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Produto duma conjuntura especialíssima, fascismo tupiniquim foi incapaz de construir um partido ou programa claro. Fora do poder, é possível que reflua. Mas fincou raízes nas Forças Armadas e polícias. Lula precisará desarmar bomba-relógio.

O artigo é de Gilberto Maringoni, professor de Relações Internacionais da UFABC e diretor da Fundação Lauro Campos, foi candidato do PSOL ao governo de São Paulo (2014), em artigo publicado por Outras Palavras, 31-10-2022.

Eis o artigo.

No rescaldo da espetacular e heroica vitória que a democracia impôs sobre o fascismo brasileiro neste 30 de outubro, surgem diversas especulações sobre o futuro imediato das disputas políticas em nosso país. Boa parte delas pode ser sintetizada na frase “vencemos as eleições, mas o bolsonarismo continua firme na sociedade”.

Não tenho segurança alguma em subscrever essa ideia. Ao contrário: minha impressão é que o bolsonarismo tenderá a se tornar uma força com reduzida capacidade de articulação nos próximos meses e sem condições de se coordenar nacionalmente. Digo impressão porque o que escreverei a seguir não é amparado por nenhuma pesquisa de campo, mas pela percepção que uma série de eventos e processos políticos podem nos mostrar. Os fatos apontam que o fascismo brasileiro só se organiza a partir do Estado. O bolsonarismo possivelmente não consegue se coordenar fora dele.

Isso se deve principalmente ao fato de o bolsonarismo não se apresentar como um conjunto de ideias com começo, meio e fim. O bolsonarismo não tem programa claro, a não ser um nacionalismo moralista de fachada, o enunciado de poucos dogmas religiosos e de professar um ultraliberalismo sem freios. O bolsonarismo não é um projeto, mas uma torrente de sensos comuns e uma pregação ininterrupta da violência como dinâmica de intervenção social. É pobre e primário como ideário político.

fascismo brasileiro nunca teve relevância como fenômeno de massas. Seu melhor resultado eleitoral no século XX se deu na disputa presidencial, em 1955. Num pleito vencido por Juscelino Kubitschek, o integralista Plínio Salgado alcançou míseros 8,28% dos votos válidos.

Nove anos depois, o golpe de 1964 – expressão política da extrema-direita militar – foi deflagrado após anos de intensa campanha reacionária dos meios de comunicação e da Igreja Católica, auxiliados pelas Forças Armadas e pela embaixada dos EUA, em tempos de Guerra Fria. A alegação da reação era a de que o povo estava majoritariamente contra o governo João Goulart.

Uma pesquisa realizada pelo Ibope em março de 1964 em diversas cidades brasileiras – não existiam sondagens nacionais – atesta que Jango teria reais chances de vencer as eleições de 1965, caso fosse candidato. Em cinco capitais (Fortaleza, Salvador, Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre), o levantamento indica que entre 51% e 60% dos eleitores o apoiariam. Esses relatórios estão disponíveis online no site do Arquivo Edgard Leuenroth, da Unicamp.

Ou seja, mesmo num clima de histeria anticomunista, com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade realizada em São Paulo e outras capitais, a extrema direita não conseguiu hegemonizar a sociedade. Daí a necessidade do golpe.

O fascismo nacional só voltou com força meio século depois, em uma conjuntura especialíssima que combinou opções desastrosas da centro-esquerda, uma profunda crise provocada por tais escolhas, esgarçamento do tecido social, decepção e desesperança popular. Formou-se então uma frente ampla reacionária que envolvia as Forças Armadas, o Judiciário e os meios de comunicação. Até ali, existia na sociedade a disseminação dispersa de ideias de extrema direita (racismo, elitismo, preconceitos sexuais, clamor por brutalidade policial contra os pobres, autoritarismo etc.), mas jamais com o grau de organização que se alcançou entre 2018-22.

A decepção popular com o estelionato eleitoral cometido pelo segundo governo Dilma, entre 2014-16, se materializou em um ajuste fiscal planejado. Seus resultados foram o aumento acentuado das contas de energia no início de 2015, elevações seguidas das taxas básicas de juros, cortes orçamentários expressivos, recuo do PIB de quase 8% no período e em fazer a taxa de desemprego praticamente dobrar entre janeiro de 2015 e março do ano seguinte.

A situação social do país de forma alguma recomendava uma aventura desse tipo. O ano de 2013 havia sido sacudido por intensas mobilizações públicas, iniciadas pela esquerda e que foram capturadas pela extrema direita nas ruas, após sérios enfrentamentos físicos e midiáticos. A ação governamental para arbitrar e solucionar as demandas foi lerda e quase irrelevante.

