O Supremo Tribunal Federal vai decidir se o pagamento de aposentadoria por incapacidade causada por doença grave, contagiosa ou incurável deve ser paga de forma integral ou seguir regra estabelecida pela Reforma da Previdência (EC 2019).
A discussão, objeto do Recurso Extraordinário 1.469.150, teve repercussão geral reconhecida (Tema 1.300) por maioria de votos no Plenário Virtual. Ainda não há data prevista para o debate do mérito do recurso.
Julgamento vai abordar aposentadoria por doença que causa incapacidade permanente
Os ministros vão discutir a alteração feita pela Reforma da Previdência no cálculo da aposentadoria por doença grave, contagiosa ou incurável. A mudança definiu que, nesses casos, o valor mínimo do benefício será de 60% da média aritmética dos salários do trabalhador, com acréscimo de 2 pontos percentuais para cada ano de contribuição que exceder a 20 anos.
No Supremo, um segurado do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) afirma que a norma é inconstitucional por violar o princípio da irredutibilidade do valor de benefícios previdenciários, previsto na Constituição. O INSS, por sua vez, defende a mudança e argumenta que ela buscou garantir o equilíbrio financeiro para o sistema de previdência pública do país.
Manifestação
Ao se manifestar sobre a repercussão geral, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, destacou que há, até o momento, 82 casos semelhantes que questionam a mudança feita pela Reforma da Previdência, o que demonstra a relevância do debate. Ressaltou, ainda, a natureza constitucional da controvérsia e sua relevância, sob os pontos de vista econômico, político, social e jurídico.
Barroso também fez questão de ressaltar que o tema a ser julgado não diz respeito a acidente de trabalho, doença profissional ou doença do trabalho, que decorrem do comportamento do empregador quanto à adoção de medidas de proteção, segurança e saúde do trabalhador. O que se vai julgar são os casos em que o segurado é acometido da doença que cause “incapacidade permanente e se insere na loteria natural da vida, não podendo ser imputado a um agente humano em especial”.
A solução a ser adotada pelo Tribunal será aplicada a todos os casos semelhantes nas demais instâncias da Justiça. *Com informações da assessoria de imprensa do Supremo Tribunal Federal.
Com acúmulo de reveses no Supremo Tribunal Federal, como a cassação de decisões que reconhecem vínculo de emprego, ministros do Tribunal Superior do Trabalho passaram a defender que o tribunal veja com outros olhos as demandas que envolvam relações laborais diversas da CLT. O foco é preservar a competência constitucional da Justiça do Trabalho para apreciar todos os conflitos decorrentes das relações de trabalho, sob o risco de ser sentenciada a arbitrar apenas verbas rescisórias.
A queda de braço com o STF foi personificada na controvérsia envolvendo a existência ou não do vínculo de emprego entre motoristas e entregadores de plataformas digitais, como Uber e Ifood. O TST, contudo, já vem perdendo essa batalha há algum tempo – com direito a recados e críticas dos ministros do Supremo em seus votos.
Levantamentos feitos pelo núcleo de estudos “O Trabalho Além do Direito do Trabalho”, da Faculdade de Direito da USP, em parceria com a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), mostram que, em um universo de cerca de 1.500 decisões proferidas pelo STF em sede de matérias trabalhistas nos últimos cinco anos, aproximadamente 75% reverteram decisões da Justiça do Trabalho. Os casos envolvem não só motoristas de aplicativo, mas diversas outras categorias cuja característica de autônomo, defendida por empresas, não foi reconhecida pela JT, que enxergou fraudes em todos eles.
Ao cassar as decisões, ministros do STF se amparam no conceito constitucional da livre iniciativa e acusam a Justiça do Trabalho de descumprir deliberadamente a jurisprudência do Supremo ao reconhecer vínculos de emprego em contratos alternativos de trabalho, a despeito de precedentes firmados pela corte nos últimos anos que validaram a terceirização (ADPF 324 e Tema 725) e a “pejotização” (RCL 47.843).
TST em 2022 e em 2023
Parte da Justiça do Trabalho, por sua vez, sustenta que a legalidade em si dessas novas formas de contratação não é objeto dos litígios e, na apreciação dos casos concretos, as fraudes são caracterizadas diante da identificação dos princípios que configuram uma relação de emprego, como pessoalidade, não eventualidade ou habitualidade, onerosidade e subordinação.
“Tais precedentes vêm sendo invocados para levar ao STF discussões de reconhecimento de vínculo de emprego das mais diversas categorias, como advogados, médicos, trabalhadores por aplicativos, representantes comerciais, etc. Todas essas categorias – à exceção dos trabalhadores por aplicativos – possuem legislações próprias, com regras que devem ser observadas para sua contratação, seja como profissional autônomo, seja como empregado, e nenhuma destas leis foi objeto de análise de constitucionalidade nos referidos precedentes”, defendeu Kátia Arruda, ao Anuário da Justiça Brasil. A ministra já votou no sentido de reconhecer a relação de emprego na atuação de trabalhadores por aplicativo, por exemplo.
Apenas 18% dos pedidos foram providos
Para Douglas Rodrigues, porém, é hora de o TST agir de forma pragmática, haja vista histórico de enxugamento da competência da Justiça do Trabalho desde a promulgação da Constituição de 1988. “Nós precisamos superar essas fronteiras do Direito do Trabalho, abraçar sem receio o Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil, leis específicas (…) É preciso nos despir desse preconceito, dessa pré-compreensão que está levando o STF a cassar tantas decisões que, ao fim, podem nos levar ao cenário de esvaziamento absoluto que, no extremo, não mais justifique a existência dessa instituição”, sustentou o ministro, durante seminário na Faculdade de Direito da USP, em março.
Ives Gandra Filho é mais crítico. “Os excessos de protecionismo da JT e do TST, bem como a indisciplina judiciária deste ramo especializado da Justiça, têm sido responsáveis pela redução paulatina da competência da Justiça do Trabalho pelo STF, a ponto de termos regredido 35 anos em matéria de competência. Parece mais uma vez ter lugar a Terceira Lei de Newton: a toda ação corresponde uma reação em sentido contrário e de igual intensidade”, avaliou ao Anuário da Justiça.
