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UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Argumento da hipersuficiência do trabalhador para admitir pejotização

Argumento da hipersuficiência do trabalhador para admitir pejotização

Opinião

Temos assistido, reiteradamente, a manifestações de divergência e uma consequente resistência do Judiciário trabalhista à nova realidade imposta pelo Supremo Tribunal Federal no tocante às decisões que vêm ampliando a terceirização e sua licitude em toda atividade, meio ou fim.

Com critérios distantes da tradicional essência protecionista utilizada pela Justiça do Trabalho, o STF vem autorizando, progressivamente, a pejotização e as “outras formas de trabalho fora da CLT”, afastando o vínculo de emprego declarado pela Justiça do Trabalho.

Destaque-se que a hipersuficiência do trabalhador — pessoas com alto nível de formação e remuneração —, entendida pelo STF como liberdade de negociação, tem sido a base da validação das diversas modalidades alternativas de contrato de prestação de serviços.

A tese de que a hipersuficiência pode ser aplicada a todo tipo de trabalhador, contudo, ainda tem se mostrado controversa. Há que se reconhecer que falta clareza nos critérios utilizados pelo STF para conceituar o hipersuficiente. Ora o STF aponta os profissionais liberais como tais (advogados, médicos, engenheiros etc.), ora representantes comerciais e corretores, sem formação superior e com baixos salários.

Resta que, nesses casos, não estão sendo aplicados ou observados os artigos 2º, 3º e 9º da CLT pela Suprema Corte, os quais definem o empregador, o empregado e os atos nulos que visam fraudar ou impedir a aplicação dos preceitos da CLT. Aparentemente, o STF tem dado mais valia à forma e à autonomia da vontade do que à realidade dos fatos, mitigando e até afastando os princípios trabalhistas e as regras da CLT, as quais passaram a ser facultativas.

ADPF 324 e Tema 725

É bom lembrar que, em agosto de 2018, o STF julgou a ADPF nº 324 – que questionou a constitucionalidade e os limites da terceirização de atividades no Brasil – e o RE nº 958.252, no qual também se discutiu a constitucionalidade da proibição de terceirização de atividades-fim de uma empresa, fixando a seguinte tese:

“1) É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2) Na terceirização, compete à contratante verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada e responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias” (ADPF nº 324). O entendimento se aplica às terceirizações ocorridas antes mesmo da Lei nº 13.429/2017.

Relator da ADPF nº 324, o ministro Barroso entendeu que “a terceirização não enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários. É o exercício abusivo da sua contratação que pode produzir tais violações”, deixando claro que o STF admitiu que a realidade dos fatos pode demonstrar o exercício abusivo e a existência de fraude na contratação.

Igualmente importante é a tese vinculante no julgamento de Repercussão Geral, Tema nº 725, acerca da constitucionalidade da terceirização de mão de obra, proposta pelo relator ministro Luiz Fux, que, de maneira mais abrangente, firma a tese de que “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.

Portanto, a Súmula nº 331 do TST, que proibia a terceirização de atividade-fim nas empresas – e até então adotada de forma pacificada pelos tribunais trabalhistas –, passou a ser considerada pelo STF como inconstitucional por violar os princípios da legalidade, da livre-iniciativa, da livre concorrência e dos valores sociais do trabalho.

Transporte rodoviário de cargas e parceria entre salões de beleza e profissionais do setor

Outro relevante precedente diz respeito ao julgamento conjunto da ADC nº 48 e da ADI nº 3.961, que versa sobre o transporte rodoviário de cargas, em que o STF reconheceu que a atividade de transportador autônomo de cargas configura relação comercial de natureza civil, sem vínculo de trabalho celetista. Na mesma direção, o julgamento da ADI nº 5.625 a respeito dos Contratos de Parceria com o Profissional de Salão de Beleza, reconheceu ser constitucional a celebração de contrato civil de parceria entre salões de beleza e profissionais do setor, negando haver relação de emprego dissimulada.

Trata-se de precedentes vinculantes inovadores a respeito da terceirização irrestrita ou ampla prestação de serviços a terceiros, entendendo também pela compatibilidade da pejotização com a Constituição Federal, e que serviram de base para uma série de reclamaçõesconstitucionais a respeito de profissionais de outras categorias.

Cite-se ainda o exemplo emblemático do caso da RCL nº 47.843, quando o STF anulou a decisão da Justiça do Trabalho para reconhecer a licitude na contratação de médicos pelo Instituto Fernando Filgueiras, na Bahia, por meio de pessoa jurídica, validando a adoção de formas alternativas de contratação de mão de obra, sem prevalência ou preferência do vínculo de emprego celetista, principalmente para os profissionais hipersuficientes. Em seu voto, o ministro Barroso ressaltou que “se estivéssemos diante de trabalhadores hipossuficientes, em que a contratação como pessoa jurídica fosse uma forma, por exemplo, de frustrar o recebimento de fundo de garantia por tempo de serviço ou alguma outra verba, (…) uma tutela protetiva do Estado poderia justificar-se. (…) Não só médicos, hoje em dia – que não são hipossuficientes –, fazem uma escolha esclarecida por esse modelo de contratação. Professores, artistas, locutores, são frequentemente contratados assim, e não são hipossuficientes. São opções permitidas pela legislação”.

