NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Historicamente, o trabalho de cuidado tem sido subvalorizado e invisibilizado, contribuindo para a desigualdade de gênero e para a limitação das oportunidades econômicas e profissionais das mulheres, especialmente das mulheres negras ¹. Embora frequentemente não remunerado, esse trabalho possui enorme relevância econômica, pois sem o cuidado prestado nas famílias e nas comunidades, especialmente aquelas das periféricas, grande parte das pessoas não poderia participar da força de trabalho formal, considerada “produtiva”, isto é, aquela voltada à geração de bens e serviços de valor mercantil ².

Em contraposição, o trabalho “reprodutivo” — aquele que assegura a reprodução da vida e das pessoas — é desvalorizado justamente por se situar no âmbito privado ou doméstico, e ser socialmente atribuído às mulheres ³. Essa divisão sexual do trabalho, fruto de uma lógica patriarcal e capitalista, construiu uma hierarquia que privilegia o trabalho produtivo, relegando o cuidado à esfera doméstica e afetiva⁴, o que foi objeto de severas críticas pelo movimento feminino.

A discussão contemporânea sobre a economia do cuidado e a valorização do trabalho doméstico tem adquirido relevância nos debates sobre direitos sociais, igualdade de gênero e dignidade da pessoa humana. Apesar de ambos se desenvolverem muitas vezes no mesmo espaço — o lar —, o trabalho doméstico e o trabalho de cuidado não se confundem. Essa distinção, de natureza conceitual e jurídica, é essencial para a formulação de políticas públicas coerentes e para a adequada proteção das trabalhadoras do cuidado.

Como destaca Raquel Leite da Silva Santana, o cuidado é uma forma de trabalho racializado, exercido majoritariamente por mulheres negras, o que evidencia a necessidade de regulamentação jurídica própria para as cuidadoras remuneradas ⁵. O Projeto de Lei nº 1.385/2007, ainda em tramitação, buscou essa profissionalização, reconhecendo o cuidado como espécie jurídica autônoma dentro do gênero “trabalho reprodutivo”.

O presente artigo, portanto, pretende refletir sobre os fundamentos sociais e jurídicos que distinguem o trabalho doméstico do trabalho de cuidado, sem pretensão de exaurir o tema, mas de contribuir para o debate sobre sua necessária valorização.

Trabalho doméstico: conceito e enquadramento jurídico

O trabalho doméstico é definido pelo artigo 1º da Lei Complementar nº 150/2015 como aquele “prestado por pessoa física, de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal, e de finalidade não lucrativa, à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas“. Trata-se de atividade essencial à reprodução da vida cotidiana — limpeza, alimentação, manutenção do lar — mas historicamente desvalorizada por estar associada à esfera privada e à feminização do labor ⁶.

A Constituição de 1988, especialmente após a Emenda Constitucional nº 72/2013, ampliou o rol de direitos dos empregados domésticos, corrigindo uma discriminação histórica existente desde o texto originário ⁷. Contudo, a persistência da informalidade e da desigualdade salarial demonstra que a valorização formal não bastou para eliminar a hierarquia social que marginaliza esse trabalho e discriminação do trabalhador doméstico, e a figura, ainda existente em muitas famílias, do “quartinho da empregada”, de que fala Laurentino Gomes, em sua trilogia Escravidão, é uma prova simbólica dessa realidade.

Do ponto de vista jurídico, a subordinação típica do emprego doméstico ocorre dentro da residência, sem finalidade econômica direta, o que o diferencia das relações produtivas. No entanto, o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF/88), o valor social do trabalho (artigo 1º, IV) e o princípio da igualdade material (artigo 5º, caput) impõem interpretação que supere a lógica patriarcal que inferioriza o trabalho doméstico ⁸.

Trabalho de cuidado: natureza e especificidade

O trabalho de cuidado, embora muitas vezes prestado no mesmo espaço doméstico, possui natureza distinta: trata-se de uma atividade relacional, voltada diretamente ao bem-estar físico, emocional e social de outra pessoa. Envolve, portanto, atenção, empatia e responsabilidade moral, transcendendo o simples fazer doméstico ⁹.

Esse trabalho encontra respaldo constitucional nos artigos 226, 227 e 230 da Constituição de 1988, que impõem à família, à sociedade e ao Estado o dever de proteger crianças, adolescentes, pessoas idosas e com deficiência. O cuidado, portanto, deve ser compreendido como direito fundamental e, simultaneamente, como trabalho socialmente necessário à reprodução da vida¹⁰.

A ausência de regulamentação específica no ordenamento jurídico brasileiro para o trabalho de cuidado remunerado gera insegurança e desproteção. Doutrinadoras feministas como Helena Hirata e Nancy Fraser destacam que o cuidado, enquanto atividade indispensável à manutenção da vida, deve ser reconhecido como parte integrante da economia política contemporânea, e não como um apêndice doméstico ¹¹.

