NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

A recente notícia sobre a implementação do e-Consignado para trabalhadores do regime CLT representa uma importante mudança no cenário do crédito no Brasil. Essa nova modalidade, conforme anunciada pelo governo federal, visa proporcionar acesso a empréstimos com taxas de juros mais baixas para trabalhadores formais, utilizando como base a plataforma do eSocial e permitindo a possibilidade de refinanciamento de dívidas já existentes. A medida está próxima de ser lançada por meio de uma medida provisória, prevista para o período pós-Carnaval, entre os dias 10 e 14 de março de 2025.

O e-Consignado surge em um contexto de altas taxas de juros no crédito pessoal e elevado endividamento da população brasileira. Apresentado como uma solução para aliviar as dívidas dos trabalhadores, o mecanismo permitirá o desconto das parcelas diretamente na folha de pagamento, limitando o comprometimento da renda a 35%. Além disso, caso ocorra demissão, parte do FGTS do trabalhador poderá ser utilizada como garantia, incluindo 10% do saldo disponível e os 40% da multa rescisória, embora os bancos tenham liberdade para negociar essa condição específica.

A proposta do governo está estruturada em quatro eixos principais: liberdade de taxas de juros, sem estabelecimento de um teto, mas com expectativa de média em torno de 2,5% ao mês; canais de acesso e automatização, permitindo a contratação por aplicativos bancários e plataformas de internet banking; modelagem de risco e integração de dados, considerando o perfil do trabalhador e o porte da empresa empregadora; e a possibilidade de migração de crédito consignado, permitindo que trabalhadores com empréstimos sem garantia possam transferir suas dívidas para essa nova modalidade com condições mais favoráveis.

Ao analisarmos essa nova política de crédito, é fundamental refletir sobre suas implicações mais amplas para a classe trabalhadora, considerando os aspectos jurídicos, econômicos e sociais envolvidos. Apesar dos benefícios aparentes de taxas de juros reduzidas, é necessário questionar se o e-Consignado realmente representa uma solução estrutural para o problema do endividamento ou se apenas transfere o problema para outra modalidade de crédito, perpetuando um ciclo de dependência financeira.

Proteção do salário e análises doutrinárias

Do ponto de vista jurídico, a implementação do e-Consignado suscita questões importantes relacionadas à proteção do salário do trabalhador. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelece em seu artigo 462 que é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, dispositivos de lei ou de contrato coletivo. A nova modalidade de consignado ampliaria significativamente as possibilidades de comprometimento do salário, o que pode entrar em conflito com o princípio da intangibilidade salarial, um dos pilares do direito do trabalho.

Ademais, a possibilidade de utilização do FGTS como garantia em caso de demissão também levanta preocupações. O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço foi instituído com o objetivo específico de proteger o trabalhador demitido sem justa causa, proporcionando-lhe um suporte financeiro durante o período de desemprego. Ao permitir que parte desses recursos seja utilizada para quitar empréstimos, pode-se estar desviando a finalidade original do fundo, comprometendo a segurança financeira do trabalhador justamente no momento em que ele mais necessita de proteção.

A ausência de um teto para as taxas de juros no e-Consignado, sob o argumento de permitir que os bancos pratiquem diferentes taxas de acordo com os riscos de cada setor, também merece atenção crítica. Embora a expectativa anunciada seja de uma taxa média de 2,5% ao mês, a experiência histórica com o sistema financeiro brasileiro sugere que, sem regulação adequada, há sempre o risco de taxas abusivas, especialmente para trabalhadores em setores considerados de maior risco ou empregados em empresas menores.

No que tange à análise doutrinária, Delgado (2019) argumenta que “a proteção ao salário constitui um dos mais importantes princípios justrabalhistas, em face do caráter alimentar que a parcela salarial tem no contexto da relação empregatícia”. Essa proteção, segundo o autor, justifica-se pela natureza existencial do salário, que garante a subsistência do trabalhador e de sua família. O e-Consignado, ao facilitar o comprometimento de até 35% da renda do trabalhador, pode representar uma flexibilização desse princípio protetor, potencialmente comprometendo a função alimentar do salário.

