boas práticas empresariais (ESG), pode trazer condutas severas àqueles que a praticarem, de modo que se deve combater no ambiente laboral todo e qualquer tipo de preconceito.
Medidas de combate
É preciso que sejam adotadas políticas e estratégias para a erradicação de posturas preconceituosas no ambiente de trabalho, que deve ser sobretudo inclusivo e respeitoso. Aliás, não é demais relembrar que o preconceito não só traz danos ao convívio social das pessoas, como também afeta a saúde mental dos trabalhadores, e, por conseguinte, desencadeiam outros sintomas, tais como a ansiedade e depressão, por exemplo.
Em arremate, é fundamental que sejam promovidas e incentivadas atividades de educação e de conscientização nas companhias, assim como a adoção de políticas internas empresariais visando sempre coibir os atos preconceituosos, acabando-se, ao final, com esse estigma cultural, até porque o empregador é responsável por atos praticados por seus empregados e prepostos perante terceiros, de forma que, identificada a prática discriminatória, poderá a empresa ser responsabilizada [13].
[5] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela Coluna Prática Trabalhista da ConJur, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.
[6] Discriminação na relação de emprego e proteção contra a dispensa discriminatória – São Paulo: LTr, 2008. Página 102/103 e 107.
[7] Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…). IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
[13] CC, Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.
é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista, sócio fundador de Calcini Advogados, com atuação estratégica e especializada nos tribunais (TRTs, TST e STF), docente da pós-graduação em Direito do Trabalho do Insper, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do comitê técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.
é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.
“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” (Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano em Las Palabras Andantes?)
A escravidão ainda está entre nós.
Ainda que seja negado ou desconhecido por parte da população, pela mídia e pelo Estado, o trabalho escravo existe.
O Brasil foi o último país americano a abolir a escravidão; abolida apenas no plano formal, uma vez que no plano material o Estado não implementou políticas públicas de inserção dos ex-escravizados na sociedade.
A falta de políticas de reparação fez com que o impacto da trajetória do escravismo no Brasil se prolongue até os dias atuais, havendo disparidades visíveis entre brancos, negros, pardos e seus descendentes, valendo citar o acesso à educação, à moradia — passando pelo processo de gentrificação; o que impõe que os “herdeiros” da escravatura sejam novamente lançados no mercado de trabalho escravo, em um looping cruel e injusto.
Entre 1995 e 2022, mais de 610 mil pessoas foram resgatadas de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil.
No primeiro trimestre de 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou o número recorde de 918 trabalhadores escravizados, uma alta de 124% em relação ao mesmo período de 2022.
No Brasil, as atividades que mais fazem uso do trabalho escravo são a produção de carvão vegetal, a criação de bovinos para corte, serviços domésticos, cultivos da maçã, do café e da soja.
Excetuando os serviços domésticos, todas essas atividades fornecem commodities para os mercados nacional e internacional, não sendo difícil concluir que se tratam de bens de alta relevância para a economia global.
Mas o trabalho escravo não ocorre apenas nessas áreas.
Em 2023, no Rio Grande do Sul, 293 pessoas foram resgatadas no mês de março, na safra da uva, em Bento Gonçalves, e na cultura do arroz, em Uruguaiana.
No mesmo ano, foram resgatados outros escravizados nos estados de Minas Gerais, Bahia, Piauí e Goiás, que atuavam nas áreas da construção civil, do extrativismo mineral, na indústria do entretenimento sexual, além de outras.
No final de janeiro de 2024, nova operação resgatou, em São Marcos (RS), 22 argentinos que trabalhavam na colheita da uva em uma propriedade rural, dentre eles, menores de idade e maiores de 60 anos.
Na segunda semana de fevereiro deste ano, novo resgate em Farroupilha (RS): cinco trabalhadores, dentre eles três adolescentes.
Diante disso, uma reflexão se impõe: o orgulho nacional pelo fato de o Brasil figurar como a nona economia mundial faz sentido se isso decorre, em grande parte, pela escravização de seres humanos? De que serve ser um país economicamente forte se uma parte dos brasileiros, valor maior de uma nação, está nessa condição?