No plano internacional, a Convenção nº 189 da OIT (2011) e a Recomendação nº 204 (2015) reconhecem a importância do trabalho de cuidado e instam os Estados a criarem marcos legais que garantam proteção social, condições dignas e igualdade de oportunidades ¹².

Linha tênue e critérios distintivos

A fronteira entre o trabalho doméstico e o trabalho de cuidado nem sempre é nítida. Em muitos casos, a mesma pessoa realiza funções domésticas e presta assistência direta — como limpar a casa e cuidar de uma criança ou idoso.

-Se o objeto predominante é a manutenção do lar, trata-se de trabalho doméstico.

-Se o objeto é o cuidado direto e contínuo de pessoa, configura-se trabalho de cuidado ¹³.

A doutrina contemporânea tem enfatizado a dimensão humana e afetiva do cuidado, que exige preparo técnico e emocional. A pessoalidade, a confiança e a responsabilidade envolvidas fazem do cuidado uma categoria de labor que demanda formação específica, especialmente no atendimento a pessoas idosas, enfermas ou com deficiência ¹⁴.

Implicações jurídicas e desafios normativos

A ausência de regulação específica para o trabalho de cuidado compromete a segurança jurídica de trabalhadoras e empregadores, além de invisibilizar o valor econômico dessa atividade. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que o trabalho não remunerado de cuidado representa mais de 10% do PIB brasileiro ¹⁵.

De fato, a ausência de normas disciplinando essa modalidade de trabalho termina contribuindo para a manutenção da divisão desigual do trabalho, o que tem implicações negativas para a igualdade de gênero. Isso se manifesta no fato de que muitas ocupações de cuidado são erroneamente consideradas não qualificadas ou uma extensão do papel “natural” ou “tradicional” das mulheres como cuidadoras, um estereótipo que contribui para seu baixo status, baixa remuneração e falta de representação nos espaços de tomada de decisão.

A distinção entre “cuidar” e “servir” é crucial. O primeiro implica uma relação de assistência e afeto; o segundo, de prestação material. Por isso, defende-se, aqui, a criação de um marco legal próprio para os cuidadores, contemplando jornada especial, formação mínima, remuneração adequada e responsabilidades diferenciadas ¹⁶.

A construção de políticas públicas que valorizem o cuidado é, portanto, uma exigência de justiça social e de direitos humanos, em consonância com os compromissos assumidos pelo Brasil perante organismos internacionais como a ONU Mulheres e a OIT.

Conclusão

A distinção entre o trabalho doméstico e o trabalho de cuidado transcende a semântica: trata-se de reconhecer juridicamente atividades centrais à manutenção da vida e da dignidade humana.

Enquanto o primeiro está voltado à organização do lar, o segundo visa ao bem-estar de pessoas, com complexidade técnica e afetiva que impõe regulamentação própria. A valorização do cuidado como trabalho essencial demanda superar a herança patriarcal e racial que o invisibiliza e afirmar, sob a ótica constitucional, que cuidar é também produzir humanidade.

O desafio que se impõe ao legislador é construir um marco jurídico que reconheça o cuidado como trabalho socialmente necessário, dotado de valor econômico, ético e político, conforme os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e do valor social do trabalho (artigos 1º, III e IV; 3º, IV; e 5º, caput, da CF/88).


1. FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas. São Paulo: Elefante, 2019.

2. FRASER, Nancy. Contradições do capital e cuidados. Revista Sociedade e Estado, Brasília, v. 33, n. 1, 2018.

3. HIRATA, Helena. Trabalho, cuidado e desigualdades. São Paulo: Boitempo, 2020.

4. SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: Brasiliense, 2011.

5. SANTANA, Raquel Leite da Silva. O trabalho de cuidado e a racialização do labor feminino. Revista Direito e Sociedade, v. 10, n. 2, 2022.

6. Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Diário Oficial da União, Brasília, 2 jun. 2015.

7. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

8. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 20. ed. São Paulo: LTr, 2021.

9. PISCITELLI, Adriana. Cuidado e gênero: novas fronteiras do trabalho reprodutivo. Revista Cadernos Pagu, n. 55, 2019.

10. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, arts. 226, 227 e 230.

11. FRASER, Nancy; HIRATA, Helena. Crisis of care and gender equality. Paris: CNRS Éditions, 2020.

12. Organização Internacional do Trabalho (OIT). Convenção nº 189 e Recomendação nº 204 sobre o Trabalho Doméstico. Genebra, 2011.

13. Ibid.

14. Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Brasília, 2023.

15. Tempo de cuidar: o trabalho não remunerado e os seus impactos econômicos. Brasília, 2022.

16. BRITO, Fausto. Políticas públicas e economia do cuidado no Brasil. Revista Serviço Social e Sociedade, v. 145, 2023.

17. IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), 2024.

  • é desembargador do Trabalho, diretor da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região (Ejud24), mestre e doutor em Direito Social pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha).

CONJUR
https://www.conjur.com.br/2025-out-31/distincao-entre-trabalho-domestico-e-de-cuidado-perspectivas-juridicas-e-sociais/