Visão liberal

A atual posição do Supremo, em um movimento reformista, reflete o reconhecimento dessa nova dinâmica mundial e a necessidade de se viabilizar as demandas de maior eficiência da economia, por meio de uma interpretação mais ampla e flexível em relação ao polêmico tema da terceirização da mão de obra, pejotização, entre outras modalidades de contrato de prestação de serviços.

Reconhecendo mudanças no mecanismo das relações de trabalho e buscando alternativas de contratação, o STF caminha validando em uma série de decisões vinculantes o sentido de constitucionalidade à terceirização irrestrita e todas as outras formas de trabalho fora da CLT. Trazendo uma visão mais liberal e progressista ao instituto, o ministro Luís Roberto Barroso, em junho de 2023, considerou que:

“(…) o contrato de emprego não é a única forma de se estabelecerem relações de trabalho. Um mesmo mercado pode comportar alguns profissionais que sejam contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho e outros profissionais cuja atuação tenha um caráter de eventualidade ou maior autonomia. Desse modo, são lícitos, ainda que para execução de atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação.” (RCL nº 60.436)

Com base nessa visão, o STF se posicionou a respeito de uma série de matérias, flexibilizando e redefinindo conceitos, dando novos contornos a temas caros à área trabalhista, em decisões  orientadas, segundo o ministro Barroso, na garantia dos direitos fundamentais previstos na Constituição para as relações de trabalho, na  preservação do emprego e da empregabilidade, na formalização do trabalho (removendo os obstáculos que levam a informalidade), na melhoria da qualidade geral e na representatividade dos sindicatos, na valorização da negociação coletiva, na desoneração da folha de salários, para incentivar a empregabilidade e no fim da imprevisibilidade dos custos das relações de trabalho em uma cultura em que a regra seja propor reclamações trabalhistas ao final da relação de emprego.

Cabe observar, assim, das decisões do Supremo que, apesar de supostamente poderem estar presentes todos os requisitos materiais para reconhecimento do vínculo de emprego da CLT, o fato do trabalhador ser hipersuficiente e de se tratar de pessoa esclarecida, relativiza e até exclui as regras de direito do trabalho e prioriza a autonomia da vontade, pois parte da premissa de que o trabalhador pode escolher, de forma esclarecida, o tipo de contratação (animus contrahendi), como também aponta a igualdade entre as partes para negociar diretamente.

  • é sócia do escritório GM Advogados e Vólia Bomfim, membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, desembargadora do TRT da 1ª Região aposentada, professora e autora de obras jurídicas diversas, doutora em Direito e Economia pela Universidade Gama Filho (UGF), mestre em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (UNESA), pós graduada em Direito do Trabalho pela UGF e pós graduada em Processo Civil e Processo do Trabalho pela UGF

     

    CONJUR

    https://www.conjur.com.br/2024-out-23/o-argumento-da-hipersuficiencia-para-admitir-a-pejotizacao/

Argumento da hipersuficiência do trabalhador para admitir pejotização

Novo capítulo na questão sobre o terço constitucional de férias

Opinião

A questão acerca da incidência das contribuições previdenciárias sobre o terço de férias recebe novo capítulo diante do recurso interposto pela União em face da decisão que, acolhendo o pleito dos contribuintes, modulou os efeitos da decisão que havia revertido o então consolidado entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.

Explica-se. Em 2014, analisando o tema sob o aspecto infraconstitucional, o STJ afastou a incidência das contribuições previdenciárias sobre o terço constitucional de férias.

Como a questão foi julgada sob o regime de recurso repetitivo, diversas empresas passaram a adotar o entendimento do STJ, deixando, assim, de calcular as contribuições previdenciárias sobre a referida rubrica, havendo casos, inclusive, de reversão de valores nos respectivos balanços.

Porém, em 2018, o Supremo Tribunal Federal reputou o tema como de natureza constitucional e, em agosto de 2020, concluiu pela legalidade da exigência das contribuições previdenciárias sobre o terço constitucional de férias, o que motivou a oposição de embargos de declaração por parte dos contribuintes visando a modulação dos efeitos da decisão diante da abrupta mudança jurisprudencial.

Em julho de 2024, após aproximadamente quatro anos da decisão que reverteu o então entendimento consolidado do STJ, o STF finalmente concluiu o julgamento dos embargos de declaração para a modular os efeitos da decisão, atribuindo efeitos “ex nunc” ao acórdão de mérito, ou seja, a impossibilidade de retroação dos efeitos, a contar da publicação de sua ata de julgamento.

Ordens de restituição e  recurso da Fazenda Nacional

Antes mesmo da publicação do acórdão, ocorrida em 20 de setembro, os tribunais regionais passaram a aplicar o entendimento do STF manifestado quando da modulação dos efeitos, para assim reconhecer a não incidência das contribuições previdenciárias e, consequentemente, o direito à restituição dos valores pagos até a data do julgamento ocorrido em agosto de 2000.

