por NCSTPR | 24/09/25 | Ultimas Notícias
Condenação reforça importância da inclusão no trabalho e dá visibilidade aos desafios enfrentados por pessoas surdas e deficientes na sociedade.
Da Redação
A juíza Paula Rodrigues de Araujo Lenza, da vara do Trabalho de Ribeirão Preto/SP, condenou multinacional a pagar indenização de R$ 100 mil a funcionária com deficiência auditiva que sofreu práticas reiteradas de assédio moral e ambiente discriminatório.
A magistrada reconheceu nexo entre o ambiente hostil e o quadro de depressão e ansiedade da funcionária, caracterizando dano moral mesmo sem incapacidade laboral atual.
O caso
A ação foi movida por funcionária que relatou ter sido alvo de perseguições por parte de seu superior e de colegas, além de sofrer exclusão em atividades de trabalho. Segundo a trabalhadora, piadas sobre sua deficiência eram recorrentes e a comunicação em libras era frequentemente desconsiderada.
A situação se agravou durante a pandemia, quando o uso de máscaras opacas dificultou ainda mais a interação da empregada com os colegas. Testemunhas ouvidas no processo confirmaram a hostilidade no ambiente laboral e a ausência de medidas inclusivas.
Para o juízo, a conduta da empresa configurou clara violação à LBI – Lei Brasileira de Inclusão. Embora cumprisse a cota legal de contratação de pessoas com deficiência, a empregadora falhou em assegurar condições efetivas de acessibilidade e inclusão, permitindo um ambiente de trabalho excludente.
Doença ocupacional
Segundo a juíza, laudo médico pericial identificou quadro de depressão e ansiedade da funcionária, reconhecendo nexo concausal entre os problemas de saúde e o ambiente hostil.
Ainda que a perícia tenha afastado incapacidade laboral atual, a juíza concluiu que o sofrimento experimentado caracterizou dano moral em razão da doença ocupacional.
Assim, além da indenização por assédio moral, foi fixada compensação pelo impacto da doença, compondo o valor final de R$ 100 mil.
A magistrada também condenou a empresa ao pagamento de diferenças de FGTS, da participação nos lucros e resultados proporcional ao período trabalhado em 2023, de indenização pelo descumprimento de cláusula coletiva, além de honorários advocatícios e periciais.
Além disso, foi reconhecida a estabilidade provisória decorrente da doença ocupacional, assegurando à trabalhadora indenização substitutiva referente ao período de garantia de emprego.
O advogado Pedro França, que atuou pro bono pela funcionária com deficiência auditiva, destacou que a ação ultrapassa o âmbito individual, trazendo à tona a urgência da inclusão efetiva no mercado de trabalho e na própria sociedade.
Segundo ele, a comunicação foi o ponto central do litígio: além dos episódios de assédio e discriminação sofridos no ambiente de trabalho, a reclamante enfrentou dificuldades de acessibilidade também no próprio processo judicial. “Houve barreiras na comunicação direta com o juiz, com os advogados, com as testemunhas e até para acompanhar o ritmo da audiência, que durou mais de três horas e meia”, relatou.
Para o advogado, o paradoxo é claro, se o Judiciário é a instância de proteção contra a discriminação, para pessoas surdas ele ainda se apresenta como espaço de obstáculos, diante da ausência de recursos adequados de acessibilidade.
Processo: 0011966-71.2024.5.15.0067
Outros relatos
Em entrevista ao Migalhas, a intérprete e psicóloga Denise Perissini relatou sua trajetória e os desafios de atuar com a Língua Brasileira de Sinais no Judiciário. Apaixonada pela comunicação visual desde cedo, mesmo sem ter familiares surdos, buscou formação para se especializar na área.
Segundo Denise, a presença de intérprete é um direito fundamental, essencial para garantir que pessoas surdas tenham pleno acesso à Justiça. Ela lembra que, sem esse recurso, provas importantes podem se perder, comprometendo a dignidade e a efetividade do processo.
Apesar da relevância da função, Denise aponta a precariedade na remuneração e na valorização da Libras no Brasil. Os pagamentos, muitas vezes baixos e demorados, levam profissionais a recusar convites. Além disso, ela defende maior inclusão da língua nos currículos escolares, lembrando que há cerca de 10 milhões de surdos no país.