Horas extras e honorários encabeçam a lista dos temas mais recorrentes
A previsão apocalíptica não é em vão e as derrotas não são impostas apenas pelo Supremo. Em fevereiro, a ministra Nancy Andrighi, do STJ, afastou a competência da Justiça do Trabalho para julgar ação que apontava fraude na relação autônoma e buscava o reconhecimento de vínculo de emprego. O juízo estadual suscitou conflito de competência por entender que a demanda deveria ser julgada pela JT, nos termos da EC 45/2004, mas a ministra decidiu que a Justiça comum é que deve validar ou não o negócio jurídico questionado para, só então, a autora pleitear os direitos trabalhistas previstos na CLT na Justiça do Trabalho (CC 202.726/SP).
“Do jeito que as coisas estão caminhando, a Justiça do Trabalho passaria a ser apenas aquela Justiça que simplesmente ditaria quais são as verbas a receber, mas quem diria se há ou não vínculo de emprego seria o juiz comum. Será como no Tribunal do Júri, em que quem define se o réu é ou não culpado é o júri e o juiz togado apenas faz a dosimetria da pena. É algo anômalo”, criticou o professor de Direito e Processo do Trabalho da USP e juiz do Trabalho da 15ª Região (Campinas), Guilherme Guimarães Feliciano.
Empresas com mais casos no TST
Para Karolen Gualda Beber, advogada especialista em Direito do Trabalho, do escritório Natal & Manssur Advogados, é preciso que a Justiça do Trabalho pense além da CLT para resolver conflitos atuais envolvendo trabalhadores hipersuficientes. “Em sua grande maioria, as decisões da Justiça do Trabalho refletem essa ideia de que a fraude é a regra de qualquer nova forma de negociação, e, com isso, não se analisa a fundo a validade do pactuado”, analisa. “Seria essa a oportunidade de a Justiça analisar – se mediante uma nova realidade de trabalho ou formato de prestação de serviços – a viabilidade da aplicação das normas legais (que não apenas a legislação trabalhista), apurando-se, se aquele negócio firmado, naqueles moldes e mediante aquela negociação válida, foi cumprido pelas partes”.
Ao Anuário da Justiça, a ministra Maria Cristina Peduzzi defendeu que haja reconfiguração da própria CLT, com a “elaboração de novas tipologias contratuais e regimes de proteção que sejam mais adequados à realidade do trabalho em plataformas digitais, por exemplo”. “Enquanto algumas das novas relações de trabalho poderão ser enquadradas na CLT, outras exigirão da Justiça do Trabalho uma adaptação às novas circunstâncias, de modo a reconhecer a diversidade das formas de organização do trabalho”.
TRTs por quantidade de recursos enviados ao TST
Delaíde Arantes pondera que o debate em torno das novas relações de trabalho é mais complexo, diante da história escravocrata do Brasil. A ministra afirma ainda que a cassação de decisões da Justiça do Trabalho se dá em razão das posições pró-patrão da maioria dos ministros do STF. “A cassação de decisões da Justiça do Trabalho, o acolhimento amplo e indiscriminado de reclamações constitucionais, inclusive em matérias infraconstitucionais, é uma prática não compatível com a independência do Judiciário e sinaliza com a escolha de um dos ramos do pró-prio Judiciário para atacar.”
Em fevereiro de 2024, o STF começou a julgar recurso extraordinário movido pela Uber (RE 1.446.336) a fim de pacificar o tema, que também é fruto de divergências entre as Turmas do TST. O Supremo reconheceu, por unanimidade, a repercussão geral na controvérsia e afetou o Tema 1.291 para definir se há ou não vínculo empregatício nos casos dos motoristas de aplicativo. “Não se pode olvidar que há decisões divergentes proferidas pelo judiciário brasileiro em relação à presente controvérsia, o que tem suscitado uma inegável insegurança jurídica. A disparidade de posicionamentos, ao invés de proporcionar segurança e orientação, agravam as incertezas e dificultam a construção de um arcabouço jurídico estável e capaz de oferecer diretrizes unívocas para as cidadãs e cidadãos brasileiros”, justificou o ministro Edson Fachin, relator do recurso.
Paralelamente ao movimento no STF, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apresentou ao Congresso Nacional o PL que regulamenta o trabalho de motorista por aplicativo (PLC 12/24). A proposta afasta o vínculo de emprego e os direitos de quem tem carteira assinada, como fé-rias e descanso semanal remunerado, e reconhece o caráter autônomo da profissão. No entanto, estabelece remuneração mínima para o trabalhador (R$ 32,10 por hora trabalhada); limita a jornada diária de trabalho em 12 horas; e fixa contribuição ao INSS de 7,5% para os trabalhadores e 20% para as plataformas. A regulamentação brasileira diverge do que se vê em outros países, onde o vínculo de emprego é reconhecido. Os trabalhadores de delivery não estão incluídos neste PL porque, segundo o governo, ainda não há consenso na negociação com a Ifood.
“Este novo relacionamento tecnológico não cria vínculo empregatício, mas um novo conceito divergente ao celetista. E isso é tão real que motoristas podem, a qualquer momento, informarem que não estarão prestando serviços do período que ele definir, como férias pessoais. Nada o proíbe, sendo proprietário ou arrendante do veículo ou meio de locomoção, de ter duas ou mais opções de plataformas registradas (o que é comum), ou realizar outros serviços ainda que particulares, o que os tornam novamente diferenciados das previsões de 1940 (CLT) e suas atualizações”, sustenta o advogado empresarial Marcos Eduardo Piva, do Piva Advogados Associados.
Parte dos próprios motoristas protesta contra o projeto. Uma ala entende que o valor mínimo deve ser maior e outra se volta contra a obrigatoriedade de contribuição ao INSS. Para Paulo Lima, conhecido como Galo, liderança dos entregadores com cerca de 172 mil seguidores no X (ex-Twitter) e 220 mil no Instagram, há falta de consciência de classe entre os trabalhadores. “Essa ideia de que o trabalhador não quer CLT não é mentira. Os entregadores, de fato, têm problema com a CLT, com o sindicalismo e com os direitos trabalhistas”, disse em entrevista ao podcast O Velho Ronald Rios FM. Galo também critica o projeto, mas por não reconhecer o vínculo de emprego. “Eu fiquei surpreso porque o Lula e o Luiz Marinho [ministro do Trabalho] são duas carteiras de trabalho ambulantes (…). A gente tem que tirar da cabeça que isso é uma coisa que está acontecendo apenas com os trabalhadores de aplicativo. Se a carteira de trabalho deixar de existir para o entregador, também vai deixar de existir para o enfermeiro, para todo mundo”.