Ocorre que a Fazenda Nacional opôs novos embargos de declaração visando a rediscussão dos critérios da modulação. De acordo com o referido recurso, não seria a hipótese de modulação dos efeitos, na medida em que não havia jurisprudência consolidada — o que, evidentemente, é um manifesto equívoco, considerando que o tema havia sido julgado em recurso repetitivo pelo STJ.

Ademais, a Fazenda busca alterar o marco temporal da modulação alegando que seria aplicável à data em que o tema foi reconhecido como repercussão geral, no caso, 23/2/2018, o que, segundo dados da própria União, eliminaria 64% das ações ajuizadas, pois, segundo critérios apresentados nos próprios embargos de declaração, este percentual corresponde às ações ajuizadas sobre o tema após o reconhecimento da repercussão geral.

Mais uma vez, o critério adotado pela Fazenda padece de manifesta ilegalidade, na medida em que os contribuintes não ajuizarão as ações antes da referida data justamente pelo fato de existir a jurisprudência dominante no âmbito do STJ acerca da não incidência das contribuições previdenciárias sobre o 1/3 de férias.

Fica evidente, portanto, que a Fazenda Nacional busca, na verdade, postergar o trânsito em julgado da decisão do STF que aplicou a modulação, de forma a evitar a tendência já evidenciada nos Tribunais Regionais, que já estão adotado o critério da modulação na forma estabelecida pelo Supremo, e, ao final, evitar o aproveitamento dos créditos pelos contribuintes.

Argumento da hipersuficiência do trabalhador para admitir pejotização

Processo eleitoral, Inquérito 4.435/DF e a subversão do sistema de garantias

Senso Incomum

1. Introduzindo o tema:

Há certas coisas que são difíceis de compreender.

O Código Eleitoral, em seu artigo 362, estabelece que caberá recurso das decisões proferidas em processos que apuram infrações no prazo de dez dias. O artigo 266 da mesma lei aduz, no capítulo relativo aos recursos contra despachos de juízes ou juntas eleitorais, que este independerá de termo.

Já o artigo 364, ainda, aponta que as disposições do Código de Processo Penal deverão ser aplicadas de forma subsidiária. Isso importa dizer, para os tribunais (como veremos logo adiante), que as razões recursais em face de sentenças do juiz eleitoral, em matéria penal, independerão de termo, impedindo, dessa forma, a aplicação analógica do artigo 600, parágrafo 4º, do Código de Processo Penal que possibilita que a parte apresente as razões diretamente no tribunal.

Sendo mais claro: no rito processual penal previsto no CPP, quando é prolatada uma sentença pelo juiz de primeiro grau, é facultada às partes a apresentação de razões de apelação diretamente no tribunal.

Dessa forma, apresenta-se o termo de apelação no prazo de cinco dias, momento em que a parte poderá optar por lançar as razões do apelo ao juiz de primeiro grau ou, após intimação do desembargador relator, apresentá-las em segundo grau. Mesmo prazo de oito dias.

Porém, no processo eleitoral essa regra, nem mesmo pelo filtro do artigo 364 do CE, poderá ser aplicada, uma vez que as razões devem vir acompanhadas do recurso, ainda em primeiro grau de jurisdição.

Sobre essa temática, o então ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio, em decisão monocrática no HC nº 128.873/SP, considerou passível de conhecimento a apresentação “bipartida” das razões, não vislumbrando qualquer prejuízo ao andamento processual e reconhecendo a necessidade de a corte tomar uma decisão sobre a aplicabilidade do artigo 600, parágrafo 4º, aos processos eleitorais.

No entanto, anos depois, quando do julgamento do mérito, alterou seu posicionamento e filiou-se no sentido de que, em virtude da incidência do princípio da especialidade, o recurso de apelação – mesmo na seara penal eleitoral – não poderia ser conhecido, operando-se, dessa forma, a preclusão consumativa. A 1ª Turma, assim, denegou a ordem, ainda contando com as notas do ministro Alexandre de Moraes, alegando inexistir, em seu ver, lacuna.

A partir da fixação desse entendimento, pacificou-se no Tribunal Superior Eleitoral a compreensão de que não se conhece de recurso eleitoral cujas razões são interpostas diretamente no tribunal, mesmo quando o juízo eleitoral originário adotar o rito previsto no Código de Processo Penal, deferindo o processamento “bipartido”.

2. Algumas notas sobre o HC 128.873/SP e como o STF deve lidar com as garantias processuais penais em processos eleitorais após a decisão proferida no Inquérito 4.435/DF – o papel da hermenêutica

Desse preâmbulo, a primeira constatação que fazemos diz respeito à decisão da 1ª Turma do STF: o artigo 364 do Código Eleitoral permite a aplicação analógica da legislação processual penal. Nesse norte, o artigo 362 não diz que o recurso independerá de termo. Estamos falando de processo penal eleitoral, cujas penas conduzem indivíduos ao cárcere, notadamente a partir do decidido no Inquérito 4.435/DF, que determinou a prevalência da Justiça Especializada em relação às demais, fazendo com que esta ficasse incumbida de julgar casos complexos envolvendo crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, organização criminosa e afins. No mínimo deveria ocorrer uma atualização hermenêutica.