Confira: https://youtu.be/xEOksw5mtos
Histórico nos Tribunais
Em 2019, o STJ editou a Instrução Normativa 19/19 para garantir acessibilidade a advogados com deficiência ou mobilidade reduzida nas salas de julgamento. A medida, em conformidade com a resolução 230/16 do CNJ e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, prevê a eliminação de barreiras, a oferta de informações e serviços em formatos acessíveis e a adoção do conceito de desenho universal.
Entre as ações previstas, está a possibilidade de solicitação de adaptações para a realização de sustentação oral, feita pelo portal do STJ com antecedência mínima de um dia útil. O sistema permite informar a deficiência e o tipo de apoio necessário, assegurando assistência personalizada. Além disso, as salas de julgamento terão espaços reservados para pessoas com deficiência, garantindo visibilidade e livre acesso a todas as instalações do tribunal.
MIGALHAS
https://www.migalhas.com.br/quentes/440759/deficiente-auditiva-recebera-r-100-mil-por-assedio-moral-no-trabalho
por NCSTPR | 24/09/25 | Ultimas Notícias
Segundo a 1ª turma, não ficou provado que a contratação se deu em vagas destinadas a concursados.
Da Redação
A 1ª turma do STF, em decisão unânime, reverteu decisão do TST que impunha à ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos a obrigação de substituir trabalhadores temporários por candidatos aprovados no concurso público de 2011.
A decisão do TST, originada de uma ação movida pelo Ministério Público do Trabalho, considerava que a ECT havia recorrido à contratação de mão de obra temporária para o cargo de agente de correios, em detrimento dos candidatos aprovados no certame anterior.
A Corte trabalhista fundamentou sua decisão no Tema 784 da repercussão geral, que assegura o direito à nomeação ao candidato aprovado dentro do número de vagas, cuja ordem de classificação não foi observada, quando surgem novas vagas ou é realizado novo concurso durante a validade do anterior.
Na reclamação, a ECT argumentou que não houve novo concurso durante a validade do anterior e que as contratações temporárias se destinaram a vagas distintas das previstas no edital 11/11. A empresa também alegou que a decisão do TST implicaria na contratação contínua de candidatos aprovados fora do número de vagas, mesmo após o término da validade do concurso público.
No julgamento, a turma do STF considerou que as contratações temporárias não configuram, por si só, a preterição de candidatos. O colegiado ressaltou que não foi demonstrado que as contratações ocorreram nas mesmas vagas previstas no concurso. O ministro Flávio Dino enfatizou que, se a decisão do TST fosse mantida, a ECT seria obrigada a contratar 20 mil novos empregados, correspondente ao volume de contratações temporárias realizadas após 2011.
O ministro Cristiano Zanin destacou que a ECT contratou cerca de 2.213 candidatos do cadastro de reserva do concurso de 2011. Também se manifestaram no mesmo sentido os ministros Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia.
O ministro Luiz Fux, relator da ação, inicialmente mantinha a decisão do TST, mas reajustou seu voto, considerando as consequências para a empresa, que seria obrigada a demitir 20 mil pessoas e contratar outras tantas, o que, a seu ver, geraria insegurança jurídica.
Processo: Rcl 57.848
MIGALHAS
https://www.migalhas.com.br/quentes/440784/stf-anula-decisao-que-exigia-demissao-de-temporarios-dos-correios
por NCSTPR | 24/09/25 | Ultimas Notícias
A aposentadoria por invalidez sempre foi concebida pelo legislador brasileiro como um benefício de natureza precária. Essa precariedade justificava a previsão de suspensão do contrato de trabalho, e não sua extinção, permitindo que, em caso de recuperação da capacidade laborativa, o trabalhador tivesse assegurado o retorno ao posto. Esse raciocínio, consagrado no artigo 475 da CLT e consolidado na Súmula 160 do Tribunal Superior do Trabalho, vigorou por décadas como elemento de proteção ao empregado afastado.
Entretanto, a realidade normativa atual já não é a mesma que inspirou a jurisprudência consolidada. O artigo 101, §1º, da Lei 8.213/91, com as redações introduzidas em 2014, 2017 e, mais recentemente, em 2025, alterou profundamente o regime de revisão da aposentadoria por invalidez. O legislador passou a isentar determinados aposentados por invalidez da realização de perícias médicas periódicas, notadamente aqueles que completam 55 anos de idade e contam com pelo menos 15 anos de benefício, ou, de forma ainda mais expressiva, os que atingem 60 anos.