Para Corrêa da Veiga, vice-presidente do TST, a definição do tema no STF deve pacificar a controvérsia, que também tem dividido juízes do Trabalho na primeira instância. “É natural que, inexistindo ainda uma posição vinculante, tenham surgido alguns julgados de magistrados trabalhistas seguindo tal linha (afastando a competência da Justiça do Trabalho). Por ora, ainda se trata de situação isolada. A questão se resolverá com o julgamento pelo STF.”
Já a juíza Valdete Souto Severo, do TRT-4 (RS), acredita que eventual decisão do STF pelo não reconhecimento de vínculo de emprego terá efeito inverso e aumentará a litigiosidade. “A segurança jurídica de quem vive do trabalho está justamente na legislação social trabalhista. Quando a gente trata de uma relação de trabalho, de uma perspectiva que desprotege – e esse é o caso – estou colocando essa pessoa em uma situação de desamparo que não vai se acomodar. A litigiosidade cresce porque essas pessoas vão continuar querendo discutir seus direitos.”
O número de processos distribuídos no TST segue caindo desde 2020. Em 2021, recebeu 342.824 ações; no ano seguinte, 307.147 e, em 2023, 302.522. O total de julgados aumentou 11% no ano passado e o acervo caiu 7,8% no mesmo período. Na contramão, o tempo médio de tramitação vem subindo nos últimos anos (498 dias em 2021; 512 dias em 2022 e, no ano passado, 627).
Em março de 2024, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho regulamentou a reclamação pré-processual, modalidade em que as partes poderão buscar a solução por meio de conciliação sem a abertura de um processo formal e constituição de advogado. A criação do CSJT, inclusive, foi formalizada pela Lei 14.824/24. O conselho foi criado em 2005, mas era amparado apenas por resolução administrativa – também passou de 11 para 12 integrantes.
Em abril, o advogado Antônio Fabrício de Matos Gonçalves, ex-presidente da OAB-MG, foi indicado pelo presidente Lula para a vaga de ministro na corte aberta com a aposentadoria de Emmanoel Pereira.
Assista à cerimônia de lançamento do Anuário da Justiça Brasil 2024:
ANUÁRIO DA JUSTIÇA BRASIL 2024
18ª Edição
ISSN: 2179981-4
Número de páginas: 276
Versão impressa: R$ 50, à venda na Livraria ConJur
Versão digital: disponível gratuitamente no app “Anuário da Justiça” ou pelo site anuario.conjur.com.br
O Anuário da Justiça Brasil 2024 contou com o apoio da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP.
Anunciaram nesta edição do Anuário da Justiça Brasil:
Abdala Advogados
Advocacia Fernanda Hernandez
Antonio de Pádua Soubhie Nogueira Advocacia
Arruda Alvim & Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica
Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia
Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça Advogados
Basilio Advogados
Bottini & Tamasauskas Advogados
Cançado e Barreto Advocacia S/S
Cecilia Mello Sociedade de Advogados
Cesa — Centro de Estudos das Sociedades de Advogados
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
Corrêa da Veiga Advogados
Costa & Marinho Advogados
Cury & Cury Sociedade de Advogados
Décio Freire Advogados
Dias de Souza Advogados
DMJUS
D’Urso & Borges Advogados Associados
FAAP
Feldens Advogados
Fidalgo Advogados
Fontes Tarso Ribeiro Advogados Associados
Fux Advogados
Gomes Coelho & Bordin Sociedades de Advogados
Hasson Sayeg, Novaes e Venturole Advogados
JBS S.A.
Justino de Oliveira Advogados
Laspro Advogados Associados
Leite, Tosto e Barros Advogados
Lollato, Lopes, Rangel, Ribeiro Advogados
Machado Meyer Advogados
Marcus Vinicius Furtado Coêlho Advocacia
Mauler Advogados
Mendes, Nagib e Luciano Fuck Advogados
Milaré Advogados
Moraes Pitombo Advogados
Multiplan
Nelio Machado Advogados
Nery Sociedade de Advogados
Oliveira Lima & Dall’Acqua Advogados
Ordem dos Advogados do Brasil — São Paulo
Original 123 Assessoria de Imprensa
Pardo Advogados Associados
Prevent Senior
Sergio Bermudes Advogados
Tavares & Krasovic Advogados
Tojal Renault Advogados
Warde Advogados
Em 22 de março de 2024, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) aprovou a Resolução nº 377, regulamentando as medidas pré-processuais individuais ou coletivas no âmbito da Justiça do Trabalho concernentes às regras procedimentais que devem ser observadas quando da apresentação da reclamação pré-processual (RPP).
Trata-se de uma importante novidade que foi criada com o escopo de aprimorar o sistema multiportas de acesso à Justiça brasileira, in casu, à Justiça do Trabalho, dentro do contexto mundial de desjudicialização, como estabelecido na Agenda 2030 da ONU, na Meta 9 do Conselho Nacional de Justiça e na Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses, instituída pela Resolução 125 do CNJ de 29 de novembro de 2010.
Desde logo, é importante ressaltar que a reclamação pré-processual (RPP) não constitui um processo judicial clássico, mas sim um pedido de prestação de serviços judiciários, modalidade de direito de petição, que rende ensejo a instauração de um procedimento de jurisdição voluntária de natureza administrativa-judicial na qual a Justiça do Trabalho oferece à sociedade o serviço de mediação judicial como meio de solução consensual de controvérsias.
A Lei 13.140/15 (Lei da Mediação) define a mediação como a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia. Logo, a Justiça do Trabalho, através dos Centros Judiciários de Métodos de Solução Consensual de Disputas (Cejusc/JT), não praticará atos decisórios no tocante a demanda que lhe é apresentada, mas atuará apenas no sentido de aproximar e de facilitar que as partes interessadas cheguem por si próprias a uma solução amistosa para a controvérsia.
Essa medida não é obrigatória e pode ser apresentada de forma escrita e fundamentada por qualquer das partes antes do ajuizamento da ação trabalhista, sem a necessidade de advogados, diretamente no Sistema Pje-JT (Processo Judicial Eletrônico da Justiça do Trabalho), que promoverá a distribuição da RPP para uma das Varas do Trabalho (ou a um desembargador relator no 2º grau de jurisdição, de acordo com a competência de cada um), que funcionará como juízo natural do caso.
Em seguida, o juízo da Vara do Trabalho (ou o relator) encaminhará a RPP ao Cejusc/JT a fim de que seja iniciada a mediação judicial por um dos servidores mediadores do órgão sob a coordenação de um magistrado do trabalho supervisor. A Resolução 377 do CSJT (e também a Resolução 288/21, artigo 12, II, do mesmo CSJT), entretanto, prevê uma exceção a essa regra, qual seja, caso uma das partes esteja sem advogado na mediação pré-processual, a condução dos trabalhos de mediação propriamente dita (realização de reuniões unilaterais ou bilaterais e audiências) deverá ser feita, obrigatoriamente, por este magistrado supervisor do Cejusc/JT.