A bem da verdade, o dispositivo do Código Eleitoral que refere ser desnecessário o termo está contido no artigo 266 que diz o seguinte: “o recurso independerá de termo e será interposto por petição devidamente fundamentada, dirigida ao juiz eleitoral e acompanhada, se o entender o recorrente, de novos documentos”. Ok. A própria redação do artigo já demonstra que nada tem a ver com processo criminal. Isso deveria importar. Por vezes, a uma certa literalidade ajuda, ao menos para espantar os fantasmas das ficções jurídicas contra o réu. Juntada de novos documentos? Como assim?

O MPE pode anexar novas provas em sede de recurso ou mesmo a defesa? E a supressão de instância? Logo, em termos hermenêuticos, há uma segura pista que aponta para a não incidência em processo penal. Aqui deveria haver uma parada, para expungir as interpretações antitéticas ao devido processo legal.

Esses questionamentos acabam por ser explicados por um singelo motivo: o recurso mencionado está previsto no capítulo II do Código Eleitoral que disciplina os “recursos perante as juntas e juízos eleitorais”. O dispositivo antecessor, o 265, diz o seguinte: “dos atos, resoluções ou despachos dos juízes ou juntas eleitorais caberá recurso para o Tribunal Regional”. Tal capítulo diz respeito às decisões que se forjam em meio ao período eleitoral.

Ou seja, o 362 não tem nada, mas nada mesmo, a ver com isso. Cuida-se de um dispositivo que, sim, pode ter a sua aplicação analógica condicionada ao Código de Processo Penal, máxime porque prejuízo algum será derivado deste ato que, em verdade, expande o direito de defesa.

Quer dizer, uma revisão do entendimento do Supremo Tribunal Federal, nos dias de hoje, deve dialogar com a decisão que o próprio tribunal lançou no Inquérito 4.435/DF cerca de dois anos depois de firmar o entendimento sobre a apresentação “bipartida” de recurso em processos criminais eleitorais.

Fato relevante e que contingencia a história: a Justiça Eleitoral mudou! Ela não está mais restrita ao julgamento de meras falsidades ideológicas eleitorais, compra de votos e outras infrações menos graves. É preciso ter isso em mente.

A segunda constatação se refere ao próprio direito de defesa, tão massacrado nos dias de hoje pela jurisprudência defensiva. Uma leitura constitucional do Código Eleitoral conduziria, primeiro, à seguinte afirmação:

“Na medida em que o capítulo – relativo às infrações de ordem penal – em que consta o processamento dos recursos criminais eleitorais não é preciso quanto ao termo, logo admitir-se-á a interposição das razões diretamente no tribunal, desde que tal termo seja apresentado tempestivamente após a intimação pessoal do sentenciado (essa última parte é uma outra discussão pertinente, talvez para um momento futuro);

segundo, garantias constitucionais, como a ampla defesa e o duplo grau de jurisdição, devem sempre ser lidos contra o Estado e em favor do réu. A nossa arqueologia constitucional não nos deixa mentir. Quanto mais grave o delito, mais garantias. Essa deve ser a lógica, justamente porque quanto mais grave, mais pesada será a punição (se houver).”

A terceira, e última, constatação é atinente à subversão da lógica do sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais que em vez de pro reo, inadvertidamente, tem se transformado em pro societate (como se fosse possível, mesmo com muita caridade hermenêutica, extrair esse conceito da constituição). E isso podemos afirmar a partir de outras observações: o artigo 10 do Código de Processo Penal estabelece um prazo máximo de 30 dias para término das investigações policiais. Já o 46 estabelece um prazo máximo de 15 dias, contados da conclusão do inquérito, para oferecimento de denúncia. O Código Eleitoral, que é o que estamos a analisar, dispõe um prazo de dez dias para o juiz sentenciar o caso após o protocolo dos últimos memoriais. Honestamente, esses prazos são considerados por esses atores? O que a sua não observância acarreta? Absolutamente nada.

Vamos além: os tribunais – e aqui nem é preciso citar leading cases porque em seis ou sete segundos de Google será possível localizar alguns – afirmam que não há nulidade sem prejuízo. Cuida-se de afirmação derivada de princípio não institucionalizado que se convencionou chamar de pás de nulitte sans grief. Mesmo casos de nulidade absoluta – por exemplo, ausência de defesa técnica, violação ao artigo 212 do CPP, etc. – dependem de demonstração de prejuízo. Mas, como assim? Não há como se presumir tal prejuízo, dizem eles.