Conceito e causas do trabalho escravo contemporâneo
Primeiro temos que responder a outra indagação: mas, afinal, o que é exatamente o trabalho escravo moderno?
O artigo 149 do Código Penal, alterado pela Lei nº 10.803/2003, e que representa importante avanço na legislação, traz o conceito de trabalho escravo contemporâneo: diversamente do que ocorria, não é apenas a privação de liberdade do trabalhador que configura trabalho escravo, mas todo e qualquer trabalho degradante ou exaustivo, ou, ainda, que importe em intimidação e restrição da liberdade de locomoção do trabalhador.
Tal previsão legal — aliada à circunstância de ser o Brasil signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), das Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), além de ter ratificado diversos tratados sobre o tema, todos instrumentos que condenam o trabalho escravo — não autoriza a ilação de que o cometimento desse crime esteja diminuindo em nosso país.
Ao contrário, os números apresentados pelas instituições responsáveis pelo combate ao trabalho escravo no Brasil revelam que esse crime, lamentavelmente, só recrudesce; o que inclusive importa em violação à sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por descumprir os direitos previstos no Pacto de San Jose da Costa Rica, dentre eles o direito de não ser submetido à escravidão.
“Vale a pena arriscar”
Tudo isso aliado ao cálculo dos empresários que se utilizam do trabalho escravo de que “vale a pena arriscar”.
O modelo econômico em que vivemos impõe a manutenção desse quadro: pessoas físicas e jurídicas, em busca da obtenção de maiores lucros, têm no trabalho escravo sua opção mais lucrativa, seguindo a cartilha dos colonizadores que enriqueceram e desenvolveram seus países a partir do século 16.
Diferentemente dos colonizadores, esses empregadores não se manifestam publicamente a favor do trabalho escravo; mas nas entranhas do poder o lobby pela permanência desse sistema é de orgulhar o feitor do século 17.
Tanto isso é verdade que um dos mecanismos legislativos para o combate ao trabalho escravo, a chamada “lista suja” (cadastro público de empregadores que submeteram trabalhadores ao trabalho escravo e que impede que eles tenham acesso a crédito público) foi questionada judicialmente perante o STF por diversas entidades empresariais.
Felizmente, o STF decidiu pela constitucionalidade do referido cadastro.
O combate à prática
Mas, se por um lado, temos o crescimento do trabalho escravo no Brasil, por outro, a atuação das instituições responsáveis pelo seu combate tem evoluído e se aperfeiçoado.
Mutirões de combate, grupos móveis de fiscalização, atuação conjunta das esferas administrativa e judicial, política de colaboração entre os órgãos, capacitação de agentes, condenações na Justiça do Trabalho e na Justiça Federal, expropriação de propriedades rurais e urbanas flagradas com trabalho escravo, tudo têm contribuído para dar visibilidade a essa triste realidade e combatê-la.
Contudo, sabemos que tão-somente o combate ao trabalho escravo, assim como em outros tipos de crimes, não é suficiente para exterminá-lo, uma vez que constitui o ideal de custo zero do próprio sistema capitalista.
A importância da responsabilização
Somente quando aquele empresário que arregimenta trabalhadores escravizados tiver desvantagem financeira, em razão de severas punições ou pela concorrência no emprego de novas tecnologias, é que podemos vislumbrar um cenário de redução do trabalho escravo ou em condições análogas à escravidão.
Formas supletivas de interrupção da engrenagem do trabalho escravo também passam por uma reforma agrária efetiva e pela criação de incentivos ao desenvolvimento de todas as regiões do Brasil, contribuindo para que as pessoas lá residentes permaneçam em seus locais de origem.
Passa, ainda, pela responsabilização dos compradores externos dos produtos que têm mão de obra escrava na sua produção. Estamos falando de países que têm discursos progressistas em seu solo, mas que fecham os olhos para o sofrimento de trabalhadores estrangeiros escravizados, tudo no escopo de manter suas economias funcionando e alto o índice de desenvolvimento humano de seus cidadãos.