Esse ponto é crucial: ao retirar a exigência de reavaliação, a lei criou hipóteses em que a aposentadoria por invalidez se torna, na prática, irrevogável pelo INSS. E se não há mais previsão de cancelamento por reabilitação, o fundamento que justificava a manutenção eterna da suspensão contratual deixa de existir.
A Súmula 160 do TST, editada em 1971, prevê que:
“Cancelada a aposentadoria por invalidez, mesmo após cinco anos, o trabalhador terá direito de retornar ao emprego, facultado, porém, ao empregador, indenizá-lo na forma da lei.”
Esse enunciado foi construído em um contexto histórico específico: à época, a legislação previdenciária obrigava a revisão periódica e não contemplava hipóteses de estabilização definitiva do benefício. O raciocínio era lógico: se a aposentadoria podia ser revista “a qualquer tempo”, não faria sentido admitir a rescisão do contrato enquanto o benefício estivesse ativo.
Mas essa lógica não dialoga mais com a ordem normativa atual. O que antes era uma aposentadoria sempre revisável transformou-se, em determinadas hipóteses, em benefício que não pode mais ser revisado de ofício pela Previdência. A “provisoriedade” que sustentava a Súmula 160 foi, em parte, suprimida pelo próprio legislador.
Sendo assim, a manutenção da jurisprudência tradicional sem reconhecer a mudança legal cria um desequilíbrio inaceitável. Empresas são obrigadas a carregar, por tempo indefinido, contratos suspensos que jamais serão retomados, salvo se por iniciativa do próprio empregado.
Esse quadro gera problemas práticos relevantes:
1. Gestão de pessoal: a existência de contratos “congelados” impede reorganizações administrativas plenas e dificulta a gestão de passivos trabalhistas.
2. Custos indiretos: mesmo com a suspensão, muitas obrigações acessórias permanecem, como a manutenção de benefícios (plano de saúde, por exemplo, assegurado pela Súmula 440 do TST).
3. Passivos ocultos: a cada tentativa de dispensa, as empresas enfrentam elevado risco de nulidade e reintegração judicial, ainda que não haja mais possibilidade real de retorno.
4. Descompasso normativo: enquanto a lei já reconheceu que, em certas idades e condições, a aposentadoria por invalidez é definitiva, a jurisprudência trabalhista insiste em tratá-la como precária.
Esse cenário engessa as empresas e compromete a segurança jurídica, valor igualmente constitucional, que deve ser resguardado em equilíbrio com a proteção ao trabalhador.
Ciente da multiplicidade de processos e da divergência entre Tribunais Regionais do Trabalho, o TST afetou, em agosto de 2025, o Tema 274 de recursos repetitivos. A questão submetida ao Pleno é clara:
“A suspensão contratual em razão da aposentadoria por invalidez, conforme o art. 475 da CLT, cessa após decorridos os prazos descritos no art. 101, § 1º, I, II, da Lei nº 8.213/1991, que dispensam a realização de avaliação periódica pela Previdência Social?”
A simples formulação da questão já evidencia a necessidade de reflexão: a corte está diante da oportunidade de revisar ou modular a aplicação da Súmula 160, alinhando-a à realidade legislativa atual.
Não se defende, aqui, a supressão da proteção ao trabalhador afastado. O que se propõe é a adequação da jurisprudência aos novos contornos legais. Alguns pontos poderiam nortear a revisão:
1. Manutenção da suspensão contratual enquanto a aposentadoria for efetivamente revisável pela Previdência.
2. Cessação da suspensão e consequente autorização para rescisão quando configuradas as hipóteses do artigo 101, §1º, da Lei 8.213/91 (isenção de perícia por idade ou tempo).
3. Proteção de transição: fixação de parâmetros para assegurar que a alteração jurisprudencial não afete situações já consolidadas, evitando insegurança jurídica para trabalhadores em casos pendentes.
Esse caminho equilibra os interesses em jogo, pois protege o trabalhador durante o período em que há expectativa de reversão e, ao mesmo tempo, libera a empresa do ônus de manter indefinidamente vínculos inativos quando a própria lei já tornou o benefício imutável.
O Direito do Trabalho é dinâmico e deve acompanhar as alterações legislativas que impactam diretamente a vida das empresas e dos trabalhadores. No caso da aposentadoria por invalidez, a mudança promovida pelo legislador retirou o caráter precário em determinadas hipóteses, e isso não pode ser ignorado pelo Poder Judiciário.