Ora – e aqui a pergunta de um milhão de Códigos – será que nem mesmo a condenação à margem da lei é suficiente para que o prejuízo seja presumido? Alguém já se perguntou qual seria o prejuízo de apresentar razões de apelação em segundo grau de jurisdição nos casos de crimes eleitorais? De novo, o atual entendimento do STF, encampado no Inquérito 4.435/DF, intensificou o uso da Justiça Eleitoral para crimes reflexamente relacionados à Justiça Especializada (que de sua própria competência originária ficam normalmente adstritos a crimes menos graves, como o artigo 350 do CE, cuja pena não ultrapassa cinco anos de reclusão) que, hodiernamente, é responsável por casos que podem, inclusive, conduzir alguém ao cárcere pelo máximo de pena privativa de liberdade prevista em lei.

3. Afinal, a quem se destinam as garantias processuais penais?

Voltando à questão dos prazos, veja-se que, no processo eleitoral, o acusado tem a disposição o prazo de dez dias para responder à acusação (artigo 359, parágrafo único, CE). Isso a partir do momento em que toma ciência daquilo que foi produzido pela autoridade policial e pelo Ministério Público Eleitoral que, sendo muito caridoso, não é menor do que o respectivo a um ano de investigação.

Depois que se conclui toda a instrução processual, a defesa tem o prazo de míseros cinco dias para apresentar as suas alegações finais (artigo 360, CE). Finalmente, depois que o juiz eleitoral, muitas vezes morosamente, sentencia o caso (claro que não observando o seu prazo de dez dias), a defesa terá os mesmos dez dias para apresentar recurso com as razões inclusas, por vezes em face de decisões com cinquenta ou cem laudas que o juízo eleitoral tomou meses para fazer.

Eis que a defesa, para ganhar um fôlego, requisita a apresentação das razões em segunda instância, e padece com o risco quase que fatal de ver o seu recurso não ser conhecido.

Não há, nisso, uma subversão da lógica do sistema constitucional de direitos e garantias fundamentais?

Veja-se que em uma perspectiva hermenêutico-constitucional é altamente descabido conferir mais direitos e garantias à acusação em detrimento do acusado. O artigo 600, parágrafo 4º, do Código de Processo Penal, para além da questão formal, é uma garantia do acusado em processo penal que, certamente, transcende a mera instrumentalidade e não enseja, sob nenhum ângulo, qualquer prejuízo às partes. É também uma questão de paridade de armas. Enquanto o Ministério Público Eleitoral, a Polícia Federal (que investiga o caso) e o juízo eleitoral não são minimamente sancionados por descumprir prazos fixados em lei, à defesa é impossibilitado o mínimo de apresentar razões em segunda instância, tal como a lei prevê.

Dito isto, analisando todo esse cenário processual, o que aparenta é que a parte hipossuficiente – aquela que fica sujeito ao Leviatã do Estado – é a acusação. É o juízo eleitoral. É a Polícia Federal. Claro que essa leitura não passa por um filtro hermenêutico-constitucional que assegura ao acusado em processo penal (inclusive na Justiça Eleitoral) a proteção contra o Estado-Acusador, conferindo-lhe diversos direitos e garantias fundamentais. Justamente por ser a parte hipossuficiente em relação ao poder estatal. Isso porque a essência de uma democracia constitucional é a de servir como um remédio contramajoritário que, no campo do processo penal – seja em qual juízo for –, deve ser vista como uma leitura da constituição sempre em favor do cidadão e contra o Estado.

E, inversamente do que ecoa da chamada “voz das ruas”, não há direitos em demasia ao réu. Ao contrário, como aqui demonstramos, a autoridade policial, o Ministério Público e o Poder Judiciário diuturnamente não observam prazos que lhe são atribuídos por lei, violando, também, o princípio da razoável duração do processo, que também serve ao acusado.

Ao fim e ao cabo, existem, de fato, certas coisas que são difíceis de compreender.

Argumento da hipersuficiência do trabalhador para admitir pejotização

Retratação da testemunha não basta para anulação de demissão por justa causa, decide TST

Atestados adulterados

A demissão por justa causa é válida mesmo em caso de retratação da testemunha, de acordo com o entendimento da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) do Tribunal Superior do Trabalho.

O colegiado rejeitou o recurso de um vigilante que pretendia anular a justa causa com a alegação de que ela se baseou no depoimento de uma dentista que, depois, fez uma retratação. No entanto, os ministros entenderam que essa não foi a única prova do ato de improbidade do empregado e, por isso, a justa causa deve ser mantida.

O vigilante fazia tratamento odontológico com uma cirurgiã-dentista e apresentou vários atestados de comparecimento às consultas. Em março de 2016, ele foi dispensado por justa causa. Segundo a empresa, ele apresentou atestados adulterados para justificar a ausência ao serviço.

Na audiência da reclamação trabalhista, a dentista declarou que nem todas as assinaturas nos atestados eram dela, ou seja, parte delas era falsa. Seu depoimento foi uma das provas que basearam as decisões da 21ª Vara do Trabalho de Brasília e do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (DF/TO) de manter a dispensa motivada.

Em 2019, após a decisão se tornar definitiva, o vigilante ajuizou ação rescisória para anulá-la. Ele apresentou uma declaração em que a dentista afirmou que seu depoimento na ação trabalhista não era inteiramente condizente com a verdade. Segundo ela, os atestados apresentados pelo trabalhador eram “absolutamente verdadeiros”, pois as consultas foram pagas e ele efetivamente foi consultado nos dias informados.