Se a mediação individual for exitosa a RPP será convertida na classe processual de Homologação de Transação Extrajudicial (HTE), caso em que o procedimento é convolado em processo judicial no próprio Cejusc/JT e receberá um provimento jurisdicional consistente em uma sentença judicial, nos termos do artigo 855-D, CLT (homologação de acordo extrajudicial, introduzido na CLT pela Lei 13.467/17), pondo fim a competência do Cejusc/JT. A partir daí, caberá à Vara do Trabalho de origem a adoção de providências necessárias ao seu aperfeiçoamento e de eventual execução do título executivo judicial.
Já na hipótese de não haver acordo na audiência de mediação ou alguma das partes não comparecer à audiência, o magistrado do trabalho supervisor do Cejusc/JT determinará o arquivamento do feito e a devolução da RPP à Vara do Trabalho de origem para adoção de eventuais providências complementares. Há isenção de custas judiciais no procedimento de mediação, com ou sem acordo.
Como se trata de um procedimento de mediação, não há apresentação de defesa embora ambas as partes tenham o direito de manifestação, se assim desejarem. Na sistemática da RPP não há julgamento ou resolução do mérito pela Justiça do Trabalho, salvo no caso de acordo, como visto acima, cuja decisão homologatória é irrecorrível, ressalvadas as disposições legais em sentido contrário (parágrafo único, artigo 831, CLT – recurso do INSS como terceiro interessado).
No âmbito do Cejusc/JT, é vedada a prática de atos processuais de natureza executiva, expedição de precatório, de alvarás (salvo para liberação do FGTS e habilitação do seguro-desemprego, no caso de celebração de acordo) e habilitação de crédito em massa falida ou recuperação judicial, bem como não pode ser realizado qualquer ato processual ou procedimental que não seja relacionado à mediação das partes.
De outro lado, o magistrado do trabalho supervisor do Cejusc/JT pode praticar todos os atos procedimentais necessários a que a mediação avance podendo, por exemplo, conceder prazo para adequações, designar audiências, marcar reuniões com a parte ou com as partes em conjunto, além de arquivar a RPP caso verifique a inviabilidade do caso (exemplo de empresas que adotam a política institucional de não fazer acordo).
A Resolução 377/24 do CSJT prevê que no caso de RPP em sede de dissídio coletivo não será proferida sentença homologatória de transação, mas sim deverá ser firmado um Acordo Coletivo ou Convenção Coletiva de Trabalho, na forma do artigo 611 da CLT, e observados os procedimentos para validação do instrumento coletivo negociado.
Pontos polêmicos da RPP
O primeiro ponto polêmico que merece destaque diz respeito a impossibilidade de a sociedade civil participar do procedimento de mediação da Justiça do Trabalho, uma vez que só os servidores do judiciário e os magistrados do trabalho (juízes e desembargadores, da ativa ou inativos) podem participar do Cejusc/JT como mediadores.
Seria assaz importante para a efetividade e democratização do sistema de mediação judicial da Justiça do Trabalho que outras instituições isentas e renomadas pudessem contribuir, direta ou indiretamente, com o Cejusc/JT, como, por exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), as universidades, associações de classe, o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) etc.
Na verdade, a rigor, não houve uma desjudicialização portanto as demandas continuam a transitar dentro do Poder Judiciário, embora com outra roupagem processual. Não basta a promoção de reuniões e eventos de divulgação com outras instituições, como prevê a Resolução 288 do CSJT, é necessário abrir as portas da mediação para uma interlocução institucional efetiva e concreta com toda a sociedade, onde todos possam se sentir parte e protagonistas desse processo de construção de meios de solução adequada de conflitos laborais na perspectiva da Justiça 4.0.
Outro ponto de debate refere-se à possibilidade de celebração de acordo (Homologação de Transação Extrajudicial – HTE) sem a presença de advogados, só com a participação do magistrado supervisor. O fato de as partes estarem desassistidas por advogados não é algo novo uma vez que desde sua criação a Justiça do Trabalho admite o jus postulandi (791 da CLT). Isso pode causar alguns constrangimentos processuais como no caso do juiz ter que orientar os interessados (ou a um deles) sobre seus direitos, o que é prerrogativa da advocacia e quebraria a imparcialidade do julgador.
Contudo, se a parte ou as partes assim decidiram seguir, deve ser respeitada a vontade de se valer de seu direito de postular em juízo por conta própria. Não é, claro, uma opção recomendável em razão dos diversos percalços que isso pode gerar para si, mas ninguém melhor do que a própria parte interessada para decidir sobre sua vida.
Também merece atenção a questão atinente a gravação das audiências de mediação, como está previsto no artigo 9º, inciso IV, da Resolução CSJT 288/21, que deu base a criação da Resolução CSJT 377/24. Esse procedimento de registro audiovisual das audiências de mediação pode violar os princípios da confidencialidade, da oralidade e da informalidade (artigo 2° da Lei da Mediação – Lei 13.140/15 – c/c artigo 166, §2º, CPC).
O que se passa nos procedimentos de mediação, as tratativas e afirmações das partes etc., em regra, fica e se encerra na mediação. Por isso, o magistrado que participa da audiência de mediação não pode julgar o processo das partes, caso o acordo não seja feito ou seja descumprido posteriormente. Do mesmo modo, os mediadores e os membros das equipes de mediação não podem divulgar ou depor acerca de fatos ou elementos oriundos da mediação.
Na RPP ocorre o mesmo. Todas as informações reveladas não podem ser utilizadas como meio de prova, confissão ou prova emprestada para fins de instrução em outro procedimento ou processo judicial, pois isso quebraria a boa-fé e a confiança na mediação enquanto meio adequado de aproximação e de reconstrução do diálogo entre as partes.
Outro escólio diz respeito a concepção dos Cejusc/JTs como unidades judiciárias autônomas, embora vinculadas e subordinadas administrativamente aos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Disputas (Nupemec-JT), cujas decisões em geral são irrecorríveis, tanto nas RPP individuais como nas coletivas.
