OPINIÃO
A responsabilidade das mulheres pelos cuidados na vida econômica e social costuma ser um tema pouco tratado em geral, e quase ignorado pelos pesquisadores do direito, embora esteja presente no cotidiano feminino de maneira intensa, permeando as relações públicas e privadas, numa naturalização que leva ao assentamento da desigualdade entre gêneros e mantém injustiças.
O assunto dos cuidados ou da economia dos cuidados acaba sendo mais analisado em outros campos da área de humanas, sobre a perspectiva da economia, da história, da antropologia e da sociologia, do que na seara jurídica, apesar do debate emergente acerca da necessidade de julgamento sob a perspectiva de gênero, que acaba por instar que os operadores do direito tenham olhar acurado para demandas que, de alguma forma, dialoguem com o universo feminino.
A “economia dos cuidados” está relacionada às atividades cruciais para manter as pessoas vivas e promoverem o seu bem-estar.
Nesse rol estariam incluídos a limpeza e manutenção das casas, a criação dos filhos, a atenção aos idosos e os cuidados pessoais e de higiene, que tanto podem ser desempenhados pelos membros de uma família quanto por babás, enfermeiras, empregadas domésticas, fisioterapeutas, manicures e muitos outros. Em complemento, sob a ótica econômica, essa proposta conceitual tem por finalidade medir e dimensionar o cuidado, de maneira a incorporá-lo nas análises econômicas.
De fato, não se pode esquecer que o direito das mulheres e o próprio feminismo sempre teve a ver com a economia, tanto que Virginia Woolf em seu célebre ensaio, de 1929, já dizia que para que uma mulher pudesse escrever seria preciso que ela tivesse um teto todo seu, e isso custava dinheiro.
A correlação feita por Virginia Woolf também pode ser observada quando, no fim do século 19 e início do século 20, as mulheres passam a se organizar para obterem o direito à herança, o direito à propriedade, o direito de abrir as próprias empresas, o direito ao emprego sem a outorga do marido e, finalmente, o direito a salários iguais.
O apontamento histórico de que “as mulheres foram trabalhar nos anos 1960” merece correção, pois essa afirmação deixa de reconhecer que as mulheres sempre ocuparam o mundo do trabalho e, que na verdade o que ocorreu é que, a partir da década 60, muitas mulheres cumularam jornadas de trabalho — a não remunerada, de cuidados de sua família, com a remunerada, em empregos públicos ou privados, formais ou informais.
Ou seja, somaram o trabalho doméstico ao ingresso no mercado, fazendo com que uma de suas jornadas laborativas passasse a ser remunerada.
O que deve ser percebido é que as mulheres, que antes desempenhavam funções na vida privada como administradoras do lar, cuidadoras, cozinheiras, educadoras, passadeiras, babás dentre outras tarefas, começaram a competir, no espaço público, com os homens como executivas, médicas, advogadas, professoras universitárias, cientistas, engenheiras e demais profissões majoritariamente ocupadas pelo o gênero masculino.Há também um grupo grande de mulheres que não tiveram essa ascensão educacional e não passaram a ser melhor remuneradas por suas atividades profissionais. Na realidade brasileira, essas mulheres são negras, pobres e vivem em favelas ou bairros com menor infraestrutura, com precariedade de oferta de serviços essenciais.
No Brasil, a atenção ao tema dos cuidados exercidos no âmbito doméstico, remunerados ou não, apareceu, a partir do final dos anos de 1980, de maneira escassa e pontual, em normas — previdenciárias (para proteção da dona de casa pela seguridade social), trabalhistas (com especial destaque para a PEC das empregadas domésticas), sobre maternidade e primeira infância, sobre atenção às pessoas com deficiência – e em políticas públicas com recorte de gênero.
No entanto, a consideração dos cuidados ou do direito de cuidar como mote autônomo para desenho e implementação de políticas públicas é ainda um desafio. O assunto ganhou um aporte de concretude em 2023, com a instituição, pelo governo federal, de um Grupo de Trabalho Interministerial (GIT) com a finalidade de elaborar as propostas da Política Nacional de Cuidados e do Plano Nacional de Cuidados.
No âmbito latinoamericano, em janeiro de 2023, o exercício do cuidado foi levado à Organização dos Estados Americanos (OEA) como um direito, por provocação da Argentina. Este Estado apresentou à Secretaria da Corte Interamericana de Direitos Humanos um pedido de parecer consultivo sobre “O conteúdo e o alcance do direito de cuidar e sua inter-relação com outros direitos”.
Neste pedido, a Argentina explica que
“Os cuidados são uma necessidade, um trabalho e um direito. Uma necessidade na medida em que tornam possível a existência humana, uma vez que todas as pessoas necessitam de cuidados para o seu bem-estar e desenvolvimento. Um trabalho em função do seu valor socioeconômico. Um direito que deve ser garantido em suas três dimensões essenciais: dar cuidados, receber cuidados e o autocuidado.”
A Corte Interamericana estabeleceu prazo, até novembro de 2023, para entidades e Estados apresentarem observações escritas. Houve inúmeras contribuições. Por consequência, em janeiro deste ano, foi convocada audiência pública, na modalidade presencial, de 12 a 15 de março, para debater o tema. O processo em andamento indica perspectivas de avanço e de fortalecimento do rol de direitos humanos das mulheres.
A atual ampliação e a institucionalização, no plano nacional e internacional, reflete o amadurecimento das demandas das mulheres por igualdade, já que a realidade mostrou que a possibilidade delas arcarem com o próprio sustento bem como de assumirem compromissos financeiros equivalentes para gastos da família não as impulsionou para a equânime divisão das tarefas domésticas e de cuidados.
A perda de oportunidades continua a pender para o coletivo feminino e, para as classes média e alta, vem travestida de “opção por não trabalhar fora”, já que os custos financeiros da família com a contratação de serviços de cuidados “não compensam”.
Para as famílias mais pobres, em que não há “opção” de viver sem a renda da mulher, as soluções para cuidar dos filhos são buscadas na comunidade, com redes de apoio formadas por parentes idosos já aposentados e vizinhos. A interseccionalidade entre raça, gênero e classe social é necessária para abordagem sobre ações e leis protetivas do exercício dos cuidados.
A figura da empregada doméstica no Brasil decorre do passado escravocrata e é uma personagem central na organização dos cuidados em nosso país. Dados indicam que há quase 7 milhões de pessoas que exercem a profissão de domésticas no país, destas aproximadamente 6 milhões são mulheres e quase 4 milhões são mulheres negras.
Sob a ótica dos direitos coletivos das mulheres, vale enfatizar que mesmo naquelas unidades domésticas que contam com a contratação de trabalhadoras domésticas há que se reconhecer que o fardo desta realização recai primordialmente sobre as mulheres, que em muitas vezes se traduz em obrigações que levam à perda de oportunidades de melhores postos de trabalho e menores salários.
Ao mesmo tempo, as relações dos empregadores com as trabalhadoras domésticas reforçam não somente a desigualdade entre gêneros, mas também servem para estabilizar (ou alimentar) a diferença entre a mulher que contrata e comanda o trabalho de cuidados no âmbito doméstico e a que os exerce.
Assim, falar em direitos coletivos das mulheres e cuidados é falar contextos diversos de vulnerabilidade, que vão desde a perda de oportunidades das mulheres, que têm dimensões diferentes para as de classes sociais mais ou menos favorecidas, até a necessidade de se tratar a questão sob a lente da interseccionalidade, que atinge mulheres negras e pobres que também acumulam a tarefa profissional de cuidar com as responsabilidades domésticas não remuneradas.