NOVA CENTRAL SINDICAL
DE TRABALHADORES
DO ESTADO DO PARANÁ

UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Pensar o trabalho decente na Amazônia a partir das Epistemologias do Sul é, antes de tudo, um gesto de insurgência intelectual. É reconhecer que a produção de conhecimento sobre o trabalho — suas normas, valores e políticas — foi historicamente construída a partir de um centro geopolítico de saber, que impôs à periferia mundial não apenas formas de exploração econômica, mas também formas de pensar [1].

As Epistemologias do Sul, tal como formuladas por Boaventura de Sousa Santos, propõem uma alternativa radical a essa lógica: valorizam saberes subalternizados e invisibilizados e reivindicam um diálogo horizontal entre diferentes formas de conhecimento. Trata-se, em essência, de uma convocação à prática de uma sociologia das ausências e de uma sociologia das emergências — isto é, de transformar o que foi silenciado em voz e o que foi negado em possibilidade, restituindo dignidade epistêmica a modos outros de existir e de compreender o trabalho.

Esse horizonte teórico permite deslocar o olhar do Norte global para as experiências, saberes e práticas do Sul — entendido não como mera categoria geográfica, mas como metáfora das zonas de sofrimento, resistência e reinvenção. No campo do trabalho, referido deslocamento implica questionar as racionalidades hegemônicas que definem o que é digno, produtivo ou moderno, e reconhecer a pluralidade de formas de vida e de labor que compõem o universo amazônico [2].

A cultura eurocêntrica, como se sabe, instituiu uma “monocultura do saber científico” [3], que marginalizou epistemologias populares, indígenas, quilombolas, femininas e comunitárias. Por isso mesmo, mostra-se incapaz de abarcar formas de trabalho fundadas na reciprocidade, na solidariedade, na oralidade e na espiritualidade — dimensões vitais em muitas comunidades amazônicas, andinas, africanas e latino-americanas.

Esses modos de trabalhar não se organizam em torno do lucro, mas da vida. São trabalhos que reproduzem o comum, que sustentam a existência coletiva e que, embora desconsiderados pelo sistema capitalista, são essenciais à preservação do tecido social e ambiental da região e, em última instância, à própria possibilidade de futuro.

Trabalho decente: entre paradigma normativo e horizonte emancipatório

O conceito de trabalho decente, formulado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1999, constitui um marco normativo global voltado à promoção de condições mínimas de dignidade, compreendendo o acesso a emprego produtivo, liberdade, equidade e segurança. Trata-se de um paradigma que busca compatibilizar crescimento econômico com justiça social, tendo-se consolidado como eixo estruturante das políticas públicas laborais e de desenvolvimento sustentável.

Contudo, sob a lente das Epistemologias do Sul, exige-se uma reapropriação e ressignificação do conceito. Conforme propõe Boaventura de Sousa Santos, não há justiça social global sem justiça cognitiva global, e, portanto, categorias universais devem ser interrogadas a partir de seus contextos de produção [4].

Na Amazônia, pensar o trabalho decente implica mais do que o cumprimento formal de normas trabalhistas: exige a incorporação de um projeto de justiça social enraizado nos territórios, nas culturas locais e nas relações ecológicas. O que é “decente” para uma comunidade ribeirinha, para um povo indígena, para uma mulher extrativista ou para um jovem atuante no comércio informal não pode ser medido pelos mesmos parâmetros industriais ou urbanos concebidos no Norte global.

Assim, o trabalho decente, quando interpretado à luz das Epistemologias do Sul, deixa de ser apenas um direito a ser assegurado e passa a configurar-se como categoria crítica — capaz de desnaturalizar a colonialidade do trabalho, isto é, o regime de produção e de sentido que submete corpos, saberes e naturezas a uma lógica de extração, exploração e invisibilização [5].

A noção moderna de trabalho que estrutura as relações econômicas e jurídicas contemporâneas nasce no contexto da modernidade europeia, fortemente marcada pela ascensão do capitalismo, do individualismo e da racionalidade instrumental [6].

