O ponto alto dos debates iniciais sobre a reforma da Previdência se deu em torno da tentativa de colocar em prática um novo regime de previdência, o da capitalização individual.
Deise Lilian Lima Martins
Essa tentativa, que representava uma porta aberta à privatização da Previdência, provocou muitas incertezas e foi bastante contestada, especialmente pelo fato de que experiências de capitalização individual na América Latina foram um fracasso, não geraram nenhum patamar de proteção social para as trabalhadoras e trabalhadores, além de resultar no gigante enriquecimento das administradoras dos recursos dos trabalhadores.
Mas por que trazer esse tema à tona se a capitalização não foi aprovada nesta reforma da Previdência? Vejamos.
No dia 12 de abril deste ano, em Santiago do Chile, foi realizado o “Seminário Internacional em Defesa da Seguridade Social”, contando com representantes do Brasil, Espanha, México, Colômbia, Argentina e Chile para debater seus modelos de seguridade social, públicos e privados. Esse encontro promoveu reflexões sobre a situação da América Latina no que se refere aos sistemas de seguridade social, no qual se insere o debate sobre a previdência ou sistema previsional, restando muito evidente a necessidade de pararmos de analisar a proteção social de forma endógena. No geral, raramente olhamos os nossos países vizinhos para ao menos saber o que se passa em relação à temática. Olhamos para alguns países europeus e sonhamos com um modelo de bem-estar social datado historicamente e que não existe mais; e, ainda assim, se apresenta como uma promessa na América Latina, inalcançável enquanto perdurar o modo de produção capitalista.
O estágio atual de desenvolvimento do capitalismo dispensa esse conteúdo jurídico protetivo, a ideologia burguesa já está tão consolidada, é dizer, todos os poros da vida são afetados pela subsunção do trabalho ao capital (CORREIA, 2021), que os avanços protetivos no conteúdo normativo deixaram de ser uma necessidade para o capital, enquanto garantia de sua reprodução e de arrefecimento das lutas sociais. Muito pelo contrário, a redução dessas políticas está na ordem do dia e a capitalização, ou seja, as formas de privatização dos sistemas de seguridade social não param de avançar, mesmo diante da agudização das consequências nefastas para a classe trabalhadora nos países que possuem a capitalização individual.
Os modelos privados avançam e se tornam grandes monstros financeiros para os governos. Monstros porque a rentabilidade para o capital financeiro por meio das administradoras privadas dos fundos faz com que estas se edifiquem como potências que detêm nas mãos grande parcela da riqueza produzida pela classe trabalhadora no país.
Entre os aspectos debatidos no Seminário, Luis Mesina, professor, sindicalista e porta-voz da Coordinadora NO+AFP, questionou o porquê de defenderem no Chile a seguridade social, já que ela não existe no país. Segundo ele, essa defesa é forte, pois um dia já tiveram um modelo social articulador da justiça social, relembrando os avanços obtidos no governo de Salvador Allende. O que se vê é que a organização da classe trabalhadora no Chile contemporâneo de Allende era tão grande e forte que a ofensiva também no campo da proteção social foi violenta e avassaladora com a adoção do sistema de capitalização juntamente com as administradoras de fundos de pensão, as AFPs.
Saul Escobar, professor e presidente do Conselho Diretivo do Instituto de Estudos Obreiros Rafael Galván, evidenciou que no México o governo gasta cada vez mais com as pensões após a privatização, pois diante da ineficiência do sistema capitalizado, o Estado necessita arcar com os custos das pensões não contributivas, que acabam sendo a sustentabilidade das famílias, além de cobrir o déficit de sistemas não privatizados, como é o exemplo das forças armadas que têm um sistema específico, não privado. Ou seja, o gasto com um sistema privado é enorme quando comparado com um sistema público robusto.
Já Camilo Santos, advogado e representante do Sindicato Único Nacional de Trabajadores del Sector Financiero y Administradoras de Pensiones da Colômbia, destacou que existe uma “propaganda” promovida por parte dos defensores do sistema privado, assinalando que as pessoas não conseguem benefícios no âmbito das administradoras públicas, porém, os dados mostram que são as administradoras privadas que inviabilizam a concessão da maior parte dos benefícios. No caso da Colômbia chama a atenção esse dado: no regime de administração pública, há 6,4 milhões de pessoas filiadas, com 2,3 milhões de cotizantes, sendo 1,2 milhão de pensionados; já no regime administrado pela iniciativa privada, são mais de 14 milhões de afiliados, cerca de 6 milhões de cotizantes e pouco mais de 121 mil pensionados. Isso evidencia que, onde a iniciativa privada está totalmente, a imensa maioria dos valores dos fundos não estão sendo revertidos para as trabalhadoras e trabalhadores.
Em nenhum cenário as experiências com sistemas privados de seguridade social ofertaram amparo minimamente protetivo para a classe trabalhadora, muito pelo contrário, por onde passam deixam as consequências da miséria. Essa é a lógica intrínseca das administradoras privadas, pois expressa de forma cristalina que o mercado comanda todo o processo.
