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UNICIDADE
DESENVOLVIMENTO
JUSTIÇA SOCIAL

Recentemente, veio à tona mais um escândalo envolvendo o INSS: a identificação de descontos ilegais nos proventos de aproximadamente 4 milhões de aposentados e pensionistas [1]. As deduções fraudulentas foram lançadas sob a rubrica de supostas contribuições assistenciais, revelando um esquema criminoso que gerou prejuízo estimado em mais de R$ 6 bilhões [2] aos beneficiários e ao erário público.

O acontecimento surpreende pela abrangência, todavia, a vinculação do principal órgão de previdência e assistência social no Brasil em práticas fraudulentas é recorrente e amplamente divulgada pela mídia, desde episódios envolvendo a venda ilegal de dados dos segurados até irregularidades na concessão de benefícios [3].

Além de demonstrar a crise de confiança nas instituições, esse episódio expõe uma dimensão frequentemente negligenciada — e por vezes considerada superada: a da marginalização digital. Com o avanço das tecnologias na denominada Sociedade 5.0, a problemática é comum e erroneamente encarada por juristas e legisladores sob uma perspectiva dualista, ou seja, a do acesso versus o não acesso [4].

Acesso facilitado via digital. Mas nem tanto

Ao elencar o acesso remoto, via aplicativo ou site, como canal prioritário de intermediação entre o segurado e a agência [5], presume-se que as barreiras de acesso já estariam plenamente superadas, já que 89% da população brasileira tem acesso à internet [6]. Apesar disso, estudos mais recentes demonstram que a questão do acesso é apenas uma das abordagens da divisão digital. O uso pleno da internet e das novas tecnologias é um fenômeno complexo, multidisciplinar e que perpassa por pelo menos três desafios: o acesso, a qualidade da conexão e o proveito obtido através da navegação [7].

Por óbvio, a popularização da internet e dos aparelhos celulares ocasionou um aumento do acesso a serviços de comunicação. Ao mesmo tempo, também tornou mais complexo o uso, já que grande parte das atividades da vida civil passaram a depender das plataformas digitais.

É justamente no contexto da transformação digital no acesso a direitos previdenciários e assistenciais que reside um dos grandes paradoxos da proteção social: são as pessoas com menos habilidades as que mais dependem desses serviços [8] e que, hoje, possuem o acesso condicionado às plataformas digitais.

À luz disso, o relatório da Corregedoria Geral da União (CGU) que apurou as fraudes nos benefícios previdenciários demonstrou que os descontos indevidos apenas poderiam ser identificados a partir do extrato do benefício, cuja via impressa era anteriormente fornecida aos beneficiários nas agências da previdência social. Contudo, com a transformação digital do INSS, esse serviço passou a ser oferecido exclusivamente em formato digital, o que dificultou o acesso dos segurados às informações e, por consequência, à detecção das irregularidades aqui mencionadas.

Ademais, a auditoria realizada pela CGU, ao detectar o aumento repentino de contribuições assistenciais nos benefícios, realizou entrevistas aos beneficiários do INSS, as quais concluíram que 42,4% não conheciam o aplicativo “Meu INSS”; 25,1% afirmaram ter conhecimento sobre ele, mas nunca o utilizaram; enquanto 32,4% relataram já tê-lo utilizado [9].

Transformação digital facilitou ilegalidades

No que se refere à vulnerabilidade dos beneficiários do INSS expostos à situação de fraude, a Corregedoria reconheceu que a transformação digital da previdência social, somada à ausência de controle interno, facilitou a realização dos descontos associativos ilegais. Além disso, os beneficiários sequer conseguiram identificar a ocorrência de fraude, tendo em vista a ausência de habilidades digitais necessárias para tanto. Sobre o aspecto, o relatório conclui que:

[…] a própria fragilidade inerente ao perfil dos beneficiários, na sua grande maioria formada por idosos, com maior dificuldade de acesso a canais digitais, associada à deficiência dos instrumentos de controle do INSS, tornam esses beneficiários suscetíveis à atuação de terceiros agindo com o objetivo de obter, sem o devido esclarecimento aos beneficiários, a documentação relativa à filiação e à autorização para o desconto associativo [10].

