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Previsto para entrar na pauta de votação do Congresso amanhã, o projeto de lei 7.376, que cria a Comissão Nacional da Verdade, deve ser aprovado com apoio de todas as bancadas, depois de intensa negociação do governo, que colocou quatro de seus ministros – Justiça, Defesa, Direitos Humanos e Relações Institucionais – para conversar com a base e a oposição e convencê-los da importância da matéria. No entanto, quem acompanha com assiduidade o tema está temeroso com o projeto, que nasceria com debilidades evidentes.

O Valor conversou com especialistas, promotores e participantes de comissões da Verdade feitas em países da América Latina e África. A opinião unânime é de que o projeto, tal como está, é extremamente dependente da boa vontade do governo. O grupo de trabalho designado é considerado insuficiente e desprovido de autonomia financeira, já que não tem dotação orçamentária e dependeria de repasses, vinculado que está à Casa Civil. O período analisado, de 1946 a 1988, é visto como demasiadamente extenso, o que tornaria inviável uma investigação minuciosa. “Corre-se o risco de criar uma comissão débil. Com sete membros e 14 funcionários para cuidar de tudo, de atender o telefone até fazer a inquirição, a leitura de milhões de documentos, apurar as violações cometidas em 42 anos no Brasil todo, é completamente impossível”, afirma o procurador da República Marlon Weichert. A opinião do procurador é compartilhada por especialistas do Peru e da Argentina, países que criaram comissões semelhantes para apurar violações aos direitos humanos em diferentes períodos.

“Não há nenhuma possibilidade de sete comissários e 14 pessoas investigarem 40 anos de violência política. Isso é inviável”, diz Jo-Marie Burt, cientista política americana que participou da comissão da verdade peruana. “Eu diria que essa é uma estrutura mínima, e que logo será necessário trazer mais pessoas”.

O advogado chileno Roberto Garretón, que atuou na área de direitos humanos durante a ditadura de Ernesto Pinochet, vai mais longe. Segundo ele, seriam necessárias pelo menos 300 pessoas para trabalhar em uma comissão que investigue crimes cometidos “de Curitiba a Natal, da fronteira com a Bolívia ao Atlântico”. Além disso, para ele a comissão deveria ter foco somente no período da ditadura militar (1964-1985). “A impressão que me fica sabe qual é? É que se cria [a comissão] para fracassar”, avaliou. “Não se pode colocar no mesmo plano o que aconteceu sob Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Garrastazu Médici e Castelo Branco. São contextos muito diferentes”.

A escolha dos sete membros da comissão é atribuição exclusiva da Presidência da República, outro ponto criticado por especialistas. “O processo poderia ser mais transparente. Que a presidente faça a escolha, mas deveria haver vedação de participação dos diretamente envolvidos nos fatos investigados, tanto vítimas quanto agentes políticos, garantindo a isenção”, observa a procuradora da República Eugênia Fávero. Os participantes são demissíveis a qualquer momento. “Achamos que o mandato deveria ser fixo, e que uma eventual demissão só poderia ocorrer a partir de um processo administrativo. Assim, se garantiria a independência destes na atuação”, diz a procuradora.

Para Garretón, no entanto, a comissão deve abrigar gente próxima “aos dois lados”. “As comissões da verdade não são criadas para convencer aos convencidos. Os familiares das vítimas sabem o que aconteceu. Essas comissões são feitas para convencer aqueles que dizem não saber nada”.

A comissão da Verdade é um dos instrumentos indicados pela Organização da Nações Unidas e por cortes internacionais relacionados à Justiça de transição – conjunto de medidas adotado por um país quando sai de um período de exceção. O objetivo é adotar medidas que visem a não repetição daqueles acontecimentos.

Ao contrário de um argumento corrente de parte a parte, as comissões não têm caráter punitivo. O que fazem é a recuperação da verdade histórica, a versão oficial do Estado. Busca-se entender o funcionamento de instituições que se envolveram com a prática de violações de direitos humanos. A punição é matéria exclusiva do Poder Judiciário. “A questão é saber como o Estado foi capaz de se transformar em uma máquina de violação”, atesta Weichert.