A capitalização é um monstro para os governos dos países que já a têm, pois o controle da riqueza diretamente pelas empresas privadas é tão grande que há uma espécie de rendição ao sistema financeiro, de modo que enfrentar esse poderio econômico representa risco político que nenhum governante está disposto a correr, seja qual for o espectro político. A capitalização é, igualmente, um monstro nos países em que ela ainda não foi adotada, ou timidamente aplicada, pois está sempre assombrando os sistemas públicos.
No caso do Brasil, o regime de capitalização, previsto no texto inicial da última reforma da Previdência, foi retirado do texto final considerando a enorme pressão política, especialmente diante do gigantesco custo de transição. Ou seja, a ameaça da capitalização sempre está presente, à espreita, para ser concretizada.
E mesmo antes dessa reforma recente, o “projeto” de seguridade social esculpido na nossa Constituição de 1988 tem sido objeto de reformas constantes (MARTINS, 2018), reduzindo-se o seu campo teoricamente protetivo. A Constituição vigente é considerada muitas vezes como um “projeto constitucional inconcluso”, ainda em disputa (SILVA, 2021). Contudo, não se trata de um modelo não concluído, mas sim de um modelo jurídico apto a ser conformado constantemente no âmbito do seu conteúdo, com base nos novos estágios do modo de produção capitalista (SILVA, 2021), tanto é que logo após a sua criação advieram normas regulamentadoras (Leis 8.212 e 8.213 de 1991) restritivas da aparente amplitude do texto constitucional, tendo sido seguidas de diversas outras regulamentações e, inclusive, reformas constitucionais.
A partir de todo esse debate dos elementos concretos apresentados no Seminário, um grande desafio nos espera. No atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, no qual este não está mais preocupado em fazer a roda girar, ou seja, em assegurar a compra e venda da força de trabalho porque já incorporada pela ideologia burguesa, a extrema precarização da condição de trabalho também deixa de ser uma preocupação. Mas não é só isso, além de deixar de ser uma preocupação, é viabilizada a consolidação dessa forma flexível da compra e venda da força de trabalho (ORIONE, 2021), produzindo cada vez mais informalidade e precarização do trabalho.
Ademais, na medida em que há o acirramento da luta de classes a tendência é que a figura do Estado (o público) apareça mais, por exemplo, colocando em prática uma concepção de Estado forte e com maior proteção social, sendo que, pelo contrário, com a menor intensidade da luta de classes, há uma tendência de que o privado apareça mais, ficando mais difícil divisar onde começa o público e em que momento está presente o privado (CORREIA, 2021).
Em um cenário de concreta informalidade e precarização do trabalho, observada em diversos países, especialmente, na América Latina, realidade esta que representa o atual estágio de configuração da compra e venda da força de trabalho, temos um quadro muito mais dificultoso para executar, por meio de reformas, a reversão dos sistemas de capitalização nos países que a possuem. Isso porque, a tendência do atual estágio do capitalismo é a redução do que se entende por público e o agigantamento do que se entende por privado. Da mesma forma, nos países em que a capitalização ainda não logrou em ser aplicada, ela assombrará o que ainda resta de público, com a sua tendente implementação.
Com isso, para além de continuarmos comemorando a não aprovação do regime de capitalização na última reforma da Previdência no Brasil, é imprescindível relacionarmos a seguridade social com a exploração da força de trabalho e os estágios de desenvolvimento do modo de produção capitalista, atraindo de uma vez por todas o horizonte da luta de classes para se questionar a forma que tem se dado a proteção social, sobretudo, na América Latina.
Referências
MARTINS, Deise Lilian Lima. Delimitação e desdobramentos da opção constitucional para a organização da política previdenciária no Brasil. In: Flávio Roberto Batista; Julia Lenzi Silva; Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos (CNASP). (Org.). A previdência social dos servidores públicos: direito, política e orçamento. 1 ed.Curitiba/PR: Kaygangue, 2018, v. 1, p. 79-98.
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Subsunção hiper-real do trabalho ao capital e estado: análise da justiça do trabalho. Revista LTr – Legislação do Trabalho, São Paulo, ano 85, nº 5, p. 521-530, mai, 2021.
SILVA, Júlia Lenzi. Forma Jurídica e Previdência Social no Brasil. 1. ed. Marília-SP: Lutas Anticapital, 2021.
Deise Lilian Lima Martins é mestre e doutoranda em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), integrante do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo da USP, professora assistente no Grupo de Estudos sobre Seguridade e Marxismo da USP e autora do livro Mulheres e Previdência Social: equivalência e crítica à forma jurídica. E-mail: deisellmartins@ gmail.com.
Crítica ao capitalismo, a seu caráter predatório, à violência que ele engendra, cujos mecanismos foram em grande medida desvendados por Marx, é essencial a qualquer enfrentamento consequente da crise ambiental.