Esse episódio ilustra como o nível de apropriação das novas tecnologias influencia diretamente no exercício da cidadania. Além disso, ainda joga luz aos conflitos relacionados à autoridade, conhecimento e poder nos dias atuais. O perigo da falta de conhecimento sobre o uso dos próprios dados coloca em xeque a autonomia humana, uma vez que “a concentração de conhecimento sem precedentes produz uma concentração de poder sem precedentes” [11].

As pessoas idosas são a maior parcela beneficiária da previdência social no Brasil. Além disso, o benefício mais concedido atualmente pelo INSS é a aposentadoria por idade [12]. Esses dados revelam que, além do critério etário, também há um parâmetro de classe social que muito diz sobre a maioria dos beneficiários de políticas públicas previdenciárias no Brasil. Infere-se, portanto, que há um grau de homogeneidade entre os denominados marginalizados digitais e os titulares de direitos previdenciários e assistenciais.

Os cidadãos considerados marginalizados digitais não enfrentam somente o desafio do acesso. Como dito, os potenciais benefícios pelo uso da rede são mínimos quando comparados aos obtidos pelos denominados nativos digitais. As limitadas capacidades digitais também refletem em menores condições de se protegerem de ataques cibernéticos e crimes praticados no entorno digital.

Falhas negligenciadas pelo poder público

As recentes denúncias envolvendo fraudes no INSS revelam, obviamente, falhas operacionais, mas também evidenciam o quanto o aspecto humano na adoção de tecnologias tem sido negligenciado pelo poder público. Ao condicionar o acesso a direitos sociais às plataformas digitais, sem qualquer garantia de domínio técnico dos usuários, o INSS inverte a lógica do princípio constitucional da universalidade da proteção social. Nesse processo, os grupos mais vulneráveis — em especial os idosos e a população de baixa renda — permanecem à margem da transformação digital, ainda que formalmente incluídos.

Tal constatação está no cerne das ADPFs 1.234 e 1.236, propostas pelo presidente da República ao Supremo Tribunal Federal, com os objetivos respectivos de restituir integralmente os valores descontados indevidamente aos beneficiários e de questionar a omissão estatal na garantia de acessibilidade digital aos serviços previdenciários.

A arguição da ADPF 1.236 sustenta que o modelo atual de gestão digital do INSS viola direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, o acesso à informação e à previdência social. Além disso, pelo perfil dos cidadãos lesados, há um maior risco de sucumbir à advocacia predatória, tendo em vista a existência de milhões de segurados potencialmente afetados pelas ditas fraudes.

Agravamento da situação

Por fim, prevê-se um agravamento da situação, que ainda é objeto da investigação policial, no que se refere às frequentes tentativas de estelionato via WhatsApp, em que golpistas contatam beneficiários — a partir do vazamento de informações na rede — e se passam por órgãos oficiais, prometendo indenizações superfaturadas em troca de transferências bancárias. Em razão disso, o beneficiário já vítima dos descontos indevidos em sua aposentadoria ou pensão pode vir, futuramente, a ser alvo de falsas promessas de restituições nas plataformas digitais.

Uma tentativa de coibir tais práticas ilegais, inclusive, já foi empreendida pelo senador Paulo Paim (PT-RS) no projeto de Lei 74/2023. A proposta prevê o condicionamento de validade a contratos de empréstimo a idosos com 80 anos à assinatura manuscrita, garantindo, assim, o consentimento ativo do aderente e autodeterminação informativa previstos na LGPD.

Este lamentável incidente nos coloca diante da urgente necessidade de voltar a atenção à proteção dos direitos fundamentais no entorno digital. Portugal, por exemplo, aprovou a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, que assegura, além da proteção dos direitos fundamentais preexistentes no ambiente digital, a proteção de novas manifestações de direitos, considerando as transformações provocadas pela Era Digital.