Renda básica como instrumento para eliminação do trabalho escravo
Há outra forma, contudo, de reduzir o aliciamento de trabalhadores escravos de forma mais rápida e com resultados mais efetivos.
A pobreza e as desigualdades sociais são o gatilho de convencimento do trabalhador a aceitar postos de trabalho degradantes ou em regime de escravidão. Quem não tem nada, não tem escolha. Os aliciadores do trabalho escravo sabem usar muito bem esse desespero como isca para essas pessoas.
Mas, e se pudéssemos retirar da equação a oferta de mão de obra a ser explorada?
Tal realidade seria possível por intermédio da instituição da chamada “Renda Básica Universal” (RBU).
Trata-se de um valor pago pelo governo a todo e qualquer cidadão sem regras de elegibilidade, de caráter não contributivo, independentemente de idade, gênero, renda ou condicionantes.
A proposta é assegurar a todos uma vida desprovida de privações materiais, e, de quebra, garantir que os cidadãos, dispondo de uma renda mínima de sobrevivência, ostentem um maior poder de barganha em relação a ofertas de trabalho, não se submetendo a funções degradantes, nocivas à saúde, exploratórias e em condições análogas à escravidão — a que o trabalhador somente recorre quando se vê premido pela necessidade de sua sobrevivência e de sua família.
Outra consequência da RBU seria aumentar o valor da força de trabalho, colocando na equação valores antes não existentes quando do uso do trabalho escravo, forçando o uso de máquinas em trabalhos degradantes, como é o caso da coleta de lixo, operada por trabalhadores no Brasil, e por máquinas em países ricos do norte global, por exemplo.
Diversamente do que ocorre com os programas de transferência de renda tradicionais, a RBU não tem por foco a população mais pobre, senão toda a população, desde o nascimento até a morte, alcançando a integralidade da família e não exigindo qualquer condição para a aquisição do benefício (como ocorre com o “bolsa família”, por exemplo).
A RBU tem por fundamento principal o enfrentamento da pobreza, da desigualdade social e representa uma possibilidade de transformação estrutural da sociedade.
Mais do que uma política humanitária, a renda mínima é uma ferramenta primordial para o cumprimento de uma obrigação imperativa do Estado, uma vez que a promoção de assistir à população economicamente desfavorecida é uma determinação da Constituição Federal de 1988.
Histórico, impactos e fontes de financiamento da RBU
A exigibilidade de um programa de renda básica não é recente. Desde o século 16 estudiosos das mais diversas áreas, como economistas, filósofos, sociólogos, além de revolucionários e pacifistas, tais quais Thomas More, Thomas Paine, Thomas Spence, Bertrand Russel, John Maynard Keynes, Milton Friedman, James Tobin, John Kenneth Galbraith, Martin Luther King e Philippe Van Parijs, têm defendido a criação de um benefício básico a todos os cidadãos.
No Brasil, a ideia foi capitaneada por Eduardo Suplicy, ao argumento de se tratar de um mecanismo de empoderamento de minorias. Foi dele o projeto que se converteu na Lei nº 10.835, de 08/01/2004, que instituiu a “renda básica de cidadania”. A lei não é autoaplicável, depende de regulamentação do poder Executivo — o que não ocorreu até os dias atuais.
E para os que apregoam que a concessão da renda básica aniquilaria o mercado de trabalho, as pesquisas e a experiência evidenciam que, ao contrário, pode contribuir para se atingir o pleno emprego.
Com a RBU, a procura por bens e serviços de primeira necessidade provocaria o crescimento da economia, e, com isso, da própria empregabilidade.
A equação deve ser lida de forma inversa ao que pregam alguns economistas: não é o mercado que vai regular a RBU, mas ela é que vai regular o mercado.
Opositores do programa argumentam que seria uma medida paternalista e oportunista capitaneada por grupos de esquerda críticos do sistema capitalista.
Tais conclusões desprezam uma premissa axiológica básica: não existe igualdade social material no Brasil. Sabemos que em uma sociedade poucos são os indivíduos que prosperam sem um ponto de partida. Esses são a exceção, uma vez que prosperidade, em regra, se acumula de forma geracional.