Luis Felipe Miguel
Os gaúchos ainda esperam a água baixar para voltar às suas casas, contam os mortos e avaliam a medida da devastação. Nem por isso os negacionistas do colapso climático se calam. Aferram-se ao fato de que no passado também ocorreram cheias (a de 1941, em Porto Alegre, é sempre evocada) para enquadrar a tragédia como “fatalidade”. Prosseguem na cruzada contra o método científico, usando casos isolados para contestar regularidades e tendências, tal como fizeram durante a pandemia do novo coronavírus.
Sim, há muitos registros de inundações, de temperaturas extremas ou de calor ou frio fora de hora no passado. O ponto é que estes fenômenos estão se tornando mais – muito mais – constantes e intensos. Os dados são eloquentes e décadas de pesquisa apontam para a ação humana como causa. O consenso científico está estabelecido, mesmo com todo o esforço dos “mercadores da dúvida” (pesquisadores bancados por grandes corporações, que produzem estudos enviesados em temas como tabagismo, opioides, alimentos ultraprocessados ou aquecimento global).
Falar em “ação humana”, no entanto, é muito vago. Parece distribuir a culpa entre todos nós. No entanto, as responsabilidades são muito diversas. O custo ambiental do cidadão de um país rico, com seu padrão de consumo mais elevado, equivale a muitas vezes aquele do morador de um país pobre. E, dentro de cada sociedade, evidentemente os mais ricos têm maior impacto, com seus automóveis dispendiosos, jatinhos particulares, lanchas e iates, profusão de gadgets em constante substituição etc. Um relatório do ano passado estima que os 10% mais ricos dos Estados Unidos, isto é, cerca de 0,4% dos habitantes do mundo, são responsáveis por 40% da poluição de todo o planeta.
Ao mesmo tempo, as consequências também são distribuídas desigualmente – e as primeiras vítimas são sempre os mais pobres. Os países ricos “exportam” boa parte de sua poluição, transferindo seja as plantas industriais, seja já os resíduos. E, em cada país, os ricos têm acesso aos bens e serviços que minimizam as consequências do colapso ambiental, de equipamentos de climatização a imóveis em áreas menos vulneráveis.
Em suma: estamos todos no mesmo barco, como se costuma dizer. Mas há muita diferença entre estar na primeira ou na terceira classe. E, quando ele afundar, o que é seu destino provável, só alguns terão acesso aos botes de salvação.
São culpados os empresários gananciosos, os políticos que vivem a serviço deles bloqueando medidas de proteção ambiental, é culpada a mídia que calibra o noticiário com a preocupação de não melindrar muito os grandes anunciantes. Precisamos indicar a responsabilidade de cada um deles. Mas também o fato de que suas ações – como, em alguma medida, a de todos nós – seguem a dinâmica de um sistema: o capitalismo.
A lógica da acumulação capitalista, com sua incessante demanda por geração de valor, torna toda a natureza “um objeto da humanidade”, como disse Marx. A preservação ambiental é absolutamente contraditória a essa lógica. Como expôs o filósofo japonês Kohei Saito, o capitalismo reorganiza radicalmente a relação da humanidade como a natureza “a partir da perspectiva da máxima extração possível de trabalho abstrato”. Como se trata de gerar valor, não de suprir necessidades, não há limite para a extração de matérias-primas e para seu processamento. E cada um de nós, habitantes do mundo capitalista, somos ensinados desde cedo a buscar no consumo incessante a compensação para a alienação de nossas vidas.
As corporações podem fazer o teatrinho da “sustentabilidade”, mas o enfrentamento do colapso climático é necessariamente o enfrentamento do império do capital. Ao mesmo tempo, sua lógica contaminou também os países do “socialismo real”. Quando, após a Segunda Guerra, os dirigentes soviéticos estabeleceram como meta superar o padrão de vida ocidental, aceitavam uma métrica capitalista. O mesmo se pode dizer, hoje, da China.
Marx não foi, evidentemente, um ambientalista avant la lettre. É inútil buscar nele uma presciência milagrosa sobre os desafios ecológicos que enfrentamos hoje. Mas a crítica ao capitalismo, a seu caráter predatório, à violência que ele engendra, cujos mecanismos foram em grande medida desvendados por Marx e pelos pensadores que seguiram seus passos, tudo isso é essencial a qualquer enfrentamento consequente da crise ambiental.
Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular livre do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros livros, de Democracia e representação: territórios em disputa (Editora Unesp, 2014), Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória (Boitempo, 2018) e O colapso da democracia no Brasil (Expressão Popular, 2019). Também é coautor, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Colaborou com o livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (Boitempo, 2018).
Fonte: Blog da Boitempo
Data original da publicação: 22/05/2024
Pressão permanente por ampliar ganho dos acionistas leva corporações a devastar e precarizar.
Ladislau Dowbor
Duas diretrizes principais estruturam o sistema de gestão empresarial: maximização e competição. A maximização está centrada nos resultados financeiros e, para obter resultados, você deve superar os demais. Pode-se alegar adesão aos ESG, mas o verdadeiro jogo é sobre maximização e guerra econômica, quaisquer que sejam os custos. O que precisamos é de outro paradigma, baseado no crescimento equilibrado e na colaboração. A gestão precisa ser fundamentada em valores.