Em países como Argentina, Peru e Chile, as comissões foram apenas o primeiro passo no que ativistas de direitos humanos classificam como “processo de verdade e justiça”, na transição de regimes tidos como ditatoriais para a democracia. O segundo, adotado mais cedo ou mais tarde, dependendo do país, foi a punição dos violadores.

“É um problema não investigar todas as pessoas comprovadamente envolvidas nesses crimes contra a humanidade. Na Argentina, tivemos vários casos de pessoas que ocupavam cargos públicos, governadores eleitos, deputados. Se não se julga esse tipo de pessoa, fica difícil ter instituições democráticas onipresentes”, afirma Valeria Borbuto, diretora de investigação do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), ONG argentina criada em 1979 e envolvida em vários processos judiciais relacionados a mortos e desaparecidos na ditadura.

O país criou a sua comissão da verdade em 1984, logo após o fim do regime militar, por ordem do então presidente Raúl Alfonsín. A comissão coletou depoimentos voluntários, mas não apontou nomes de violadores. Porém, os testemunhos foram fundamentais para a condenação, em 1985, de cinco membros da junta militar que governou o país entre 1976 e 1983.

Eles receberam indulto durante o governo de Carlos Menem, que editou duas leis de anistia: “Ponto Final” (que ditou o fim de todos os processos contra pessoas acusadas de violência política durante a ditadura) e “Obediência Devida” (que isentou subordinados das Forças Armadas de crimes cometidos sob ordens de seus superiores).

Essas leis foram declaradas inconstitucionais em 2003, já durante o governo de Néstor Kirchner, pela Suprema Corte do país, o que possibilitou a retomada dos processos.

Na opinião de Valéria Borbuto, do Cels, os próprios depoimentos e as provas coletadas pelo órgão servirão naturalmente como instrumento de pressão para que haja julgamentos. “Se a verdade dos depoimentos for fidedigna com o que de fato aconteceu, ela será escandalosa”, afirmou.

A jornalista argentina Magdalena Ruiz Guiñazu, que participou da comissão da verdade em seu país, afirma que muitos dos encarregados de coletar depoimentos não conseguiram concluir os seus trabalhos, tamanhas eram as atrocidades que eles escutavam. “O Ministério do Interior havia indicado um pessoal para receber as denúncias dos familiares das vítimas, e elas eram tão terríveis que eles não aguentaram”, recorda. “Tivemos que convocar gente ligada aos organismos de direitos humanos para ouvi-los”.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos condenou, em 2010, o Brasil em relação à Guerrilha do Araguaia. Pela sentença, o Estado brasileiro terá de remover todos os obstáculos práticos e jurídicos para a investigação e esclarecimento de crimes e responsabilização dos envolvidos. O Tribunal reafirmou o alcance geral de sua decisão, exigindo que as disposições da lei de Anistia não representem um obstáculo à investigação. “Há uma diferença aí que é preciso anotar. Aprovar o projeto da Comissão da Verdade não cumpre a decisão da Corte”, observa Weichert. A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, atesta que os processos são separados. “Dizer que o Brasil procura com a comissão da Verdade responder à Corte é não admitir que o país precisa responder às sua própria história e sua gente”.

“A sociedade ferida por um crime contra a humanidade não é o vilarejo onde ele ocorreu, nem o país, mas a humanidade inteira. E, se é a humanidade inteira, não há por que um juiz ditar a anistia”, diz Garretón. “Eu não diria que o Brasil está atrasado. O Brasil não começou a atuar, simplesmente. No Brasil não havia comissão da verdade nem julgamento de criminosos”.

Para Jo-Marie Burt, não obstante crimes de lesa-humanidade já serem considerados imprescritíveis à luz do Direito Internacional, “a lei de anistia no Brasil vai cair sob esse mesmo tipo de decisão [da OEA]. Porque são decisões cuja jurisprudência se aplica a todos os Estados que são signatários do sistema interamericano, o que é o caso do Brasil”.