Como bem pontuou Martin Luther King, “(…) é óbvio que se um homem entra na linha de partida de uma corrida trezentos anos depois de outro, o primeiro teria de realizar uma façanha incrível a fim de alcançá-lo”.
A maioria dos cidadãos brasileiros não é “herdeiro”. Assim, seu ponto de partida é o nada. Com a renda mínima garantida, esse ponto de partida passa a ter outra feição: concede ao indivíduo opções.
A ideia da renda mínima universal não está atrelada, necessariamente, a uma ou outra corrente político-ideológica, mas uma ideia dos que se preocupam com a dignidade da pessoa humana. Importante notar que os estudos acerca do tema foram feitos por pesquisadores de diferentes matizes teóricas.
Diversas são as propostas de financiamento da renda básica universal.
Eduardo Suplicy propõe que o programa seja financiado pelo que chama de “Fundo Brasil de Cidadania”.
A RBU poderia também ser provisionada mediante um sistema vinculado à produção econômica do país, como destinar 10% do PIB para seu financiamento ou com a criação do imposto de renda negativo. Isso sem falar no repasse dos valores oriundos da extinção de todos os outros programas de assistência social.
As experiências exitosas de implantação da RBU em outros países e até no Brasil autorizam a conclusão de que é plenamente defensável e factível a ideia de que uma fração da receita proveniente da exploração de nossos bens comuns globais seja redistribuída para financiar a renda básica, como ocorre no Alasca e em Maricá, cujos programas são financiados pelos royalties do petróleo.
A questão orçamentária para a efetivação da RBU não é sobre escassez de dinheiro, mas sim de vontade política e de pressão da população sobre onde empregar o dinheiro do nosso país.
Muito se fala sobre o financiamento de programas sociais, antes mesmo que eles sejam efetivados. É o caso da RBU. Mas pouco se discute quando o dinheiro público é empregado para suportar parcelas privilegiadas da sociedade.
Dá-se como natural o emprego de parcelas significativas da riqueza brasileira para alguns pequenos grupos sob forma de isenções de impostos sobre a exportação de commodities, grandes fortunas, a atividade de igrejas, IPVA para aeronaves e embarcações, rações animais e defensivos agrícolas, o estabelecimentos de multinacionais no país; cobrança de impostos ínfimos sobre as grandes propriedades rurais; gastos com as Forças Armadas, seja no financiamentos de projetos de construção de submarinos e outros artefatos de necessidade duvidosas, e também na manutenção de pensões de viúvas e filhas solteiras de militares; subsídios para a indústria; renúncia fiscal para empresas aéreas; orçamentos públicos bilionários para partidos políticos, dentre outras.
Da teoria à prática
Nessa linha, temos que a implantação de uma política de renda básica universal depende, mais do que de debates legislativos e contabilidade em gabinetes, do interesse político e da luta popular.
Grupos com alta representatividade e com fortes lobbies têm cada um sua “RBU” própria. É a pressão da sociedade organizada que vai determinar a urgência da implantação do projeto de RBU e seu orçamento.
Não estamos falando sobre vantagens econômicas para grupos específicos. Estamos falando de dignidade humana universal.
Segundo a Organização das Nações Unidas, “os direitos humanos são direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição”.
Esses direitos passam necessariamente pelo estabelecimento de uma sociedade que confira condições dignas de sobrevivência a todos os seus cidadãos.
Assim, a RBU surge como uma alternativa para o enfrentamento da pobreza e da supressão das formas de perpetuação da miséria, de emancipação e empoderamento do indivíduo e, por conseguinte, de eliminação de toda e qualquer forma de trabalho degradante e escravo.
Estudos mostram que o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) reduziram a pobreza em nosso país. Contudo, a redução da pobreza não veio acompanhada de diminuição da desigualdade social. É aí que a RBU pode fazer a diferença: mais do que reduzir a pobreza, tem potencial para equilibrar as desigualdades sociais.