(Ladislau Dowbor)
Manolito, não é verdade que existem outros valores, além do dinheiro? Manolito: Claro que existem, também temos cheques.
(Quino, Mafalda)
Nesta nova era em rede, o paradigma tradicional da concorrência precisa de dar lugar à complementaridade, à conectividade e à cooperação.
(Keyu Jin, pág. 282)
Os modelos de gestão no mundo corporativo são estruturados para maximizar resultados, e estes são definidos como meta principal, lucros financeiros e dividendos. Alguns chamam isso de otimização e parece bom. Os resultados também devem ser alcançados no menor tempo possível, prendendo o mundo corporativo numa corrida permanente. Os resultados sistêmicos e de longo prazo são mantidos fora do horizonte do processo de decisão e os impactos em maior escala são qualificados como “externalidades”, lavando as mãos das empresas. Um exemplo clássico é a reação da indústria de armas de fogo às críticas: produzimos armas, mas não puxamos o gatilho. Outro exemplo interessante é o da indústria de alimentos ultraprocessados: seria responsabilidade do consumidor ler os rótulos e proteger sua saúde. Na verdade, isto levou a outra indústria em expansão, a resposta farmacêutica à explosão da obesidade. Assim, temos duas indústrias em expansão, uma que produz alimentos ruins, a outra que produz remédios, e pagamos por ambas. Produzir alimentos saudáveis poderia ser uma escolha melhor, mas não no interesse da maximização dos lucros, quer nos setores alimentar, quer no setor farmacêutico.
A concorrência na época de Adam Smith poderia parecer boa e até continuar positiva nas pequenas e médias empresas. Uma padaria tem que produzir bom pão a preços razoáveis, ou outra padaria aparecerá. Mas se uma empresa produtora de chocolate na Bélgica conseguir comprar cacau mais barato no Gana, fechando os olhos ao trabalho infantil, o concorrente responsável que respeita alguns direitos humanos básicos será ultrapassado. Se uma empresa da indústria de carne bovina na Europa conseguir um acordo melhor com a JBS no Brasil, quaisquer que sejam os custos externos para o Cerrado ou a Amazônia, isso forçará os concorrentes a recorrer a práticas semelhantes, para não serem superados. Quando um algoritmo da Pfizer fixa o preço do Paxlovid, comprimido para tratamento da covid-19, em 1.390 dólares, enquanto o custo de produção, segundo uma pesquisa da Universidade de Harvard, é de 13 dólares, está apenas calculando que os muito ricos pagarão qualquer coisa pela sua saúde, e este é o preço ideal em termos de maximização de lucro. Não se trata de maximizar o impacto na saúde, vender o produto com lucro razoável e torná-lo acessível a muitos.
O estudo de Max Fisher sobre o impacto social, econômico e político dos meios de comunicação social deixa as questões evidentes. Facebook, YouTube e algumas plataformas semelhantes são basicamente empresas de marketing, vendendo nosso tempo de atenção para corporações. O marketing, por exemplo, representa 98% do faturamento da Meta. As taxas de marketing dependem de quantas pessoas são alcançadas, por quanto tempo e de outros critérios de “engajamento”. Como os algoritmos são estruturados para maximizar o engajamento, o que chega ao topo é o que atinge mais profundamente nossas entranhas, não o interesse intelectual ou cultural, a empatia ou a colaboração, mas motivações poderosas como o ódio, a confirmação do preconceito, o sentimento de pertencimento (“nós” contra “eles”) e outras emoções que maximizam a atenção. A profundidade disso pode ser vista em tantos conflitos e polarizações políticas absurdas ampliadas radicalmente pelas mídias sociais. O livro de Fisher é corretamente intitulado The Chaos Machine (em tradução livre, A Máquina do Caos).
A legítima otimização do lucro pelo padeiro da época de Adam Smith, quando inserido em algoritmos na era da revolução digital, com conectividade global e vieses de confirmação de epidemias, tem impactos negativos dramáticos. Não se trata de sermos “bons” ou “maus”, trata-se de ampliar instintos poderosos que existem em todos nós. Tendemos a esquecer que ainda somos fundamentalmente primatas, com grande inteligência, sem dúvida, mas com motivações profundamente problemáticas em relação à finalidade para a qual utilizamos essa inteligência. Somos parcialmente racionais, mas a capacidade cerebral acrescida não eliminou as motivações mais profundas que herdamos. O estudo de Frans de Waal sobre Nosso Macaco Interior mostra isso muito claramente. É assim que somos feitos, em nosso DNA. As plataformas de comunicação podem aproveitar essas emoções, e usar a tecnologia moderna para maximizar o comportamento dos primatas é simplesmente errado.