Mesmo que formulada sob distintas perspectivas — como nas teorias liberais de John Locke e Adam Smith ou na crítica marxiana à alienação do trabalho —, essa concepção compartilha uma matriz epistêmica comum: a do homem europeu como sujeito do trabalho e a do trabalho como atividade produtiva, disciplinada e transformadora da natureza.

A partir dessa racionalidade, o trabalho passou a ser medido, quantificado e hierarquizado segundo critérios de produtividade e eficiência, convertendo o tempo em mercadoria, o corpo em força produtiva e o sujeito em capital humano [7].

Entretanto, enquanto o trabalho europeu se erigia como sinônimo de dignidade e progresso, as formas de trabalho praticadas fora do centro geopolítico do saber — comunitárias, espirituais, simbólicas, de cuidado e reciprocidade — foram sistematicamente invisibilizadas, desqualificadas e exploradas [8].

A colonialidade não apenas subjugou povos, mas também impôs uma epistemologia do trabalho que deslegitimou outras ontologias e modos de produção do comum. Reconstituir o sentido de trabalho decente na Amazônia, portanto, requer o rompimento com a monocultura epistêmica e o reconhecimento de que há múltiplas racionalidades laborais que, embora marginalizadas, são centrais à sustentabilidade da vida e à resistência civilizatória.

Colonialidade do trabalho e resistências na Amazônia

A colonialidade do trabalho consiste na persistência das formas de dominação e exploração engendradas durante o período colonial, agora reconfiguradas sob os discursos da modernização, do desenvolvimento e do progresso. Como observa Aníbal Quijano, a colonialidade constitui a face oculta da modernidade: uma estrutura de poder que articula a produção econômica, a dominação política e a hierarquização epistêmica a partir de um centro eurocêntrico [9].

No campo do trabalho, essa colonialidade se traduz na subalternização das populações periféricas e na imposição de um modelo de trabalho que perpetua desigualdades históricas.

Na Amazônia, suas manifestações são múltiplas e concretas: (1) a persistência do trabalho análogo à escravidão, especialmente nas cadeias produtivas do agronegócio e da extração madeireira; (2) a precarização estrutural do trabalho rural e extrativista, marcada pela informalidade e pela ausência de proteção social; (3) a invisibilidade das mulheres e dos povos tradicionais, cujas formas de trabalho — vinculadas ao cuidado, à coleta e à reprodução da vida — seguem marginalizadas nos indicadores oficiais; e (4) a subordinação dos modos de vida amazônicos a projetos econômicos exógenos, pautados em lógicas extrativistas e desenvolvimentistas.

Não obstante, as resistências também se multiplicam, produzindo alternativas econômicas, políticas e epistêmicas. Em meio à colonialidade persistente, emergem formas de reexistência — cooperativas extrativistas, redes de economia solidária, práticas de autogestão, articulações intercomunitárias e movimentos indígenas e ribeirinhos que redefinem o trabalho como cuidado do território, reciprocidade e pertencimento [10].

Movimentos sociais como o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) e a Via Campesina expressam essa potência decolonial ao articular gênero, território e soberania alimentar [11].

Essas práticas são expressões das epistemologias vivas do Sul, pois produzem conhecimento e justiça a partir da experiência.São epistemologias enraizadas no cotidiano e sustentadas por relações de solidariedade, espiritualidade e comunalidade — fundamentos de uma política do comum que, ao reinventar o sentido de trabalho, também reencanta a própria ideia de desenvolvimento.

Papel do Direito e da Justiça do Trabalho

Sob esse prisma, o Direito do Trabalho — e, em particular, a Justiça do Trabalho — é convocado a descolonizar suas próprias categorias analíticas e institucionais. Como observa Santos, a descolonização do saber jurídico demanda romper com o monopólio da ciência moderna e reconhecer a pluralidade de racionalidades normativas existentes nas margens do sistema [12]. Assim, reivindicar o trabalho como categoria emancipatória significa resgatar sua dimensão ética, coletiva e transformadora, em oposição à racionalidade instrumental que o reduz a mero fator de produção.

Essa perspectiva desloca o foco do trabalho como valor econômico para o trabalho como ato de criação e reconhecimento, fundamento ontológico da vida social. Nesse sentido, não basta aplicar o conceito de “trabalho decente” como uma fórmula universal e descontextualizada; é necessário reconhecer a diversidade ontológica do trabalho e a pluralidade de seus sentidos.