Marcos regulatórios de ambientes digitais

Enquanto isso, o Brasil carece de marcos regulatórios, tanto em relação ao exercício de direitos no ambiente digital e seu acesso, quanto sobre o uso ético da inteligência artificial [13]. A lógica que orienta tais transformações não pode seguir pautada exclusivamente pela modernização tecnológica dissociada da realidade social. Conforme o próprio preâmbulo da Constituição, o papel do Estado democrático é justamente a garantia dos direitos fundamentais, dos quais a proteção social é parte indissociável.

Além disso, as tecnologias — apresentadas como soluções — estão se tornando, isso sim, um obstáculo ao exercício da cidadania. Por fim, cabe parafrasear uma brilhante passagem do sociólogo holandês Jan van Dijk, que indica que “dar um celular e conexão de internet a alguém não resolve os problemas da sociedade moderna, seria mais correto dizer que é aí que eles começam” [14].


Referências Bibliográficas

MENDES, Beatriz Lourenço. Marginalização digital e governo eletrônico: como garantir direitos previdenciários e assistenciais na cibersociedade?. Granada: Universidad de Granada, 2024. Disponível aqui.

RAGNEDDA, Massimo; GLADKOVA, Anna (Ed.). Digital inequalities in the Global South. London, United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2020.

VAN DEURSEN, Alexander M; VAN DIJK, Jan AGM. Digital skills: Unlocking the information society. Springer, 2014.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Intrínseca, 2018, p. 225


[1] “INSS estima 4,1 milhões de possíveis vítimas de descontos irregulares; plano de ressarcimento começa a ser discutido”. Disponível aqui.

[2] “Operação combate descontos não autorizados de aposentados e pensionistas; valor pode chegar a R$6,3 bi”. Disponível aqui.

[3] INSS atende OAB e retira bloqueio em caso de negativa de pedido por robô”, publicado terça-feira, 1 de novembro de 2022 às 18h25. OAB. Disponível aqui. Vide também: “Robôs do INSS e o indeferimento automático de benefícios”, em Migalhas. Disponível aqui..

[4]RAGNEDDA, Massimo; GLADKOVA, Anna (Ed.). Digital inequalities in the Global South. London, United Kingdom: Palgrave Macmillan, 2020.

[5] Art. 14.  A prestação digital dos serviços públicos deverá ocorrer por meio de tecnologias de amplo acesso pela população, inclusive pela de baixa renda ou residente em áreas rurais e isoladas, sem prejuízo do direito do cidadão a atendimento presencial. Parágrafo único. O acesso à prestação digital dos serviços públicos será realizado, preferencialmente, por meio do autosserviço. (Lei nº 14.129, de 29 de março de 2021).

[6] TIC Domicílios 2024 – Indivíduos. Aqui

[7] VAN DEURSEN, Alexander M; VAN DIJK, Jan AGM. Digital skills: Unlocking the information society. Springer, 2014.

[8] Conforme defendi na minha tese doutoral “Marginalização Digital e governo eletrônico: como garantir direitos previdenciários e assistenciais na cibersociedade?”, a previdência e a assistência social não são apenas “serviços” prestados pelo Estado, mas, antes, direitos fundamentais sociais subjetivos. Sendo assim, o condicionamento do acesso a tais direitos sociais viola os princípios constitucionais da igualdade e da universalidade da cobertura e do atendimento.

[9] Relatório de Avaliação. Instituto Nacional do Seguro Social. Exercícios de 2023 e 2024. Controladoria-Geral da União, 2024.

[10] Relatório de Avaliação. Instituto Nacional do Seguro Social. 2024. Controladoria-Geral da União, p. 23.

[11] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Intrínseca, 2018, p. 225.

[12] Anuário da Previdência Social 2023. Disponível aqui.

[13]  Quanto ao processo de regulação da inteligência artificial no Brasil, cita-se o PL 2338/2023, que se encontra em tramitação.

[14] VAN DEURSEN, Alexander M; VAN DIJK, Jan AGM. Digital skills: Unlocking the information society. Springer, 2014.