As mensagens do Facebook chegam a quase 4 bilhões, com horas de atenção, e têm custos radicalmente reduzidos em comparação com os anúncios de jornal que já tivemos. Somos apenas alimentados, e superalimentados, com mensagens tóxicas ajustadas individualmente. Anúncios e mensagens simplesmente colam nos seus olhos e filtram no fundo, gostemos ou não. 2
Lembremo-nos de que estas são as principais corporações mundiais, vender o nosso tempo de atenção é o grande negócio do presente. Também aqui a maximização funciona de mãos dadas com a concorrência: se uma empresa utiliza este tipo de manipulação de envolvimento emocional, outras vão segui-la, porque funciona, e estão lutando pela mesma mercadoria, o nosso tempo de atenção pessoal. Que é, na verdade, o momento das nossas vidas, o nosso capital pessoal mais precioso. Robert Reich resume: “Aqueles que procuram a nossa atenção – anunciantes, profissionais de marketing e políticos – enfrentam uma concorrência crescente para agarrá-la. Quando conseguem, nossa atenção se desvia de todo o resto. É por isso que a atenção está se tornando um recurso tão escasso.” 3
O sistema bancário brasileiro é outro exemplo rico. Neste caso, não se trata de competição, mas de conluio. Cinco bancos controlam 85% do crédito e cobram aproximadamente as mesmas taxas de juros extorsivas para famílias, empresas ou eventos sobre a dívida pública. Os juros da dívida de particulares durante 2023 oscilaram em torno de 55%, para uma inflação de cerca de 4%. Isto levou a uma fuga financeira para as famílias, equivalente a 10% do PIB, reduzindo drasticamente o poder de compra e, consequentemente, o estímulo da procura à economia. A taxa de juro média das empresas ronda os 23%, o que levou a uma redução do investimento produtivo. Para quem tem capital, tendo em conta que a procura está estagnada e as taxas de juro muito elevadas, se precisar de apoio financeiro, simplesmente optará por investir na dívida pública, pagando 8% líquido de inflação. Lucro sólido, sem risco, sem esforços de produção. Quando a renda financeira paga mais do que o investimento produtivo, é para lá que vai o dinheiro. Isto é simplesmente matar o ganso, com maximização a curto prazo. A economia está estagnada. 4
Não se trata de altos e baixos do mercado. É um sistema estruturado de extração de renda. Uma dimensão é a desinformação. Antes de 1994, o Brasil enfrentava hiperinflação, atingindo mais de 50% ao mês. Isso levou os bancos a apresentarem taxas de juros mensais. A hiperinflação foi reduzida, mas os bancos continuam a apresentar taxas de juro todos os meses, o que as torna semelhantes às taxas de juro anuais do resto do mundo. A taxa de juros de 100% será apresentada, nos bancos ou no comércio, como 6%, ou preferencialmente 5,9%. As pessoas pensariam que as coisas não poderiam ser tão simples: seria uma usura escandalosa. No entanto, isto é precisamente o que acontece, ao estilo do Mercador de Veneza, num país onde muito poucas pessoas sabem calcular o equivalente anual a uma taxa de juro mensal. Todos os bancos do Brasil, inclusive os internacionais, como o Santander, utilizam esse esquema. Temos 72 milhões de adultos na lista de incumprimento de crédito, cerca de metade da população adulta.
O Banco Central não deveria regular esse sistema de usura? Na Constituição de 1988, o artigo 192 estipulava que juros reais acima de 12% ao ano seriam considerados crime. Em 2003, com a entrada do recém-eleito Lula no governo, os bancos conseguiram eliminar o artigo 192. A usura, atualmente, não é crime, nem sequer é mencionada como questão legal. E o Banco Central, mais recentemente, foi declarado autônomo, colocado de facto nas mãos dos bancos e do sistema financeiro. O que levou a que a dívida pública pagasse as taxas de juro mais elevadas do mundo, basicamente ao mesmo sistema financeiro. Em 2023, a correspondente drenagem do orçamento atingiu o equivalente a 7% do PIB. O dreno financeiro improdutivo global que apresentei numa audiência do Congresso em Brasília é equivalente a 30% do PIB. Como grande parte dos congressistas tem forte investimento financeiro e, portanto, quer manter as taxas de juros tão altas quanto possível, isso se tornou uma deformação estrutural. É um drama para a economia e para a sociedade, mas é politicamente sólido. Até que ponto a democracia pode resistir quando a desigualdade atinge níveis absurdos?
A drenagem dos recursos naturais é outro exemplo. A água é um bem público e está rapidamente se tornando um recurso escasso. O The Guardian nos traz comentários a respeito do Relatório sobre a Água Doce, mostrando o impacto da privatização: “Mais de 30 anos depois da privatização da água, com a urbanização generalizada e a intensificação agrícola, é necessária uma nova abordagem – incluindo uma potencial reforma dos reguladores da água –”, diz o relatório. “Com os níveis de confiança nas empresas de água afetados por repetidos relatórios de poluição e especulação, tanto o público como os profissionais da água querem mais transparência e garantia de que as empresas estão agindo no interesse da sociedade e do ambiente.” 5
Apenas 14% dos rios no Reino Unido estão “em bom estado ecológico”. A lógica é simples: quando a gestão da água é privatizada, vender água é um bom negócio e o tratamento de esgotos é um custo. Enfrentamos problemas semelhantes em São Paulo, onde a Sabesp, empresa de gestão de água parcialmente privatizada, maximiza as vendas de água, mas mantém baixo o tratamento de esgotos. Paris mostrou o caminho, com a restauração da gestão pública de água e esgoto. Interesses equilibrados.