Entretanto, existem duas hipóteses em que as decisões podem ser questionadas (além daquela prevista no mencionado artigo 831, p.u., CLT). A primeira está prevista na própria Resolução CSJT nº 288/21 (artigo 2º, II), quando dispõe que as decisões proferidas pelo Cejusc-JT estão sujeitas a atuação correcional, ordinária e extraordinária, das respectivas Corregedorias da Justiça do Trabalho, nos âmbitos dos TRTs e do TST.
Com efeito, em tese, a parte que se julgar eventualmente prejudicada por uma decisão do magistrado do trabalho supervisor do Cejusc-JT pode apresentar uma reclamação correcional (correição parcial, pedido de providências etc.) à Corregedoria do respectivo Tribunal Regional do Trabalho ou à Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho, conforme a referida decisão seja de primeiro grau ou de segundo grau, objetivando a cassação de atos atentatórios à boa ordem processual/procedimental (Lei nº 14.824, de 20 de março de 2024).
A segunda hipótese que destacamos refere-se ao manejo processual do mandado de segurança diante de eventual decisão arbitrária e ilegal praticada pelo Cejusc-JT, que tenha violado direito líquido e certo da parte interessada. Nesses casos, deve-se aplicar a Súmula 414 do TST c/c a Lei 12.016/09, uma vez que prevalece nesse microssistema procedimental a regra da irrecorribilidade das decisões.
Seria o caso, por exemplo, de uma decisão do Cejusc-JT proibindo que a parte interessada se faça acompanhar do seu advogado em uma reunião (separada ou em conjunto com a outra parte) de mediação. Tal ato viola o direito líquido e certo de toda pessoa de se fazer representar por advogado, como corolário do direito fundamental de ampla defesa e contraditório.
O mesmo pode ocorrer diante de eventual normativa do Cejusc-JT no sentido de que sejam expedidas peças aos órgãos de controle (DRT, MPT etc.) uma vez verificada a presença de supostas irregularidades trabalhistas reconhecidas por uma ou por ambas as partes interessadas, o que violaria, como vimos acima, os princípios básicos da mediação e que constituem direitos subjetivos processuais dos interessados, salvo no caso de constatação de fato tipificado como crime.
Por último, mas não menos importante, cumpre obtemperar que se a parte estiver assistida por advogado e for celebrado acordo no âmbito do procedimento da RPP, haverá a incidência do disposto no artigo 791-A da CLT, isto é, serão devidos honorários advocatícios sucumbenciais (de 5% a 15%), uma vez que a sentença homologatória da transação firmada tem natureza jurídica de título executivo judicial.
Conclusão
A RPP inova os meios de acesso à Justiça do Trabalho em boa hora, quebrando as últimas moléculas de resistência a esse relevante meio de solução consensual de conflitos laborais. O sistema de justiça brasileiro é fortalecido e se mostra adaptativo e flexível às demandas da sociedade do século 21. As correções de rumos e os aperfeiçoamentos devem ser feitos paulatinamente na medida em que os problemas e os pontos polêmicos forem constatados.
é advogado, sócio e fundador do escritório Fernandes e Silva Advogados Associados, doutor, mestre e especialista em Direito, professor adjunto de Relações de Trabalho da Escola de Direito da FGV Direito Rio e da UFRRJ, presidente da Comissão de Direito Cooperativo do IAB, professor convidado e coordenador acadêmico de cursos internacionais realizados na Universidade de Coimbra.
A 17ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região manteve sentença que reverteu justa causa de uma auxiliar de limpeza que faltou ao trabalho por 12 dias em razão de internação de filho de um ano de idade.
Mulher demitida por faltar para acompanhar filho de um ano será indenizada
Segundo os autos, a mulher juntou atestado médico com a concessão do afastamento. O documento também continha a informação de que a criança estava hospitalizada acompanhada da mãe.
A empresa, no entanto, justificou a dispensa motivada alegando desídia. Em defesa, disse que a Consolidação das Leis do Trabalho autoriza apenas uma falta anual para acompanhar filho de até seis anos em consulta médica, “de modo que as faltas da autora foram injustificadas”.
Na decisão, o desembargador-relator Homero Batista Mateus da Silva explica que as situações listadas no artigo 473 da CLT são meramente exemplos das ausências que a lei trabalhista considera abonadas, casos em que o empregador não deve descontar do salário e do período de férias.
Com isso, ressalta que o dispositivo não elenca todas as situações, como acompanhamento de filho em procedimento médico-hospitalar. E esclarece que o trecho referido pela ré para motivar a justa causa se trata de consulta, o que não é o caso dos autos.
Para o magistrado, a dispensa não se mostra razoável e proporcional. Ele pontua que “tal conduta afronta princípios basilares, como bem destacados pelo juízo de origem, da proteção integral do menor (art. 227 da CF), da função social da empresa (art. 5°, XXIII, da CF) e da dignidade da pessoa humana (art. 1°, III, da CF)”.
Com a decisão, a mulher receberá indenização por dano moral no valor de R$ 8 mil, além de todos os direitos de uma dispensa imotivada, entre eles aviso prévio, seguro-desemprego, FGTS e multa de 40%, férias e 13º proporcionais. Com informações da assessoria de comunicação do TRT-2.
Todo avanço, por mais singelo que seja, deve ser comemorado. Não quero, com isso, dizer que estejamos diante de uma conquista sem muita importância, mas não podemos perder de vista a dimensão do problema que temos a enfrentar [1].
Será preciso muito mais do que uma lei — ou até um conjunto de leis — para que mulheres e homens tenham efetiva igualdade. Quero, aqui, trazer alguns conceitos básicos da filosofia política contemporânea acerca da injustiça estrutural para que possamos lançar um olhar crítico sobre a inovação legislativa e compreender seus limites.
Utilizarei a ideia de injustiça estrutural desenvolvida por Iris Young (1949-2006), filósofa e cientista política da Universidade de Chicago, e uma das principais teóricas do tema. A escolha da autora se deve ao fato de seus estudos terem sido muito influenciados por teorias feministas e por sua abordagem sobre a responsabilidade se amoldar muito bem ao caso das mulheres no mercado de trabalho.
É de conhecimento geral que mulheres ganham menos que homens, se ocupam mais de trabalhos não remunerados, com o cuidado da família e do lar, e são minoria em cargos de chefia e de poder.
A remuneração média mensal dos homens, em 2022, foi de R$ 2.838, ao passo que a das mulheres foi pouco mais de 21% inferior (R$ 2.235).
A discrepância é ainda mais acentuada quando fazemos um recorte por cor ou raça: homens brancos receberam, em 2022, R$ 3.793, mulheres brancas, R$ 2.858, homens pretos ou pardos, R$ 2.230, e mulheres pretas ou pardas, R$ 1.781.