Em um mundo em que a abundância concentra-se nas mãos de poucos, a correção dessa desigualdade passa, necessariamente, pela redistribuição da riqueza.
Por fim, cabe registrar que de nada adianta a lei da RBU compor o ordenamento jurídico brasileiro se suas diretrizes ainda não se tornaram realidade concreta.
Uma lei não cria uma realidade, apenas possibilita que as condições nela prevista deixem se ser meras previsões e se tornem reais.
E para que a mencionada lei se torne efetiva, há que se lutar por ela. Discutir sobre ela. Levá-la ao conhecimento de todos. Pressionar as autoridades.
Fazer o que Franklin Roosevelt sugeriu aos jovens que lhe apresentaram uma proposta para acabar com o desemprego fizessem: “muito bem, vocês me convenceram. Agora saiam e tratem de fazer que a sociedade exerça pressão sobre mim”.
Em 2023, iniciou-se uma ferrenha discussão entre o Poder Executivo, o Congresso e os 17 setores da economia beneficiados pela desoneração da folha de pagamentos, medida que vigorava desde 2011 (Lei Nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011), a respeito da sua prorrogação ou não.
Desde 2011, com o intuito de incentivar a contratação de trabalhadores, facultou-se a determinados setores da economia optar entre o recolhimento da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento ou sobre a receita bruta.
De lá pra cá, o Congresso aprovou a prorrogação do benefício até 2027, o presidente da República vetou a prorrogação, o Legislativo derrubou o veto, o presidente da República reinstituiu a cobrança por meio da Medida Provisória nº 1.202, de 28 de dezembro de 2023, que causou indignação no Poder Legislativo e acabou sendo revogada através da recente MP nº 1.208, de 28 de fevereiro de 2024.
Segundo o governo federal, a proposta de reoneração da folha de pagamento será submetida ao Congresso Nacional através de projeto de lei.
Entretanto, trata-se de discussão superficial acerca do custeio da Previdência Social e das entidades do chamado Sistema S, que compreende nove entidades com destaque para o Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial); Sesc (Serviço Social do Comércio), Sesi (Serviço Social da Indústria); e Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio).
Contribuições revistas
As contribuições previdenciárias, ao seguro de acidente de trabalho, antigo SAT, hoje RAT, e ao Sistema S, precisam ser revistas tendo em vista a confusa legislação em vigor que disciplina as cobranças.
Conforme resume trecho do voto proferido pelo desembargador federal Carlos Muta, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, como relator no julgamento de apelação [1] em que se discute a constitucionalidade da cobrança das contribuições previdenciárias, RAT e ao Sistema S sobre os valores pagos pela empresa aos seus empregados a título de salário-paternidade: “… Antes do exame específico do caso, considerações gerais sobre a tributação previdenciária são pertinentes para efeito de orientar a solução da espécie.”
“Neste sentido, cabe destacar, primeiramente, que na redação vigente, após EC 20/1998, é assim prevista a contribuição patronal em discussão: “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício.”
“Evidente o aprimoramento da base constitucional do tributo em relação aos sujeitos passivos e à materialidade da incidência, o que, por consequência, afetou os parâmetros legais da tributação, passando a constar da Lei 8.212/1991 que: “Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de: I – vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa.”
“Por sua vez, a contribuição previdenciária por riscos ambientais do trabalho (RAT, antiga SAT) decorre do artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, tendo assento no artigo 22, II, da Lei 8.212/1991 (“para o financiamento do benefício previsto nos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, no decorrer do mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos”); ao passo que as devidas a terceiros tem sede no artigo 149 da Constituição Federal e previsão em diversas leis específicas.”
“Ainda que a fundamentação constitucional e legal seja própria de cada espécie, é inequívoco que o tratamento dado a tais contribuições, pela identidade de base de cálculo, não discrepa, considerada a natureza remuneratória, ou não, de cada valor pago, devido ou creditado pelo empregador (AgInt no REsp 1.602.619).”