Estes são apenas alguns exemplos. Mas o impacto geral é dramático. A Oxfam apresenta o impacto na sustentabilidade: “Desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo duplicaram as suas fortunas. Durante o mesmo período, quase cinco bilhões de pessoas em todo o mundo ficaram mais pobres. As dificuldades e a fome são uma realidade diária para muitas pessoas em todo o mundo. Ao ritmo atual, serão necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas poderemos ter o nosso primeiro trilionário em 10 anos. Uma enorme concentração do poder empresarial e monopolista global está exacerbando a desigualdade em toda a economia. Sete em cada dez das maiores empresas do mundo têm um CEO bilionário ou um bilionário como principal acionista. Por meio da pressão sobre os trabalhadores, da evasão fiscal, da privatização do Estado e do estímulo ao colapso climático, as empresas estão promovendo a desigualdade e agindo a serviço da entrega de uma riqueza cada vez maior aos seus proprietários ricos.” 6
No Brasil, para uma população de 203 milhões de pessoas, temos 33 milhões passando fome e 125 milhões em insegurança alimentar. O que produzimos equivale a mais de quatro quilos de grãos por pessoa por dia. Não poderíamos pelo menos alimentar as crianças?
Todos esses magnatas corporativos reivindicam a sua adesão aos princípios ESG, os principais políticos assinam as sucessivas resoluções da COP, a OCDE é severa na sua luta pelo BEPS, John Ruggie lutou durante uma década pelo respeito corporativo pelos direitos humanos, mas como ele próprio escreveu, “para corporações internacionais, são apenas negócios”. A verdade é que, a menos que as empresas se organizem eficazmente para o bem comum sistêmico e aprendam a colaborar, dado o seu poder global, as coisas não funcionarão. Estamos presos em um processo autodestrutivo. Até que ponto devemos entrar nesta crise econômica, social e ambiental crítica, até termos uma reação global? Fizemos isso depois da Segunda Guerra Mundial, criando um mínimo de governança global. Isso foi em outra época.
É claro que podemos imaginar que fomos feitos à imagem de Deus. Stephen Jay Gould, em seu Wonderful Life, é mais pé no chão, lembrando-nos que somos “meros macacos nus que adotaram uma postura ereta”. Macacos nus de alta tecnologia. Eles não veem o que está acontecendo? Devemos aprender racionalmente como lidar com a irracionalidade. Entretanto, os políticos aprenderam a navegar com base nos nossos piores instintos. Funciona.
Ladislau Dowbor é economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website www.dowbor.org.
Fonte: Outras Palavras
Data original da publicação: 16/04/2024
A candidata do Morena, partido de López Obrador, obtém quase 60% dos votos, enquanto seu principal rival, o oposicionista Xóchitl Gálvez, mal consegue a metade.
A reportagem é de Paula Vilella, publicada por El Diario, 03-06-2024.
Claudia Sheinbaum se tornará a primeira mulher a presidir o México depois de vencer neste domingo com entre 58,3% e 60,7% dos votos, segundo resultados preliminares oficiais. Durante os próximos seis anos governará o país de 127 milhões de habitantes seguindo as diretrizes da Quarta Transformação, projeto político de seu antecessor Andrés Manuel López Obrador, que deixará o cargo em 1º de outubro. “Hoje tornamos possível a continuidade e o avanço da Quarta Transformação (1) e, pela primeira vez em 200 anos, as mulheres chegam à presidência da República”, disse Sheinbaum após conhecer os resultados.
Chaves para entender as maiores eleições da história do país
Xóchitl Gálvez, candidata pela coligação de oposição, obteve entre 26,6% e 28,6% dos votos e Jorge Álvarez Máynez, do Movimiento Ciudadano, entre 9,9% e 10,8% dos votos.
O Congresso da União também foi renovado neste domingo. Sheinbaum governará com apoio de maioria qualificada na Câmara dos Deputados e está muito próximo de tê-lo também nos senadores. Um sucesso retumbante para Morena, que aumenta assim a distância com a oposição em relação ao mandato de seis anos anterior e permite reformar a Constituição, uma questão pendente para López Obrador, que ele batizou de “plano C”.
“É o reconhecimento do povo mexicano à nossa história, aos resultados, à convicção, à vontade e ao nosso projeto nacional”, disse ela com calma e comoção em sua primeira intervenção diante da imprensa após a divulgação dos resultados. anunciou onde constatou que recebeu um telefonema de Gálvez parabenizando-a pela vitória. “Nosso dever é e sempre será cuidar de cada um dos mexicanos, sem distinção. Embora muitos mexicanos não concordem plenamente com o nosso projeto, teremos que caminhar em paz e harmonia para continuar a construir um México justo e mais próspero”, acrescentou.