Persistir na aplicação da Súmula 160, sem considerar as isenções legais de perícia, é manter uma jurisprudência descolada da realidade, que onera desproporcionalmente as empresas e gera insegurança.
O Tema 274 do TST representa, portanto, uma oportunidade histórica: revisar a Súmula 160, delimitar seus contornos de aplicação e reconhecer que, uma vez cessada a possibilidade de reavaliação da incapacidade pelo INSS, cessa também a suspensão contratual.
As empresas não podem ser condenadas a conviver indefinidamente com contratos de trabalho que, na prática, jamais serão retomados. A atualização jurisprudencial é medida de justiça, equilíbrio e segurança jurídica.
-
é advogado empresarial atuante nas áreas trabalhista e previdenciária, sócio fundador do escritório Pallotta, Martins e Advogados, professor, palestrante, instrutor in company, mestre em Direito do Trabalho e Seguridade Social pela Universidade de São Paulo e especialista em Direito Previdenciário Empresarial, autor da obra Contratação na Multidão e a Subordinação Jurídica (Editora Mizuno) e de capítulos de livros e artigos em sites e revistas especializadas.
CONJUR
https://www.conjur.com.br/2025-set-23/tema-274-tst-sera-o-fim-da-suspensao-eterna-do-contrato-de-trabalho/
por NCSTPR | 23/09/25 | Ultimas Notícias
O tema da escala 6×1 tomou conta do debate público no país nas últimas semanas. Enquanto isto, sem grande holofote, avança um projeto que pode amenizar o peso da escala 7×0 do cuidado com familiares, sejam eles crianças ou idosos, que recai principalmente sobre as mulheres. A Câmara dos Deputados aprovou no dia 12 de novembro a Política Nacional de Cuidados, enviada pelo Governo Federal. O texto, que seguiu para o Senado, estabelece que “todas as pessoas têm direito ao cuidado” e que o cuidado é um dever do Estado, nas esferas federal, estadual e municipal, “em corresponsabilidade com as famílias, o setor privado e a sociedade civil”.
Dentre os objetivos da política, está a redução e a redistribuição do trabalho não remunerado de cuidado realizado pelas mulheres. Outra das metas é a promoção de políticas públicas de cuidado. O texto não dá detalhes de quais serão essas políticas – elas deverão ser detalhadas no Plano Nacional de Cuidados, que está em fase de elaboração.
“A política foi encomendada à Secretaria Nacional de Cuidados da Família do Ministério do Desenvolvimento Social, mas eles não são um órgão executor. Então, o plano está sendo feito em uma pactuação com os Ministérios, para ver as ações que eles podem exercer dentro desse olhar de cuidados”, explica Ana Amélia Camarano, pesquisadora do IPEA e uma das organizadoras do livro Cuidar, Verbo Transitivo: caminhos para a provisão de cuidados no Brasil.
Para Camarano, uma das transformações necessárias é de que as creches funcionem não mais apenas como uma política de educação, mas também como política de cuidado. “A creche precisa funcionar nos contraturnos, nas férias. São ações que o Estado deveria fazer”, explica.
Do ponto de vista do cuidado de idosos, a pesquisadora do IPEA aponta que, em levantamento feito em 2019, o Estado brasileiro, nas três esferas, tinha apenas 158 instituições residenciais para idosos, um número irrisório. “Só a sociedade religiosa São Vicente de Paula tinha mais de 700. Então, isso é muito pouco. O SUAS (Sistema Único de Assistência Social) financia uma proporção de instituições, que são credenciadas, e recebem alguma ajuda”, pontua.
Mas, para Camarano, a política mais viável de ser implementada em curto prazo não é a construção de instituições públicas de residência, e sim as chamadas “políticas de respiro”. “Você não abre uma instituição de hoje para amanhã. Então, um serviço mais barato, que você pode ter em uma escala maior, é oferecer cuidadores domiciliares para as famílias. Isso se chama política de respiro, para a família poder respirar, porque cuidar de um idoso é 24 horas por dia, 365 dias por ano, e a família tem feito isso sem ajuda do Estado”.
“A gente precisa transformar um modelo de cuidado que hoje é informal e familiar em um modelo formal e institucional”, afirma Jordana Cristina de Jesus, professora do departamento de Demografia e Ciências Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e membro do Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero – GeFam. “Isso não quer dizer que a gente deve institucionalizar os idosos, são coisas distintas”, pontua.