Outro recorte que demonstra disparidades salariais ainda maiores são aqueles em razão do ramo de ocupação. Mulheres em setores profissionais das ciências e intelectuais recebem remuneração média 36,7% inferior em relação aos homens. Já aquelas que ocupam cargos de direção e chefia receberam, em 2022, remuneração média de R$ 5.870, contra R$ 7.948 recebidos pelos homens nas mesmas posições.
A diferença remuneratória também é fruto da maior participação feminina ou masculina em determinados ramos da economia. No setor identificado pelo IBGE como “informação, financeiro e outras atividades profissionais”, que tem o maior rendimento médio (R$ 3.816), as mulheres ocuparam 42,1% das posições, ao passo que, no setor pior remunerado, o dos serviços domésticos (R$ 1.036), elas eram 91,3%.
As diferenças de gênero também se refletem nos níveis de ocupação. Em média, 46,3% das mulheres estavam ocupadas em 2022 contra 66,6% dos homens. Essa distância, contudo, vai diminuindo quanto maior o nível de escolaridade. Assim é que, entre pessoas sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto, 23,5% das mulheres estavam ocupadas contra 50,4% dos homens. Já entre aqueles com nível superior completo, a taxa de ocupação era de 73,7% para as mulheres e 84,2% para os homens.
As mulheres também gastam mais horas nos cuidados não remunerados com a família e com o lar. Em 2022, elas dedicaram, em média, 21,3 horas por semana nestas atividades contra 11,7 horas despendidas pelos homens.
Quando se faz um recorte por renda, “as mulheres que faziam parte dos 20% com os menores rendimentos, em 2022, dedicaram 7,3 horas a mais ao trabalho doméstico não remunerado que aquelas situadas nos 20% com os maiores rendimentos” [3]. Isso porque mulheres com melhor situação financeira conseguem contratar o trabalho doméstico remunerado, delegando as atividades de cuidados e/ou afazeres domésticos. Ocorre que essa delegação é feita sobretudo a outras mulheres, já que elas são mais de 91% das pessoas ocupadas em serviços domésticos remunerados.
Outra consequência desta divisão das tarefas não remuneradas é a maior participação feminina em contratos de trabalho a tempo parcial – até 30 horas por semana. Enquanto 28% das mulheres estão nesta situação; entre os homens, os trabalhadores em tempo parcial são apenas 14,4%.
Teto de vidro
Mesmo em ambientes em que se observa grande evolução quanto à participação feminina, como no Judiciário, por exemplo, há uma barreira invisível (teto de vidro) para que elas ocupem cargos mais elevados. Dados do CNJ mostram que, também em 2022, no primeiro grau de jurisdição, 40% dos magistrados eram mulheres, ao passo que as desembargadoras e ministras era apenas 25%.
Por fim, mulheres são pouco representadas politicamente. Embora constituam 52,7% do eleitorado e a despeito da obrigatoriedade de observância das cotas nas candidaturas prevista na Lei nº 12.034/2009, elas eram apenas 17,9% dos deputados federais em exercício em 2023. O Brasil ocupa o último lugar dentre os países da América Latina em termos de igualdade de distribuição de posições políticas entre gêneros e o 133º lugar mundial – dentre 186 nações analisadas.
Lei de Igualdade Salarial
O projeto que deu origem à Lei nº 14.611/2023, de iniciativa do Poder Executivo, propunha obrigar “a igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens e cria[r] meios para que a desigualdade seja verificada, punida e sanada, contribuindo para a garantia de direitos das trabalhadoras” [4].
A lei sancionada inseriu dois parágrafos no artigo 461 da CLT — que trata da equiparação salarial — e criou mecanismos de fiscalização e transparência no seu cumprimento, canais específicos para denúncias, punição mais severa para os que a descumprirem, além de obrigar a publicação periódica de relatórios com informações salariais e remuneratórias para empresas com mais de cem empregados.
No entanto, os números aqui apresentados deixam claro que a mulher é mais mal remunerada do que o homem não apenas por uma falta de equiparação salarial no ambiente de trabalho, mas porque está em setores menos valorizados da economia, não dispõe de tanto tempo para se dedicar ao trabalho remunerado quanto o homem, não consegue muitas vezes vencer as barreiras invisíveis para ocupar posições de chefia e liderança.
Talvez sob essa ótica, a maior contribuição da lei seja a consolidação e a publicação periódica de dados pelo Poder Executivo federal a respeito do mercado de trabalho e renda da mulher, inclusive com indicadores sobre violência contra a mulher, vagas em creches públicas, acesso à formação técnica e superior, serviços de saúde e outros dados que tenham impacto no acesso ao emprego e à renda e que possam orientar a elaboração de políticas públicas (artigo 5º, §4º).
Mudanças estruturais
Como disse no início, não se pode deixar de aplaudir iniciativas como as da Lei nº 14.611/2023. Aliás, parte do problema pode até ser resolvido a partir delas. No entanto, precisamos enxergar a realidade sob uma perspectiva ampla e compreender que apenas mudanças estruturais podem alterar esse quadro.
Uma estrutura social pode ser definida como o conjunto de “resultados acumulados das ações das massas de indivíduos que executam os seus próprios projetos, muitas vezes sem coordenação com muitos outros” [5]. Comumente, tais ações produzem resultados não desejados por nenhum dos agentes participantes.
A partir desse conceito, muitos filósofos vão se dedicar a estudar o que caracteriza determinada estrutura social como justa ou injusta. Para alguns [6], a injustiça é um problema simplesmente de distribuição, não apenas distribuição de recursos, como também de posições e encargos entre os membros da sociedade. Para essa concepção de justiça, a distribuição adequada desses elementos leva a uma estrutura social justa.
Para outros, essa visão é um pouco estreita. Isso porque não leva em conta o conceito de grupo social como “um conjunto de pessoas diferenciadas de ao menos um outro grupo por motivos culturais, por suas práticas, (…) estilo de vida” [7] ou identidade. Comumente, nas concepções meramente distributivas de justiça, leva-se em consideração o indivíduo — e a sua busca pela felicidade e concretização de seus planos de vida —, pelo que a preocupação com a diferença geralmente é tratada em temos de grupos mais ou menos favorecidos. Falta ou é insuficiente, nestas abordagens, o aspecto coletivo.
A justiça social, portanto, não significa a eliminação das diferenças entre os grupos sociais – o que seria até mesmo impossível, por se tratar de uma questão de identidade –, mas sim permitir que todos os grupos possam ser respeitados na sociedade.