Depois, mudou-se do seu centro de operações para o Zócalo, na Cidade do México, onde os seus apoiantes se reuniram no início da tarde e puderam ouvir música mariachi ao vivo durante horas. Marina Salgado foi uma delas. “Venho celebrar a democracia que hoje é melhor do que em outros anos”, disse. Ele espera que Sheinbaum “se comprometa a terminar o projeto nacional que López Obrador iniciou”.
Para ele, Sheinbaum disse algumas palavras: “A partir daqui lhe dizemos: presidente, obrigado. Vamos manter um governo do povo, pelo povo e para o povo. Para garantir os programas de bem-estar com os quais nos comprometemos.”
Num vídeo publicado nas suas redes sociais onde foi visto de muito bom humor, o presidente parabenizou todos os candidatos e antecipou que Sheinbaum “será possivelmente o presidente com mais votos obtidos em toda a história do nosso país”. “Estou feliz, orgulhoso de ser presidente de um povo exemplar, altamente politizado, com vocação democrática”, acrescentou.
No Zócalo, Sheinbaum foi mais enérgica: “É o triunfo da revolução das consciências e o reconhecimento do nosso povo do mandato de continuar a transformação da vida pública no México. Neste dia 2 de junho voltamos a fazer história”, exclamou diante de milhares de pessoas em um palco sob a varanda principal do Palácio Nacional. Esta será sua residência e local de trabalho, na mesma praça onde está localizado o Governo da Cidade do México que ocupou nos últimos anos e onde as projeções mostram que sua companheira de festa Clara Brugada, com quem se abraçou no cenário, será a prefeita da capital. Sheinbaum nomeou algumas mulheres da história do México: “Sor Juana Inés de la Cruz, Leona Vicario, Matilde Montoya estão presentes conosco… e também todas as mulheres mexicanas anônimas”, listou.
Ao longo da campanha, Sheinbaum liderou as pesquisas à frente da coalizão progressista Vamos Continuar Fazendo História, que reunia seu partido, o Morena (Movimento de Regeneração Nacional, do qual é fundadora), o Partido Trabalhista e o Partido Ecologista Verde. Desde a universidade atuou nas fileiras da esquerda e hoje se define como um “humanista”.
O dia registou uma participação de cerca de 60%, à semelhança das últimas eleições. Organizações de pessoas desaparecidas apelaram à anulação do seu voto, colocando no boletim de voto o nome de uma das 100 mil pessoas que continuam desaparecidas no país.
Colegiado considerou depoimentos que confirmaram o comportamento da supervisora.
Da Redação
A 2ª turma do TRT da 11ª região decidiu favoravelmente a uma trabalhadora que solicitou indenização por danos morais, condenando uma empresa de serviços médicos de Manaus a pagar R$ 2 mil reais por assédio moral. A decisão alterou a sentença inicial que havia rejeitado o pedido.
Contratada em novembro de 2019 e dispensada em julho de 2023, a recepcionista alegou no processo, iniciado em setembro de 2023, que sofreu tratamento rude, ofensivo e desrespeitoso por parte de uma supervisora, que a insultava frequentemente, chamando-a de incompetente, “barata tonta” e preguiçosa. A defesa da empresa refutou as acusações, argumentando a ausência de reclamações formais durante o período de emprego.
A sentença de primeiro grau não reconheceu as alegações de condutas abusivas nem a intenção de prejudicar psicologicamente a empregada. Entretanto, a empregada recorreu e a 2ª turma do TRT da 11ª região, sob relatoria da desembargadora Eleonora de Souza Saunier, reverteu a decisão, baseando-se em depoimentos que confirmaram o comportamento humilhante da supervisora.
Segundo a desembargadora, a falta de provas contrárias por parte da empresa e os depoimentos confirmaram que a funcionária foi submetida a um tratamento humilhante, justificando a condenação por assédio moral.
De acordo com a magistrada, o assédio moral foi descrito como a repetição de atos pelo empregador que violam os direitos de personalidade do trabalhador, diminuindo sua autoestima e forçando a ruptura do vínculo empregatício.
No panorama jurídico contemporâneo, a luta pela igualdade de direitos e pelo respeito à dignidade humana tem ganhado novos capítulos significativos. Recentemente, no último dia 22 de abril, sentença publicada no processo de nº 0000025-03.2023.5.09.0011, que tramitou na 11ª Vara do Trabalho de Curitiba — 9ª Região, se destacou como um marco na batalha contra a discriminação transfóbica no ambiente de trabalho, trazendo à tona a importância da proteção dos direitos das pessoas transgênero.
Este caso envolve uma ação trabalhista na qual uma empresa foi condenada a pagar R$ 20 mil por danos morais devido a atitudes discriminatórias e transfóbicas. A autora da ação, uma colaboradora transgênero, enfrentou situações vexatórias quando a empresa se recusou a aceitar seu nome social, mesmo após a apresentação de um atestado médico que o continha. A empresa exigiu que ela obtivesse um novo atestado com seu nome de nascimento, desconsiderando completamente sua identidade de gênero, o que gerou um ambiente de trabalho hostil e humilhante.