Isso implica, concretamente: (1) incorporar saberes locais e comunitários nos processos de mediação, conciliação e inspeção do trabalho, valorizando as formas não estatais de resolução de conflitos; (2) dialogar com experiências de autogestão, cooperativismo e economia solidária, que expressam racionalidades econômicas alternativas; (3) reinterpretar o princípio da dignidade da pessoa humana em chave ecossocial e intercultural, reconhecendo o entrelaçamento entre pessoa, território e natureza; e (4) ouvir as vozes amazônicas, historicamente marginalizadas nos espaços de decisão e de formulação normativa.

Impõe-se, por conseguinte, a reinvenção das políticas públicas, da educação e da economia sob outros parâmetros — os da solidariedade, da justiça e do bem viver (sumak kawsay, suma qamaña). Esse giro epistemológico requer: (1) uma educação emancipadora e formação crítica, inspirada na pedagogia da libertação; (2) o fortalecimento das economias comunitárias e solidárias, como expressão da autogestão e da reciprocidade; (3) a redefinição dos conceitos de progresso e desenvolvimento, incorporando dimensões culturais e ambientais e (4) a consolidação de uma ecologia dos saberes como horizonte político para o Direito e para as instituições da Justiça do Trabalho.

Em síntese, pensar o trabalho decente na Amazônia a partir das Epistemologias do Sul é transformar o valor social do trabalho em campo de reconstrução civilizatória, pelo qual o conhecimento jurídico se abre ao diálogo intercultural e à escuta dos territórios.

Trabalho como ponte entre o humano e o mundo

As Epistemologias do Sul constituem um chamado à desobediência epistêmica — um convite a reaprender o mundo a partir dos lugares e sujeitos que a modernidade colonial tentou silenciar.

Na Amazônia, o trabalho transcende sua dimensão produtiva: é expressão de cuidado com a vida, gesto de reciprocidade e afirmação de pertencimento. Trabalhar, nesse contexto, é participar da continuidade da existência, em diálogo com a floresta, os rios e os saberes ancestrais.

Ressignificar o trabalho decente, portanto, significa restituir à categoria jurídica sua força emancipatória — não como instrumento de padronização global, mas como um direito insurgente, que reconhece a pluralidade de modos de vida, de tempos e de economias É politizar o conceito de trabalho, compreendendo-o como um campo de disputa por reconhecimento, redistribuição e emancipação.

Pensar o trabalho decente a partir do Sul — e, mais especificamente, a partir da Amazônia — é propor um novo pacto civilizatório, no qual a dignidade humana não se dissocie da dignidade da Terra. Trata-se de imaginar um horizonte em que o trabalho não seja mera imposição econômica, mas expressão de liberdade e solidariedade — um trabalho que cuida, sustenta e recria o comum.


Referências bibliográficas:

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Amazônia: território, povos e conflitos. Manaus: UEA, 2018.

DUSSEL, Enrique. 1492: O encobrimento do outro. Petrópolis: Vozes, 1993.

ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

MACHADO, Maria Isabel. Mulheres, território e agroecologia: feminismo e resistência no campo brasileiro. Brasília: MDA, 2020.

OIT. Relatório Global sobre Trabalho Decente. Genebra, 1999 e seguintes.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. CLACSO, 2000.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

_________________. Epistemologies of the South: Justice Against Epistemicide. Routledge, 2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2004.

[1] SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2010. p. 23–71.

[2] ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.

[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

[4] SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

[5] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 201–246.

[6] WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 2004.

[7] FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[8] ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.

[9] QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 201–246.

[10] ESCOBAR, Arturo. Sentipensar com a Terra: novas epistemologias do Sul. São Paulo: Elefante, 2016.

[11] MACHADO, Maria Isabel. Mulheres, território e agroecologia: feminismo e resistência no campo brasileiro. Brasília: MDA, 2020.

[12] SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

  • é pós-doutoranda em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal),doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, pesquisadora e autora de livros e artigos.

CONJUR

https://www.conjur.com.br/2025-out-22/epistemologias-do-sul-e-o-trabalho-decente-como-categoria-emancipatoria/