Nesta acepção mais ampla, uma estrutura social justa deve contar com “condições institucionais necessárias ao desenvolvimento e exercício das capacidades individuais e da comunicação e cooperação coletiva” [8]. Assim, uma sociedade justa é aquela em que os grupos sociais estão livres de opressão e de dominação, e, portanto, em que os indivíduos podem, respectivamente, autodesenvolver-se e autodeterminar-se.
Os números aqui apresentados deixam claro que as mulheres constituem um grupo social oprimido e dominado, o que é resultado do funcionamento da própria estrutura social em que vivemos. Confirmam, ainda, que há outros grupos sociais com os quais as mulheres podem se identificar e, a depender deles, podem estar em situações de maior ou menor opressão ou dominação. É o caso, por exemplo, da mulher negra em relação à mulher branca.
Certamente, com a efetiva fiscalização do cumprimento da lei, dentro de uma mesma empresa e realizando a idêntica função, uma mulher vai ganhar o mesmo que um homem. No entanto, questões como por que mulheres se engajam mais em atividades com pior remuneração, por que mulheres não estão em mais cargos de chefia ou por que elas são as mais ocupadas nas tarefas de cuidado não remuneradas não podem ser inteiramente atribuídas à conduta de uma empresa ou de um grupo de empresas.
Em situações como esta, em que há clara injustiça, devemos diferenciar as ideias de culpa e de responsabilidade [9]. A culpa é relacionada a ações passadas e pode ser atribuída a algum indivíduo ou empresa identificável que, diretamente e com sua própria ação ou omissão, tenha contribuído para o resultado. Para estas situações, iniciativas como as punições previstas na lei são ideais. Repara-se o dano e evita-se a reincidência.
Contudo, a ideia de culpa pode nos distrair e impedir que reconheçamos efetivamente nossa responsabilidade na injustiça praticada. A responsabilidade se distingue da culpa na medida em que ela analisa a ação presente dos indivíduos e seus possíveis efeitos no futuro. Além disso, a responsabilidade dificilmente é individual. Ao contrário, é coletiva e consiste na observação do funcionamento das instituições, no monitoramento de suas ações e na manutenção de um espaço público de diálogo.
Não apenas os indivíduos que sofrem as injustiças — neste caso, as mulheres — devem se engajar politicamente para garantir que instituições funcionem de maneira mais justa e para pleitear mais voz e poder. Em especial aqueles que, mesmo sem agirem deliberadamente para tanto, se encontram em posições privilegiadas e que são beneficiados por essa mesma estrutura – e aqui falo dos homens como grupo social contraposto ao das mulheres –, têm grande responsabilidade política, até mesmo porque estão entre aqueles com maior representatividade política e poder.
E, por isso, é muito importante nos afastarmos da ideia de culpa — já dizia Hanah Arendt que, “onde todos são culpados, ninguém é” —, já que ela produz reações de defesa, e nos aproximarmos da ideia de responsabilidade, que leva à ajuda cooperativa.
A ideia de responsabilidade nos leva a agir e, no mínimo, a questionar por que práticas sociais, políticas e econômicas arraigadas na nossa estrutura social levam a um resultado injusto para determinados grupos.
Um dos pontos mais interessantes da lei é a publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas empresas com cem ou mais empregados (artigo 5º). O acesso a esse tipo de informação permitirá que a sociedade civil cobre destas empresas tratamento mais justo com relação às mulheres e pode levar, até mesmo, a ações de boicote — muitas vezes mais eficientes que qualquer medida legal, como mostram as experiências com a indústria da moda e a exploração exaustiva e alijada de direitos da mão de obra ou, ainda, o recente caso de trabalho análogo à escravidão em empresas engajadas na produção de vinho do sul do país.
Ainda que a inconstitucionalidade da publicação de tais relatórios venha a ser declara pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 7.612 e ADI 7.631), havendo cobrança por parte da sociedade que venha a abraçar esta causa, nada impede que algumas empresas divulguem espontaneamente seus dados e queiram, realmente, criar um ambiente justo e igualitário quanto ao gênero para seus empregados, ainda que seja apenas para promover sua imagem ou não afastar consumidores.
Uma vez que tomamos consciência das injustiças estruturais e reconhecemos nossa responsabilidade coletiva na transformação da sociedade, podemos moldar nossas ações em vistas a uma transformação.
Obviamente, decisões diretamente relacionadas à posição das mulheres no mercado de trabalho, como escolher qual empregado contratar ou promover ou, ainda, fixar critérios remuneratórios, afetam sua condição. Mas não podemos esquecer que pequenos gestos ou hábitos de nosso próprio cotidiano, como a forma como educamos as crianças, dividimos os afazeres domésticos e escolhemos em quem votar, além de termos empatia com mulheres, buscarmos conhecimento e disseminar informações sobre questões de gênero, apoiar o empoderamento feminino e reprimirmos falas e ações machistas ou misóginas, têm peso relevante na construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e solidária, e verdadeiro potencial de mudar o rumo das coisas.
[1] Esse texto consiste na fala da autora em evento sobre o tema ocorrido no Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) em 23/5/2024.
[2] Os dados apresentados foram coletados das seguintes fontes: BRASIL, Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Participação feminina na magistratura: atualizações. Brasília, DF: CNJ, 2023; IBGE. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. 3ª edição. IBGE: 2024; e IBGE. Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2023. Rio de Janeiro: IBGE, 2023.
[4] Trecho da justificativa do projeto de lei, assinada pela ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves, e pelo ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho.
[5] YOUNG, Iris Marion. Responsibility for justice. Nova York: Oxford University Press, 2011, p. 62.
[6] Exemplo de autor que defende um paradigma distributivo é John Rawls, em sua ora “Uma teoria da justiça”.
[7] YOUNG, Iris Marion. Justice and the politics of difference. Princeton: Princeton University Press, 2022, p. 43.
é doutoranda e mestre em Direito do Trabalho e Previdenciário pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), membro honorário da Comissão de Direito do Trabalho do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e servidora do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.
O ministro Alexandre de Moraes deixa o Tribunal Superior Eleitoral nesta segunda-feira (3/6) após quase dois anos como presidente da corte. Ele passa o bastão para Cármen Lúcia, que conduzirá a Justiça Eleitoral nas eleições deste ano.
Alexandre tomou posse em agosto de 2022, em uma cerimônia que, ao contrário de outras, não tinha nada de esvaziada ou protocolar: contou com a presença de 20 governadores, 40 representantes de embaixadas estrangeiras, ministros e ex-ministros do Supremo, ex-presidentes e políticos de diferentes campos ideológicos, na presença de um Jair Bolsonaro acuado.