Entretanto, não há clareza na legislação sobre o que deve ser considerado verba remuneratória a ensejar a incidência das contribuições previdenciárias e a terceiros ou verba indenizatória e, portanto, não sujeita à cobrança, tem ensejado inúmeras discussões na esfera judicial.
E como para a Receita Federal, atual responsável pela fiscalização e cobrança das contribuições previdenciárias e a terceiros, praticamente todos os valores pagos pelas empresas aos empregados enquadram-se no conceito de remuneração, o Poder Judiciário tem sido frequentemente provocado para definir se determinada verba tem natureza remuneratória ou não e, consequentemente, se deve compor ou não a base de cálculo das contribuições previdenciárias e das contribuições ao Sistema S, com oscilação da jurisprudência e consequentemente formação de uma expressiva contingência.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 565.160/SC, em sede de repercussão geral, no qual se discutia a incidência das contribuições previdenciárias sobre o adicional de periculosidade, adicional de insalubridade, adicional noturno, gorjeta, ajuda de custo, diária, comissões, o Tema 20, em que se pretendeu definir o “Alcance da expressão “folha de salários”, para fins de instituição de contribuição social sobre o total das remunerações”, fixou a seguinte tese:
Tema 20 – “A contribuição social a cargo do empregador incide sobre ganhos habituais do empregado, quer anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional nº 20/1998.”
Ao julgar a incidência sobre o salário-maternidade também em sede de repercussão geral (Recurso Extraordinário n. 576.967 – Tema 72), afirmou que:
“… Por não se tratar de contraprestação pelo trabalho ou de retribuição em razão do contrato de trabalho, o salário-maternidade não se amolda ao conceito de folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício. Como consequência, não pode compor a base de cálculo da contribuição previdenciária a cargo do empregador, não encontrando fundamento no art. 195, I, a, da Constituição. Qualquer incidência não prevista no referido dispositivo constitucional configura fonte de custeio alternativa, devendo estar prevista em lei complementar (art. 195, §4º).”
Apesar disso, o mesmo entendimento não tem sido aplicado pelos juízes e tribunais ao salário-paternidade, embora também não seja pago em contraprestação ao serviço prestado, uma vez que corresponde ao período em que o empregado se ausenta do serviço para auxiliar nos cuidados com o recém-nascido.
Riscos ambientais do trabalho
Vale destacar ainda a divergência de tratamento da legislação no que tange à cobrança da contribuição previdenciária por riscos ambientais do trabalho (RAT, antiga SAT) e às contribuições devidas ao Sistema S.
Quanto ao chamado RAT/SAT, após uma longa discussão na esfera judicial, objetivando que a alíquota fosse fixada de acordo com a atividade desenvolvida por cada estabelecimento, no lugar da atividade preponderante desenvolvida pela empresa, pacificou-se o entendimento, que foi incorporado à legislação em 2014, de que a alíquota deve ser fixada de forma individualizada de acordo com o grau de risco de cada estabelecimento da empresa.
O mesmo aconteceu com o FAP (Fator Acidentário de Prevenção), que varia de 0,5 a 2 pontos e é aplicado sobre a alíquota RAT/SAT e pode resultar na sua diminuição e/ou majoração. Para o cálculo do FAP, a princípio, também se levava em conta a atividade preponderante da empresa. Após generalizada contestação, houve a alteração da legislação para que, como não poderia deixar de ser, fosse considerada a atividade desenvolvida em cada estabelecimento.
No entanto, para as contribuições a terceiros, a legislação determina que seja considerada a atividade que representa o objeto social da empresa, declarada como principal no CNPJ. E, na hipótese de desenvolver mais de uma atividade, prevalecerá, para fins de classificação, a atividade preponderante, assim considerada a que representa a unidade de produto, para a qual convergem as demais em regime de conexão funcional, ou seja, a finalidade comum em função da qual duas ou mais atividades se interagem, sem descaracterizar sua natureza individual, a fim de realizar o objeto social da pessoa jurídica.