O TRT, porém, rejeitou a pretensão e ressaltou que as demais provas eram suficientes para legitimar a justa causa.

Arrependimento não é suficiente

Na tentativa de reformar esse entendimento, o vigilante recorreu ao TST. Contudo, a relatora do recurso, ministra Morgana Richa, salientou que a falsidade da prova testemunhal da dentista não foi comprovada em processo criminal, nem no trabalhista. Segundo ela, a simples retratação judicial da testemunha não é suficiente para a ação rescisória.

Para a ministra, as declarações prestadas em juízo na época dos fatos são verossímeis, e o arrependimento da testemunha que resolve mudar a versão então apresentada, à revelia de elementos probatórios robustos, não tem força para desconstituir uma decisão definitiva.

Ainda segundo a relatora, o arquivamento do inquérito policial sobre a falsidade dos atestados não significa que foi comprovada a veracidade das assinaturas, nem a falsidade da prova testemunhal, mesmo porque esse não era o objeto de investigação.

Ela destacou também que a manutenção da justa causa não se baseou apenas no depoimento da dentista, mas também no de outra testemunha, que disse que o prontuário médico do vigilante não registra atendimento nos dias dos atestados. A decisão foi unânime. Com informações da assessoria de imprensa do TST.

Clique para ler o acórdão:chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/10/ROT-689-79_2019_5_10_0000.pdf
ROT 689-79.2019.5.10.0000

CONJUR

https://www.conjur.com.br/2024-out-24/retratacao-da-testemunha-nao-basta-para-anulacao-de-demissao-por-justa-causa/

Argumento da hipersuficiência do trabalhador para admitir pejotização

FMI melhora projeção da economia do Brasil para 3% em 2024

Previsão para o ano que vem foi reduzida para 2,2%. A América Latina deve crescer 2,1% neste ano, com a Argentina sendo a única economia do bloco com previsão de queda, um recuo de 3,5%.

Por g1

FMI melhora projeção da economia brasileira para 3% em 2024

O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que o Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil deverá crescer 3% em 2024. As novas projeções estão no relatório “World Economic Outlook” (WEO), divulgado nesta terça-feira (22).

O FMI havia projetado um crescimento de 2,1% para a economia brasileira em julho. O fundo melhorou a projeção neste ano em 0,9 ponto percentual, mas piorou o cenário para 2025, citando a política monetária restritiva.

Para o ano que vem, prevê agora uma expansão do PIB de 2,2%, contra 2,4% estimados na última atualização do seu relatório.

O FMI atribuiu a perspectiva melhorada do Brasil ao fortalecimento do consumo privado e do investimento na primeira metade do ano, impulsionados por um mercado de trabalho aquecido, transferências do governo e um impacto menor do que o esperado das enchentes do Rio Grande do Sul, em maio.

Mas a política monetária ainda restritiva e o esperado esfriamento do mercado de trabalho devem moderar o resultado em 2025, segundo o FMI. A expectativa é de perda de força também diante da redução dos estímulos fiscais.

A nova projeção do FMI para o crescimento econômico neste ano ainda é um pouco mais fraca do que a do governo, que em setembro elevou as contas a 3,2%, mesma estimativa do Banco Central.

Além disso, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, já disse que pode haver novas revisões para a projeção. Para 2025, o Ministério da Fazenda vê um crescimento de 2,5%, enquanto o BC calcula 2% de expansão.

O relatório do FMI ainda trouxe números para a inflação. Para o Brasil, o Fundo calcula a inflação em uma média de 4,3% e 3,6% respectivamente em 2024 e 2025.

Fernando Haddad projeta PIB acima de 3%

América Latina

O PIB da grande região da América Latina e Caribe deve crescer 2,1% este ano, 0,3 p.p. a mais do que o projetado três meses atrás. Mas para 2025 houve um corte de 0,2 ponto, a 2,5%.

Dentro da região, a previsão para a economia do México foi reduzida, para um crescimento de 1,5%, ou 0,7 p.p. a menos do que estimado anteriormente. O FMI disse que o número revisado reflete a fraqueza da demanda interna.

Entre as principais economias da região, a Argentina é a única projetada para contrair este ano, com uma queda de 3,5%, mais do que o dobro da queda de 1,6% em 2023. No entanto, o FMI espera uma forte recuperação em 2025, com crescimento de 5%.

Economia sem brilho

O relatório disse que as mudanças de projeção de outubro deixarão o crescimento do PIB global em 2024 inalterado em relação aos 3,2% projetados em julho, estabelecendo um tom fraco para o crescimento.

A previsão para o crescimento global em 2025 é de 3,2%, 0,1 ponto percentual abaixo do previsto em julho, enquanto o crescimento de médio prazo deve cair para “medíocres” 3,1% em cinco anos, bem abaixo da tendência pré-pandemia.