Como afirma a economista estadunidense Clara Mattei, “Os economistas inventaram as políticas de austeridade e pavimentaram o caminho para o fascismo”, título de seu livro a ser lançado neste mês. A fragmentação social, o aprofundamento das dificuldades econômicas e a falta de perspectivas sempre abre caminho para discursos demagógicos e salvacionistas de extrema direita. Incapazes de apresentar alternativas no terreno social – emprego, salário, direitos etc. – as novas modalidades de fascismo valem-se de extensa pauta moral e de costumes, além do infalível discurso anticorrupção como forma de obter legitimidade.

Em resumo, a materialização da extrema direita como ideia-força se deu numa quadra histórica situada entre o sequestro das manifestações de 2013 até a fraudulenta prisão de Lula, cinco anos depois, passando pelo desastre governamental de 2014-16 e pelo golpe que retirou Dilma do governo. É nesse processo que um deputado iletrado e medíocre se torna o condutor da frente reacionária nucleada pelo fascismo, que logra vencer o viciado pleito de 2018.

E é a partir da condição de presidente da República, com aparato midiático, verbas infinitas e uso irrestrito da máquina estatal que o bolsonarismo monta uma inexpugnável maioria legislativa, coopta o alto-comando das Forças Armadas com prebendas e sinecuras e que impulsiona uma série de igrejas evangélicas e facilita a vida das milícias, em especial no estado do Rio de Janeiro. É a partir do aparelho de Estado que o ex-capitão se torna figura nacional, com decidido apoio dos grandes grupos midiáticos e do capital financeiro e agrário.

A maior demonstração da falta de organicidade do fascismo bolsonarista é sua incapacidade de criar um partido político. O malfadado Aliança pelo Brasil, lançado em novembro de 2019, teve fim melancólico em abril de 2022, após a constatação de que quase 200 mil assinaturas apresentadas como suporte à sua legalização foram fraudadas. Desde sua entrada na vida pública, no início dos anos 1990, o presidente já passou por nove partidos. Em 2018, alugou o PSL, capitania de Luciano Bivar, para concorrer à presidência. No ano seguinte, desentendeu-se com o dono do negócio e permaneceu sem partido até fechar contrato com Valdemar da Costa Neto, donatário do PSL. Seus candidatos pelos estados espalharam-se por outras legendas fisiológicas.

Se compararmos sua ação com as das lideranças do nazifascismo do início do século XX, verificaremos que tanto Benito Mussolini quanto Adolf Hitler montaram sólidos partidos de massas antes de chegar ao poder, o que expressava o enraizamento popular que obtiveram.

Bolsonaro sai do poder sem nada disso. Embora, repetindo, a extrema direita e o reacionarismo sigam em suas casamatas no Congresso, nas igrejas fundamentalistas, nas milícias e em algumas entidades associativas, pode lhe faltar um esqueleto nacional como só o Estado pode lhe fornecer. Ou seja, seguirá existindo como expressão pública, mas com menor unidade de ação. No caso dos governadores eleitos, uma incógnita se coloca: a maioria parece ser de bolsonaristas de primeira viagem. Com a forte dependência que terão do governo federal – em especial após cortes de impostos para viabilizar as bondades pré-eleitorais – é possível que tendam a um alinhamento tácito com uma Brasília sob nova administração.

Mas o fascismo seguirá forte em alguns bolsões do Estado, em especial no aparato de segurança (Forças Armadas, Abin, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e polícias estaduais). Aqui o problema é sério e só há uma solução. Ela foi dada por Gustavo Petro, menos de um mês após assumir a presidência, em 19 de agosto último. De uma só penada, o novo presidente colombiano anunciou a passagem compulsória para a reserva de nada menos que 52 generais, abrindo 24 postos de comando na Polícia Nacional, 16 no Exército, 6 na Marinha e mais 6 na Força Aérea. Sem sutileza, o presidente avançou sobre instituições tidas como intocáveis na América Latina, ao mesmo tempo em que buscou tirar da frente potenciais ameaças ao futuro de sua administração.

Mais do que especular se o bolsonarismo seguirá sem Bolsonaro, será necessário que o novo governo Lula tome a iniciativa de desativar as bombas-relógio colocadas à sua frente pela ameaça fascista, retirando-a de qualquer alavanca de comando do Estado. O mais provável é que em poucos meses tais correntes percam boa parte da relevância que exibem hoje e o bolsonarismo seja uma tendência marginal na sociedade.

IHU-UNISINOS

https://www.ihu.unisinos.br/623541-havera-bolsonarismo-sem-bolsonaro-no-poder