A pesquisadora relata que o país tem, de fato, poucas instituições de residência para idosos, mas também precisa ampliar outras políticas, como os centros-dia do SUAS. “O idoso pode passar um período do dia num ambiente que tem serviços adequados para ele, que tem serviço de saúde, reabilitação, que age no sentido de ampliar o tempo de autonomia do Idoso”. A professora da UFRN ressalta também que, quanto mais acesso a serviços de reabilitação tiver o idoso, menos ele irá demandar cuidados quando estiver em casa. “Programas de reabilitação que ofereçam ganho de qualidade de vida para esses idosos, para que eles consigam se manter numa condição de autônomos. Encarar a demanda de cuidado não como o que define esse sujeito, mas como apenas uma das dimensões da vida dessas pessoas”.
Para Jordana Cristina de Jesus, outro debate que precisa ser feito no país é sobre licenças para cuidar. “Hoje, o único modelo de licença para cuidar que a gente tem, de fato, é a licença-maternidade, porque a licença-paternidade alcança um número pequeno de dias. Talvez seja a hora de começar a discutir outras possibilidades de licença para cuidar, que envolvam os idosos. Conciliar o trabalho remunerado com as necessidades de cuidado passa pelo debate das jornadas de trabalho, passa pelo debate das licenças para cuidar, passa por um envolvimento do mercado. A corresponsabilidade social pelos cuidados vai ter que envolver as empresas”.
Mulheres fazem quase o dobro de trabalho não-remunerado em casa
O IBGE investigou o cuidado na PNAD Contínua – Outras Formas de Trabalho, em 2022. Segundo o levantamento, 34,9% das mulheres cuidavam de outros moradores de sua residência ou de parentes que não moravam consigo. Entre os homens, eram 23,3%.
Quando se fala da realização de tarefas de cuidado mais complexas, a diferença de gênero aumenta. Dentre as pessoas que cuidavam de alguém, 85,5% dos homens e 90% das mulheres relataram “monitorar ou fazer companhia dentro do domicílio”. No entanto, 86,6% das mulheres declararam realizar a atividade de auxiliar nos cuidados pessoais, que inclui alimentar, vestir, pentear, dar remédio, dar banho e colocar para dormir, ante apenas 70,4% dos homens.
Quanto ao tempo dedicado a essas tarefas, o IBGE não investigou separadamente quanto foi com a realização de cuidados e quanto foi com outros afazeres domésticos. Mas o tempo despendido em tarefas domésticas como um todo dá uma boa ideia do quanto o peso é maior para as mulheres. Elas dedicam, em média, 21,3 horas por semana ao trabalho em casa, quase o dobro dos homens, que o fazem por 11,7 horas.
Ainda que as mulheres se dediquem quase o dobro do tempo, Jordana Cristina de Jesus
acredita que o tempo de trabalho delas em casa está subestimado na pesquisa. “Quando a gente coloca os resultados que a PNAD Contínua trouxe em comparação com os outros países aqui da América Latina, o Brasil continua registrando significativamente menos horas de trabalho de cuidado. E, como pesquisadora, eu não acredito realmente que isso tenha a ver com o Brasil ter um perfil de mulheres que fazem menos trabalho de cuidado. Tem muito mais a ver com não termos, de fato, um instrumento que seja capaz de mensurar esse trabalho”, ressalta.
Por outro lado, destaca que a pesquisa ajuda a revelar como se dá a divisão de tarefas dentro de casa. “A gente consegue entender como as mulheres se engajam mais nas atividades que são mais complexas, como preparar refeição, manutenção de vestuário. Os homens estão ali mais envolvidos em atividades que são mais adiáveis, que são menos intensivas em tempo, que são pequenos reparos, cuidado do quintal”.
Perda de autonomia financeira e dificuldade em se aposentar
A Síntese dos Indicadores Sociais de 2023, também do IBGE, mostra que 21,9% das mulheres pretas ou pardas e 18% das mulheres brancas que não procuravam emprego declararam como motivo “cuidar dos afazeres domésticos, do(s) filho(s) ou de outro(s) parente(s)”. Entre os homens, foram 3% dos brancos e 2% dos pretos ou pardos. “A responsabilização pelo trabalho de cuidado é um um fator limitante das oportunidades de geração de renda. A gente tem um grupo de mulheres que sequer consegue acessar o trabalho remunerado. Depois, tem outra parcela de mulheres que até acessam o trabalho remunerado, mas têm que aceitar condições muito mais precárias para que elas sejam conciliáveis com o trabalho de cuidados. Então, elas vão aceitar trabalhos informais, trabalhos por menos horas na semana, o que quer dizer que no final do mês vão receber um salário menor”, explica Jordana Cristina de Jesus.