Segundo Souto Maior (2017), “o direito do trabalho possui um compromisso com a justiça social e com a melhoria das condições de vida dos trabalhadores”. O autor destaca que políticas públicas voltadas para o trabalho devem ter como norte a dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho humano, conforme estabelecido pela Constituição. Nesse sentido, cabe questionar se uma política de facilitação do endividamento, mesmo que com juros menores, atende realmente aos interesses da classe trabalhadora ou se favorece primordialmente o sistema financeiro.

Vivemos um período marcado pela “precarização estrutural do trabalho”, com erosão progressiva dos direitos trabalhistas e insegurança crescente para quem vive do próprio trabalho. Neste cenário, medidas como o e-Consignado que ampliam a dependência financeira tendem a agravar a vulnerabilidade social dos trabalhadores, particularmente quando consideramos os riscos de desemprego em um mercado laboral cada vez mais instável. As políticas de orientação neoliberal frequentemente transferem aos indivíduos a responsabilidade por sua própria situação econômica, ignorando deliberadamente fatores estruturais fundamentais como a concentração de renda e as profundas desigualdades sociais que caracterizam a sociedade brasileira (ANTUNES, 2018).

Na visão de Oliveira (2020), “o endividamento dos trabalhadores é uma face perversa do capitalismo financeirizado”, onde o crédito funciona como um mecanismo de extração de valor do trabalho pelo capital. O autor argumenta que políticas de facilitação do endividamento, mesmo que com juros mais baixos, tendem a perpetuar relações de dependência e podem contribuir para a transferência de renda do trabalho para o setor financeiro. Essa análise sugere que o e-Consignado, embora apresentado como solução para o endividamento, pode na verdade aprofundar as relações de subordinação econômica dos trabalhadores.

A proteção ao salário representa um dos pilares fundamentais no direito do trabalho brasileiro, sendo reconhecida sua natureza essencialmente alimentar, o que justifica a necessidade de blindagem contra abusos tanto por parte do empregador quanto de terceiros. Os descontos salariais devem constituir situações excepcionais e não práticas corriqueiras, precisamente para assegurar que o trabalhador possa garantir sua subsistência e de sua família com dignidade. Quando analisamos a expansão do crédito consignado para o setor privado através do e-Consignado, percebemos que, sem mecanismos adequados de proteção, esta iniciativa pode ameaçar seriamente este princípio fundamental do direito trabalhista, comprometendo a intangibilidade salarial que representa uma conquista histórica da classe trabalhadora (CASSAR, 2021).

Paliativo

As profundas transformações que testemunhamos no mundo do trabalho contemporâneo impõem uma necessária revisão dos mecanismos de proteção social existentes, exigindo adaptações que respondam às novas realidades laborais. Em um cenário caracterizado por crescente instabilidade no emprego, com vínculos cada vez mais frágeis e intermitentes, políticas públicas que comprometem a renda futura dos trabalhadores tendem a agravar substancialmente sua vulnerabilidade econômica e social, criando riscos particularmente intensos durante períodos de crise sistêmica. Esta análise ganha contornos especialmente preocupantes quando examinamos a proposta do e-Consignado, que prevê a possibilidade de utilização do FGTS como garantia de empréstimos, potencialmente enfraquecendo um dos principais instrumentos de proteção desenvolvidos pelo direito trabalhista brasileiro para amparar o trabalhador nos momentos de desemprego, quando sua vulnerabilidade atinge níveis críticos (CARELLI, 2022).

Cardoso (2021) analisa que “as políticas de crédito para trabalhadores precisam ser avaliadas em um contexto mais amplo de distribuição de renda e acesso a direitos sociais”. O autor argumenta que, em um país com alta desigualdade como o Brasil, o endividamento muitas vezes substitui políticas mais efetivas de aumento real dos salários e ampliação de serviços públicos. Assim, o e-Consignado poderia ser visto não como uma solução, mas como um paliativo que não enfrenta as causas estruturais do endividamento dos trabalhadores.