É crucial destacar que a legislação brasileira, conforme estabelecido na Constituição, especialmente nos artigos 1º, III e 5º, X, assegura e reconhece o direito ao nome social de pessoas transgênero. O artigo 1º, III da CF estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, enquanto o artigo 5º, X garante a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Negar esse direito não apenas infringe esses princípios fundamentais, mas também constitui um ato flagrante de discriminação, que é vedado pelo artigo 7º, XXX da CF, que proíbe qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência ou não.
A recusa em respeitar o nome social da colaboradora transgênero é uma manifestação clara da transfobia estrutural presente em nossa sociedade. A CLT também protege contra discriminações no trabalho, estabelecendo que é vedada a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade.
Na sentença, o magistrado aplicou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, conforme previsto na Recomendação 128/2022 e na Resolução 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O protocolo estabelece que o Poder Judiciário deve decidir os casos sob o viés pragmático de destruição da desigualdade de gênero estruturalmente enraizada na sociedade, rompendo dogmas preconceituosos e discriminatórios. Esse julgamento com perspectiva de gênero não rompe com a imparcialidade do Juízo, mas adota uma técnica judicial que visa a compensar a desigualdade historicamente excludente que recai sobre os mais diversos gêneros, conduzindo a um julgamento mais legítimo, democrático e justo.
Além disso, o magistrado destacou a conduta de litigância de má-fé por parte da empresa. A preposta da ré, em seu depoimento pessoal, afirmou que o supervisor da demandante, que poderia esclarecer todos os fatos narrados na inicial, foi dispensado seis meses antes da audiência de 6 de fevereiro de 2024. No entanto, o depoimento de uma testemunha evidenciou que o supervisor foi dispensado apenas no final de março de 2024, poucos dias antes de sua oitiva.
Isso demonstrou a tentativa da parte ré de opor resistência injustificada ao andamento do processo, levando à procrastinação da solução do litígio. Assim, o juiz considerou configurada a litigância de má-fé, nos termos do artigo 793-B, IV, da CLT. Em razão disso, aplicou à ré uma multa por litigância de má-fé no valor de 5% do valor atualizado da causa, conforme o artigo 793-C da CLT, sendo a quantia revertida à parte autora.
Papel pedagógico da sentença
A decisão judicial é emblemática não apenas pelo reconhecimento do direito da autora à sua identidade de gênero e à sua saúde, mas também pelo seu papel pedagógico. A indenização por danos morais no valor de R$ 20 mil funciona não só como uma compensação à vítima, mas também como um instrumento preventivo, demonstrando que práticas discriminatórias não serão toleradas. Esse montante, apesar de não reverter os danos emocionais e psicológicos sofridos, serve como um alerta significativo às empresas sobre as consequências de suas ações.
Adicionalmente, o pedido de demissão da autora foi convertido em rescisão indireta. A autora alegou que foi compelida a pedir demissão devido aos danos morais sofridos e reivindicou diferenças nas verbas rescisórias e FGTS. Inicialmente, a defesa alegou que o contrato de experiência foi encerrado em seu termo e que todas as verbas rescisórias e o FGTS foram pagos corretamente. No entanto, a análise dos fatos demonstrou que a extinção do contrato não ocorreu por pedido da autora, mas sim de forma abusiva no término do contrato de experiência. Foi comprovado que houve desconto indevido de faltas e diferenças nas verbas rescisórias e FGTS. Dessa forma, foi deferido o pedido para que as verbas rescisórias fossem recalculadas, sem o desconto das faltas, e as diferenças de FGTS recolhidas.
Este caso reitera a importância de combater a discriminação de gênero e a transfobia, não apenas no ambiente de trabalho, mas em todas as esferas da sociedade. A conscientização e a educação são cruciais para criar um ambiente mais inclusivo e respeitoso para todos. A aplicação efetiva da legislação antidiscriminatória, conforme previsto nos artigos 1º, III, 5º, X e 7º, XXX da CF, é fundamental para garantir a igualdade de direitos e o respeito à dignidade humana, promovendo um ambiente de trabalho justo e inclusivo.
A luta pela igualdade de direitos para pessoas transgênero requer um compromisso contínuo com a conscientização e a implementação de políticas inclusivas. Somente através de uma abordagem integrada e contínua, que inclua a formação e sensibilização de empregadores e colegas de trabalho, poderemos construir uma sociedade verdadeiramente equitativa e respeitosa para todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero. É necessário que todos compreendam e respeitem as normas jurídicas vigentes, contribuindo para um ambiente onde a dignidade humana seja plenamente respeitada e protegida.
é advogada, bacharela em Direito pelo Centro Universitário Dom Bosco, sócia proprietária do Escritório Gbur Advocacia e especialista em Direito Civil e empresarial pela PUC-PR de Curitiba.