Diante de toda essa complexidade, do atual princípio constitucional da simplicidade tributária (artigo 145, §3º da Constituição), da atual mudança nas formas de prestação de serviços e contratação de mão de obra, da substituição das pessoas pelas máquinas e do envelhecimento populacional, há que ser repensado e revisto o custeio da previdência social e do Sistema S, de forma a recuperar e preservar o equilíbrio das contas públicas.
Em julgamento nesta quarta-feira (13/3), a 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade, condenou uma famosa rede de fast food de São Paulo ao pagamento de R$ 300 mil de indenização por dano moral coletivo, por vincular seus empregados a manifestação política contra o governo federal em 2016.
A relatora do recurso, ministra Maria Helena Mallmann, lembrou que o poder diretivo do empregador não abrange a imposição de convicções políticas.
A ação foi apresentada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Hoteis, Bares e Restaurantes e Similares de Águas de Lindóia e Região. Segundo a entidade, a rede Habib’s lançou a campanha “Fome de mudança” para incentivar a participação da população nos protestos de rua ocorridos em 13 de março de 2016, para pedir o impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Ainda conforme o sindicato, buscando adesão, o restaurante decorou suas lojas com motivos em verde e amarelo e com os dizeres “Quero meu país de volta” e disseminou a hashtag “todomundoseajudando”, além de anunciar a distribuição de adereços como fitas e cartazes aos clientes de suas lojas.
Sem partido
Em contestação, a empresa sustentou que a mobilização não tinha relação com siglas ou coligações partidárias nem conotação político-ideológica. O objetivo seria apenas apoiar “homens e mulheres que possam fazer a diferença e trazer as oportunidades de cada brasileiro”.
Segundo comunicado do próprio presidente da empresa, a ideia da manifestação em 13 de março não era “apoiar partido A ou B”, mas mostrar patriotismo e acreditar que somente os protestos poderiam acabar com a grave crise que o país atravessava. “Estarei lá como cidadão”, ressaltou.
Na visão da rede de fast food, as empresas só estariam abusando de suas liberdades se obrigassem seus empregados a usar emblemas partidários em broches ou uniformes ou a fazer panfletagem partidária junto aos clientes.
Conduta legítima
O juízo da 5ª Vara do Trabalho de Campinas (SP) e o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região julgaram a ação improcedente. Para o TRT, a conduta da empresa era “absolutamente legítima”.
Embora reconhecendo que houve manifestação de cunho político das empresas contra o governo federal e a corrupção, o TRT entendeu que não ficou comprovada nenhuma imposição de convicções políticas aos trabalhadores.
No recurso de revista, o sindicato alegou que o TRT não havia considerado que a alteração visual das lojas, por si só, vinculariam os trabalhadores à campanha de caráter político-ideológico, independentemente de outras ações. “É desnecessária a prova de coerção explícita ou do específico abalo moral individual de cada empregado”, argumentou.
Liberdade de orientação
Na avaliação da relatora do caso no TST, ministra Maria Helena Mallmann, a campanha ostensiva de cunho político-partidário no ambiente do trabalho caracteriza abuso do poder diretivo empresarial.
Segundo a ministra, o abuso não se deu por imposições do uso de broches ou cartazes, mas pela vinculação da ideologia político-partidária às empregadas e aos empregados do restaurante, que eram obrigados a participar da campanha. “O poder diretivo do empregador não contempla a imposição de convicções políticas”, afirmou.
Em seu voto, a ministra explica que a conduta da rede feriu preceitos da Constituição, de convenções da OIT e, no âmbito eleitoral, de resoluções do Tribunal Superior Eleitoral.
Mallmann lembrou que a interferência do empregador na liberdade de orientação política dos empregados contraria o Estado Democrático de Direito. “O pluralismo político visa garantir a inclusão dos diferentes grupos sociais no processo político nacional, garantindo aos cidadãos liberdade de convicção filosófica e política”, explicou.
Conforme a ministra, entender que o posicionamento da empresa foi “absoluto e legítimo” vai de encontro às políticas públicas voltadas à erradicação de práticas antidemocráticas.
O valor da condenação será destinado ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). A Alsaraiva ainda pode recorrer da decisão. Com informações da assessoria de imprensa do TST.