A solenidade cheia dizia menos sobre a popularidade do ministro e mais sobre o momento que o país atravessava: o aumento da pressão de setores militares quanto ao processo eleitoral e as tentativas de colocar em dúvida a higidez das urnas acenderam um alerta, em especial no Judiciário, que se tornou o alvo preferencial de ataques.
O discurso de Alexandre deu o tom daquilo que talvez mais representou sua gestão: a Justiça pode até ser cega, mas não deve ser também tola em momentos de ameaça à democracia.
“A intervenção da Justiça Eleitoral será mínima, porém célere, firme e implacável no sentido de coibir práticas abusivas ou divulgações de notícias falsas ou fraudulentas. Principalmente aquelas escondidas no covarde anonimato das redes sociais, as famosas fake news”, disse na ocasião.
Legado
Embora a atuação de Alexandre tenha ajudado a refrear o aumento de notícias falsas contra candidatos e ao próprio processo eletrônico de votação, o ministro e o TSE acabaram alvo de críticas, às vezes de uma suposta censura, e em outras de “extrapolar limites”.
Com a estatura que ganhou nos últimos anos e pelo fato de ter se tornado uma pessoa sobre a qual ninguém no país deixa de ter opiniões — boas ou ruins —, as críticas eram esperadas, segundo o ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal.
“É natural que em um momento de conflagração e conflituosidade uma pessoa no papel dele seja criticada. Isso aconteceu porque ele cumpriu um papel importantíssimo e enfrentou as fake news”, disse Gilmar à revista eletrônica Consultor Jurídico.
Para o decano do STF, no entanto, o fato a se destacar é outro. É o de que o ministro deixa “um legado importante” para as próximas eleições e que “toda essa sistemática para lidar com fake news fortaleceu a Justiça Eleitoral, que é extremamente importante.”
“Ele teve um papel singularíssimo. Foi o homem certo, no lugar certo, na hora certa. Em um um momento de grave crise e agressão às instituições ele soube impor limites e impedir que houvesse o comprometimento das eleições”, afirmou Gilmar.
Fake news
Uma das decisões mais relevantes do ministro quanto ao combate às fake news foi tomada 10 dias antes do segundo turno das eleições presidenciais de 2022. O tribunal, sob a batuta de Alexandre, aprovou uma resolução ampliando as possibilidades de combate às notícias falsas e dando mais agilidade para a retirada de conteúdos desinformativos.
Posse de Alexandre contou com a presença dos ex-presidente Dilma Rousseff, José Sarney, Michel Temer e Luiz Inácio Lula da Silva, então na posição de ex-presidente e postulante à presidência
O texto, aprovado por unanimidade, determinou que toda decisão de exclusão de conteúdo falso ou injurioso poderia ser estendida de ofício para “outras situações com equivalência de conteúdo”, sem a necessidade de uma nova representação judicial.
Ou seja, se uma primeira decisão determinou a remoção de um determinado vídeo ou montagem, não seria mais preciso aguardar uma nova provocação ao Judiciário para excluir um post idêntico, mas publicado por outra pessoa.
O tribunal também reduziu o prazo máximo para a remoção dos conteúdos pelas redes e provedores para duas horas. Antes, as redes tinham 24 horas para cumprir as determinações.
A preocupação sobre o tema seguiu até o final do mandato. No final de fevereiro, o ministro cobrou do Congresso a regulação das redes sociais.
Um dos dispositivos prevê a cassação do candidato que fizer uso irregular da tecnologia; proíbe “deep fake” nas propagandas.
Na mesma oportunidade, a corte cumpriu um desejo antigo do presidente Alexandre: impôs uma série de obrigações às empresas de tecnologia, para impedir ou diminuir a circulação das fake news eleitorais, com previsão de responsabilização civil e administrativa — algo que o Congresso Nacional poderia ter feito, mas não fez a tempo.
No entanto, um dos maiores méritos da gestão, segundo o próprio ministro, envolve a cota de gênero.
Ao participar da última sessão no TSE, na quarta-feira passada (29/5), Alexandre falou de sua gestão e defendeu, como responsabilidade de todos os poderes, o combate às notícias falsas e a regulação das redes.
Alejandro Zambrana/secom/TSE
Gestão de Alexandre foi responsável por importantes avanço no combate às notícias falsas
“Não é possível admitir que haja a continuidade do número massivo de desinformação, as notícias fraudulentas, as deep fakes e as notícias anabolizadas pela IA. Não é mais possível que toda a sociedade e todos os poderes aceitem essa continuidade sem regulamentação mínima. Eu sempre digo e sempre repito: o que não é possível na vida real, não pode ser possível no mundo virtual”, disse.
“Esse TSE dá o exemplo da necessidade de rompimento dessa cultura de impunidade nas redes sociais, seja com as decisões e regulamentações das eleições de 2022, seja agora, recentemente, com a aprovação das resoluções para 2024”, prosseguiu.
Alexandre também foi elogiado por seus pares. A ministra Cármen Lúcia, que assume a presidência do TSE, disse que os ataques contra a corte e contra as urnas eletrônicas durante as eleições de 2022 exigiam uma postura firme como a de Alexandre.
“Vossa Excelência dá demonstração permanente de compromisso com coisa pública, com o interesse público democrático. Esse é o diferencial. Principalmente nos momentos mais recentes em que corriam risco a democracia brasileira e o estado de direito. A atuação do TSE desempenhou papel fundamental para manter a democracia não apenas garantida, mas fortalecida”, disse a ministra.
André Mendonça, eleito para ocupar o cargo que ficará vago com a saída de Alexandre, também elogiou a gestão do colega.
“Meu registro da gestão exitosa de Vossa Excelência à frente do TSE, conduzindo o tribunal em tempos que, por vezes, houve turbulências, questionamentos”, afirmou, Mendonça, que também destacou a atuação “firme” e “competente” de Alexandre.
Na última sessão do ministro no TSE, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, disse que a atuação de Alexandre seguirá inspirando respostas a novos desafios na seara eleitoral.
“A essas inquietantes ameaças à livre formação de ideias e convicções, vossa excelência esteve atento e minuciosamente vigilante. Com apoio determinante dos integrantes dessa casa, foram postas em prática providências de cautela, prevenção e repressão com toda pujança e sobranceria admitida pelo direito e a tempo hábil para reprimir abuso de direito.”