Para os EUA, o FMI elevou em 0,2 p.p a projeção do PIB, para 2,8%. O fundo atribuiu o resultado, em grande parte, ao consumo mais forte do que o esperado, alimentado pelo aumento dos salários e preços dos ativos. Em 2025, a expectativa é de 2,2%.

O economista-chefe do FMI, Pierre-Olivier Gourinchas, disse que os EUA, a Índia e o Brasil estavam mostrando resiliência e que um “pouso suave” no qual a inflação esfria sem perdas massivas de empregos foi alcançado.

Miriam Leitão analisa reação do mercado sobre inflação

“Parece que a batalha global contra a inflação foi amplamente vencida, mesmo que as pressões de preços persistam em alguns países”, disse Gourinchas em uma postagem de blog.

Por outro lado, o fundo cortou a taxa de crescimento da China em 2024 em 0,2 p.p, para 4,8%, com o impulso das exportações líquidas compensando parcialmente a fraqueza contínua no setor imobiliário e a baixa confiança do consumidor.

A previsão de crescimento da China em 2025 do FMI permaneceu em 4,5%, mas a perspectiva não inclui nenhum impacto dos planos de estímulo fiscal anunciados por Pequim, que ainda estão em grande parte indefinidos.

* Com informações da agência Reuters

G1

https://g1.globo.com/economia/noticia/2024/10/22/fmi-melhora-projecao-da-economia-do-brasil-para-3percent-em-2024.ghtml

Argumento da hipersuficiência do trabalhador para admitir pejotização

A quem interessam os ataques à carteira de trabalho?

Economia

Quem disse que os motoristas da Uber e os entregadores do iFood consideram os direitos trabalhistas inúteis ou descartáveis? Qual pesquisa – científica, séria, sem vícios – constatou a concordância desses profissionais com as condições gerais de trabalho a que são submetidos?

por André Cintra

No começo de 2023, a Uber e o iFood armaram uma cilada para o governo Lula e a opinião pública. Cientes de que o presidente pretendia regulamentar o trabalho por aplicativo, as empresas anunciaram uma pesquisa com motoristas e entregadores sobre “o futuro do (seu) regime de trabalho”. A encomenda foi feita ao Datafolha, o instituto de pesquisa de maior credibilidade no País.

Por trás das boas intenções havia o objetivo de demonstrar que a maioria dos profissionais rejeitava trabalhar com carteira assinada, sob as regras e os benefícios da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Não se tratava de uma imposição dos aplicativos – mas, sim, de um consenso entre empregadores e empregados.

Com grande alarde, iFood e Uber divulgaram a suposta preferência pelo “modelo flexível” de trabalho. “A maioria dos entregadores consultados tem uma percepção favorável ao modelo atual de trabalho”, informou o iFood. “Segundo a pesquisa, 77% preferem manter esse modelo – no qual têm autonomia para escolher seus próprios horários e recusar viagens a qualquer momento – em vez do vínculo tradicional com as normativas previstas hoje na CLT”.

Entre os motoristas de Uber, o apoio ao modelo atual era parecido (75%). Apenas 14% dos motoristas e dos entregadores manifestaram predileção pelo regime celetista. Tudo indicava que essas novas categorias profissionais, nascidas na década passada, eram majoritariamente contrárias ao trabalho formal e, em última instância, indiferentes à precarização.

Não é bem assim. O problema da pesquisa (devidamente acobertado pelos apps) é que as perguntas induziam o trabalhador a avalizar as condições atuais do trabalho. Ao expor aos entrevistados as duas opções – regime flexível ou CLT –, a sondagem manipulava escandalosamente a descrição de cada modelo.

Como funciona o modelo atual, conforme a pesquisa? “O motorista /entregador têm autonomia para escolher seus próprios horários e recusar viagens a qualquer momento, mas sem acesso aos benefícios trabalhistas previstos na CLT para empregados”.

Eis uma meia verdade e, como dizia Millôr Fernandes, “o perigo de uma meia verdade é você dizer exatamente a metade que é mentira”. O motorista/entregador pode, sim, escolher a carga de trabalho e a viagem – só que não de forma impune. Mais do que plataformas que fazem a mera mediação entre prestadores e usuários de serviço, essas empresas têm regras.

Conforme reportagem do Intercept Brasil, entregadores precisam seguir tais regras para ganhar, em média, menos de dois salários mínimos por mês. “Caso contraiam qualquer tipo de enfermidade proveniente de seus ambientes de trabalho, o mais óbvio acontece: não recebem nenhum tipo de auxílio das plataformas. Muito pelo contrário – quanto mais tempo sem trabalhar, por qualquer que seja o motivo, menos trabalho lhes é oferecido.” O preço da liberdade – ou, vá lá, autonomia – é o boicote.

Voltemos à pesquisa Datafolha. Qual seria a alternativa ao modelo vigente? O instituo pergunta se os profissionais preferem “ter vínculo de emprego para acesso aos benefícios trabalhistas previstos na CLT, mas as plataformas definem jornada e remuneração e os trabalhadores não podem recusar demandas em tempo real ou decidir quando dirigir / fazer entregas sem autorização sob pena de demissão ou sanções”.