Além disto, a professora da UFRN destaca que a simples ideia de que as mulheres cuidarão no futuro de filhos já faz com que sejam preteridas em oportunidades de trabalho ou promoções dentro da empresa. Para os homens, o efeito é oposto. “A literatura mostra que para as mulheres existe uma penalidade pela maternidade. Já os homens têm um bônus pela paternidade, porque para a figura masculina a responsabilização pelos cuidados é associada a uma ideia de que este é um homem responsável, ele é provedor. Então, ele precisa dessa ocupação, ele precisa dessa promoção”.
Com menos período trabalhando fora de casa ou mais tempo em trabalhos informais, as mulheres têm mais dificuldade em contribuir pelo tempo mínimo para se aposentar. “Então, é muito importante quando a gente debate Reforma da Previdência considerar que as mulheres por serem responsabilizadas pelos cuidados, elas têm muito mais dificuldade de acumular tempo mínimo de contribuição. Faz sentido no Brasil ter tempo mínimo de contribuição diferente para homens e mulheres”, explica Jordana Cristina de Jesus.
Ana Camarano, pesquisadora do IPEA, estimou quanto as mulheres perdem de renda ao se dedicarem exclusivamente ao cuidado familiar, com base em dados do Censo Demográfico de 2010. O estudo mapeou que 1,4 milhão de brasileiras de 20 a 69 anos não estavam no mercado de trabalho nem aposentadas, não tinham dificuldades de realizar atividades da vida diária e residiam em domicílios com pelo menos um indivíduo com dificuldade para essas atividades. A partir de dados das mulheres com mesma idade e mesma escolaridade que participavam do mercado de trabalho, Camarano estimou que se essas mulheres estivessem trabalhando fora do domicílio “receberiam aproximadamente R$ 1,1 bilhão mensais, o que elevaria o rendimento médio per capita de seus domicílios em 54,0%”.
O estudo também computou que cerca de 489 mil mulheres estavam cobertas pela contribuição previdenciária do cônjuge, podendo acessar a pensão por morte, se este falecesse. Porém, cerca de 950 mil mulheres estavam descobertas. “Geralmente, essa mulher está numa família em que os pais têm renda, têm aposentadoria, que quando morrem a aposentadoria vai embora com eles. Então, são mulheres que não vão ter renda quando os pais morrerem. Uma mulher nessa condição aos 50 anos não consegue se inserir no mercado de trabalho, muito menos para poder fazer um histórico de contribuição”, alerta a pesquisadora.
Idosos cuidando de idosos
Grande parte do cuidado no Brasil ainda é dedicado às crianças. Na PNAD Contínua – Outras Formas de Trabalho de 2022 metade das pessoas que informaram cuidar de algum morador dedicaram esse cuidado a crianças de até 14 anos. O cuidado de idosos ocorreu em 11,6% dos casos, mas aumentou 2,8 pontos percentuais em relação a 2019, edição anterior da pesquisa. A tendência é de crescimento ainda mais acentuado com o envelhecimento da população brasileira.
“Hoje, a capacidade da família cuidar está diminuindo, porque tem menos filhos, a mulher participa ativamente do mercado de trabalho. Se o Estado não entrar, o que vai acontecer no futuro? Você vai ter um monte de idosos na rua. Ou você pode ter uma redução na expectativa de vida, pessoas vão morrer mais cedo”, projeta Ana Amélia Camarano.
“Considerando que nada seja feito, que as condições atuais sejam mantidas, daqui a 30 anos a principal força de trabalho dos cuidados serão mulheres idosas, a gente vai ter no futuro mulheres idosas cuidando de outros idosos. Então, a gente vai ter um processo bastante complexo, se a gente não não investir nas políticas de reorganização dessa distribuição, dessa lógica familista, de que o cuidado é obrigação da família, das mulheres, sobretudo das mulheres negras”, afirma Jordana Cristina de Jesus.
DM TEM DEBATE
https://www.dmtemdebate.com.br/a-escala-7×0-que-pesa-sobre-as-mulheres/