O endividamento crescente entre trabalhadores não representa apenas um desafio financeiro, mas configura um problema de saúde pública com dimensões preocupantes para o ambiente laboral e para a qualidade de vida dos indivíduos. A insegurança financeira tem se consolidado como um dos principais fatores geradores de estresse crônico e adoecimento no contexto do trabalho, afetando diretamente a produtividade, as relações interpessoais e o bem-estar geral dos trabalhadores. Quando analisamos propostas como o e-Consignado, é fundamental questionar se políticas públicas que simplesmente facilitam o acesso ao crédito, sem oferecer simultaneamente programas estruturados de educação financeira e sem enfrentar questões estruturais como a desvalorização real dos salários frente ao custo de vida, não estariam na verdade contribuindo para o agravamento deste quadro generalizado de adoecimento mental da classe trabalhadora, ainda que no curto prazo possam proporcionar um alívio temporário da pressão financeira imediata. A abordagem puramente creditícia, desacompanhada de medidas que fortaleçam a capacidade financeira autônoma do trabalhador, arrisca transformar-se em um ciclo vicioso de dependência e sofrimento psíquico (SEVERINO, 2023).

Para além das análises doutrinárias, é importante considerar os impactos práticos que o e-Consignado pode ter na vida dos trabalhadores brasileiros. Um dos aspectos mais preocupantes é a possibilidade de aprofundamento do ciclo de endividamento. Embora a proposta permita a migração de dívidas mais caras para uma linha com juros menores, ela não aborda as causas fundamentais do endividamento, como salários insuficientes para cobrir o custo de vida e o acesso precário a serviços públicos essenciais.

Liberdade do trabalhador e proteção de dados

Outro impacto significativo diz respeito à estabilidade no emprego. Em um contexto no qual parte do FGTS pode ser comprometida como garantia, trabalhadores endividados podem se sentir pressionados a permanecer em empregos insatisfatórios ou mesmo abusivos por medo das consequências financeiras de uma demissão. Isso poderia aumentar a já existente assimetria de poder nas relações trabalhistas, limitando a liberdade efetiva do trabalhador no mercado de trabalho.

A implementação do e-Consignado também levanta questões sobre privacidade e proteção de dados. A integração de informações entre eSocial, birôs de crédito e instituições financeiras, embora possa facilitar a análise de crédito, também representa um aumento na circulação de dados sensíveis dos trabalhadores. Sem garantias robustas de proteção, essa centralização de informações pode levar a novos riscos relacionados à privacidade e à discriminação baseada em perfis de crédito.

Do ponto de vista macroeconômico, embora o governo apresente a medida como um estímulo à economia através da injeção de crédito, é questionável se o incentivo ao consumo via endividamento representa uma estratégia sustentável de desenvolvimento. Uma política econômica focada na valorização real dos salários, na geração de empregos de qualidade e na redução das desigualdades poderia oferecer bases mais sólidas para o crescimento econômico a longo prazo.

Por fim, é importante destacar que a implementação do e-consignado por meio de Medida Provisória, sem um amplo debate público e sem a participação efetiva de representantes dos trabalhadores em sua formulação, levanta preocupações sobre o processo democrático na elaboração de políticas que afetam diretamente a classe trabalhadora. Uma política de crédito com potenciais impactos tão significativos mereceria um debate mais aprofundado, envolvendo sindicatos, acadêmicos, especialistas em direito do trabalho e representantes da sociedade civil.


Referências

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

CARDOSO, Adalberto. Trabalho e desigualdade: Problemas de nosso tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Trabalho no século XXI: Direito do trabalho, meio ambiente do trabalho e discriminação. São Paulo: LTr, 2022.

CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 17ª ed. São Paulo: Método, 2021.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 18ª ed. São Paulo: LTr, 2019.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista/O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2020.

SEVERINO, João Paulo. Trabalho, endividamento e saúde mental. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, v. 48, n. 2, p. 1-15, 2023.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. História do direito do trabalho no Brasil: curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2017.

  • é pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), doutor e mestre em História Econômica pela USP, especialista em Economia do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho pela USP, bacharel e licenciado em História (USP) e bacharel em Ciências Sociais (USP) e em Direito (USP), coordenador acadêmico e do Centro de Pesquisa e Estudos na Escola Superior de Advocacia (ESA/OAB-SP).

    CONJUR

    https://www.conjur.com.br/2025-fev-27/e-consignado-credito-ou-armadilha-trabalhista/