A sutileza das empresas é converter a carteira assinada num fardo. Trabalhadores formais têm direito a descanso semanal remunerado, 13º salário, férias, FGTS, seguro-desemprego e acesso ao INSS. Nenhum desses direitos é citado na pergunta, que trata tudo, genericamente, como “benefícios trabalhistas”.

Em compensação, o risco de motoristas e entregadores virarem celetistas é descrito com tintas de terror. Ou se mantém tudo como está hoje, ou – em caso de mudança – a única opção é jornada e remuneração pré-estabelecidos, fim da autonomia e um ambiente de pressão. Uber e iFood insinuam que demissões e sanções passariam a ser a regra do jogo, como se hoje os trabalhadores já não estivessem sujeitos a uma série de restrições.

Perguntas viciadas levam a resultados imprecisos e, em última instância, a inverdades. É compreensível que essas empresas tentem “provar” a aceitação do trabalho precarizado. Acredita quem quiser – ou quem não teve acesso ao conjunto da pesquisa. Para todos os efeitos, quem tem a prerrogativa de apontar saídas dignas para a uberização não pode confiar em levantamentos fraudulentos.

Ainda assim, a carteira de trabalho está novamente em xeque – e não se trata da tradicional ofensiva empresarial contra qualquer tipo de regulamentação trabalhista. Assustados com os resultados das eleições municipais de 2024, representantes do campo progressista, como os partidos de esquerda e o movimento sindical, começam a relativizar o trabalho formal.

A tese é a de que não sabemos interpretar o mundo do trabalho atual – este “admirável mundo novo” em que a informalidade bate recorde e o registro trabalhista perde apelo. Tal incapacidade seria uma das causas de nossas derrotas eleitorais. Sem diálogo com os trabalhadores, estaríamos repetindo ações e discursos defasados.

“Tem uma parte da sociedade que não quer ter carteira profissional assinada. As pessoas querem trabalhar por conta própria, querem ser empreendedoras”, declarou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na semana passada, em evento com empresários em São Paulo. De acordo com Lula, “mudou o mundo do trabalho no Brasil”, mas a esquerda não se deu conta.

Sua fala foi reverberada pelo jornalista Ricardo Kotscho, em artigo sobre o desempenho do PT nestas eleições. “O partido enfrenta problemas não só na comunicação, como constatou o próprio presidente Lula esta semana, mas no seu discurso e no relacionamento com o eleitorado, diante de um mercado de trabalho que mudou radicalmente desde a sua chegada ao poder em 2003. Carteira de trabalho, por exemplo, virou lembrança do passado”, escreveu Kotscho.

Lula, Kotscho e cia. precisam consultar urgentemente os números da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua do IBGE. Os dados se referem ao trimestre encerrado em agosto. É fato: os 39,826 milhões de trabalhadores informais do País representam um recorde.

Mas é igualmente verdade que o Brasil nunca teve tantos trabalhadores formais: são 38,6 milhões de brasileiros com carteira assinada no setor privado, além de 12,7 milhões de servidores públicos. São, portanto, mais de 51 milhões de trabalhadores protegidos por uma legislação supostamente anacrônica.

Diferentemente do que Lula diz, não é que os jovens trabalhadores recusam o regime celetista. Eles preferem, sim, a flexibilidade do trabalho informal (e precarizado) a uma jornada de trabalho mais rígida, com carga horária diária predefinida. Mas não há pesquisa ou estudo sério que mostre o desprezo desses trabalhadores às vantagens de serem celetistas.

Quem disse que os motoristas da Uber e os entregadores do iFood consideram os direitos trabalhistas inúteis ou descartáveis? Qual pesquisa – científica, séria, sem vícios – constatou a concordância desses profissionais com as condições gerais de trabalho a que são submetidos? A quem interessa essa nova onda de ataques à carteira de trabalho?

Do alto de seus 92 anos, a carteira, instituída pelo governo Getúlio Vargas, continua cercada de mitos. É falso que o documento tenha nascido junto à CLT, no Rio de Janeiro, no Dia do Trabalhador (1º de Maio) de 1943. O decreto que a criou a “carteira profissional” é anterior e foi assinado por Vargas em março de 1932, embora a CLT, efetivamente, tenha garantido mais direitos ao trabalhador com carteira assinada.

Tampouco é verídico que sua inspiração seja fascista. Historiadores do trabalho questionam cada vez mais a hipótese de que a CLT em geral e a carteira de trabalho em particular sejam baseadas na “Carta del Lavoro”, criada por Benito Mussolini na Itália. À luz da história, está claro que o registro em carteira é garantia de proteção e cidadania – e não de tutela do Estado.

O coro por desregulamentação e desmonte já resultou em retrocessos como a reforma trabalhista, de 2017, e a reforma da Previdência, em 2019. A esquerda precisa conhecer a fundo a classe trabalhadora para representá-la à altura e ter mais êxito nas eleições. Nada disso, porém, se dará à custa da demonização da carteira de trabalho e de um discurso conservador. Chega de precarização!

VERMELHO

A quem interessam os ataques à carteira de trabalho?