Prática Trabalhista
Indubitavelmente, a cada dia que passa somos surpreendidos com alguma inovação tecnológica que continua crescendo e se desenvolvendo rapidamente. E não são raras as vezes em que nos deparamos com o atendimento feito por um robô. Aliás, em alguns casos, nem sequer é possível o contato direto com um ser humano, sendo todo o procedimento automatizado. Em razão deste novo cenário, surge a preocupação quanto ao impacto que a inteligência artificial poderá trazer para as relações de trabalho.
Nesse sentido, há certas dúvidas a serem enfrentadas e esclarecidas, a saber: a legislação vigente prevê alguma proteção contra a automação nas relações de trabalho? É possível que ocorra a própria redução de postos de trabalho por conta da inteligência artificial? Qual o posicionamento do Poder Judiciário e do Poder Legislativo sobre o assunto?
Por certo, considerando a preocupação que este assunto desperta não só no Brasil, mas em todo o mundo, a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, desta ConJur [1], razão pela qual agradecemos o contato.
Conceito de automação
Em poucas palavras, pode-se dizer que a automação industrial implica na otimização de processos industriais e produtivos com o auxílio da tecnologia em sentido amplo, ou seja, ela (tecnologia) pode se fazer presente por meio da utilização de máquinas automatizadas, softwares, dentre outros meios tecnológicos, de sorte que a partir dela é possível obter uma solução de forma mais rápida, sem que este trabalho seja necessariamente manual. Vale dizer, ele é executado por uma máquina/robô, e não por um humano [2].
Legislação
Do ponto de vista normativo no Brasil, a Constituição prevê, em seu artigo 7º, XXVII [3], como direito social a proteção contra a automação, na forma da lei. Hoje, porém, não há uma normatização em torno do assunto, apesar da existência de projetos de lei em tramite junto ao Poder Legislativo.
A título de exemplo, o Projeto de Lei nº 4.035/2019 [4] tem por objetivo estabelecer condições para a implementação de tecnologia que implique na supressão de postos de trabalho, para além de sua substituição por processo automatizado. Segundo a propositura legislativa, a dispensa de trabalhadores que for comprovada como decorrente da tecnologia dependerá de uma prévia negociação coletiva. Atualmente, o projeto legislativo encontra-se pronto para a pauta na Comissão de Assuntos Sociais desde o dia 23.5.2023.
Mais a mais, encontra-se hoje também em tramite perante a Câmara dos Deputados o PL 1.091/2019 [5], que trata igualmente do assunto, de modo que até o momento igualmente não houve uma deliberação definitiva. De acordo com o referido projeto, durante os dois primeiros anos de implantação da automação só poderia haver a dispensa de trabalhadores, sem justa causa, mediante prévia negociação coletiva e a adoção de medidas para reduzir os impactos negativos da automação, sendo vedada demissão em massa, como aquela que afeta no mínimo 10% da força de trabalho da empresa [6].
Dados estatísticos
Em 2023, segundo os economistas do Goldman Sachs, a inteligência artificial poderia automatizar até 300 milhões de empregos em tempo integral [7]. Já um outro levantamento realizado entre 13 de maio e 3 de junho de 2024, constatou que 61% das empresas norte americanas planeja utilizar a inteligência artificial no próximo ano para automatizar tarefas que são feitas por seres humanos [8].
O estudo revelou ainda que as empresas confirmam que estão usando a automação, fato esse que já aumentou a qualidade dos produtos (58% das empresas), incrementou também a produção (49%), reduziu os custos trabalhistas (47%) e substituiu trabalhadores (33%).
Já uma pesquisa feita aqui no Brasil apontou que preocupação dos trabalhadores não seria de perder o emprego para os robôs, mas sim para aqueles profissionais que dominem as novas ferramentas tecnológicas [9].
A propósito, pesquisadores do Fórum Econômico Mundial revelam que quase um quarto de todas as profissões hoje existentes irão sofrer algum tipo de mudança nos próximos cinco anos, sendo, portanto, inevitável o aprendizado e aprimoramento de novas habilidades [10].
Necessidade de regulamentação
À vista disso, a Justiça do Trabalho já demonstrou a sua preocupação com a temática, no sentido de que a precarização derivada da automação é um desafio do trabalho atual e que coloca a sociedade em risco. Por isso, a tecnologia necessita de regulamentação, haja vista que, em meio a esta modernização, a miséria continua em destaque [11].
Lição de especialista
Acerca desta importante discussão, oportunos são os ensinamentos de Guilherme Guimarães Feliciano e José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva [12]:
(…). Dessa vez, não é papo alarmista de humanistas, filósofos e sociólogos. Com efeito, uma das implicações mais acentuadas da utilização desregulamentada da IA é a que se relaciona à intensa perda de postos de trabalho, o que deixará milhares de trabalhadores à margem da sociedade, formando um inédito exército laboral de reserva. Não por outra razão, um dos maiores pensadores do mundo neste início de século tem profetizado em suas magníficas obras que estamos a criar uma geração de inúteis. Yuval Noah Harari bem explica as consequências da IA para o mundo do trabalho. Sem rodeios, tratando da possibilidade de os motoristas serem substituídos pelos veículos autônomos, ele sustenta que é “altamente provável que motoristas de táxi sigam o caminho dos cavalos”, que perderam totalmente sua utilidade quando a Revolução Industrial propiciou a substituição das carruagens e charretes pelos automóveis. Não apenas os motoristas estão com seus empregos ameaçados, mas também corretores da bolsa de valores, tendo em vista que grande parte “das transações na atualidade já é gerenciada por algoritmos de computador, que podem processar em um segundo mais dados que um humano em um ano”. Também parte considerável da classe dos advogados está com os dias contados”.
Conclusão
Portanto, é certo que a inteligência artificial e a automação já estão mudando o mercado de trabalho, e não obstante a Lei Maior assegure a proteção aos trabalhadores, ao que parece o Poder Legislativo ainda não assumiu o papel que é próprio do Parlamento no sentido de aprovar uma regulamentação que traga rápidas respostas para esta grave questão social, mesmo diante de uma revolução tecnológica sem precedentes.
Em arremate, se é verdade que os trabalhadores devem estar preparados para as futuras e novas realidades, de igual modo deve haver uma preocupação do Estado em garantir que esta revolução tecnológica não fomente ainda mais desigualdades sociais. Por isso, revela-se imprescindível o estudo e a adoção de medidas legais capazes de garantir um mínimo de efetividade aos direitos sociais, afinal, se as metamorfoses causadas pela tecnologia são por óbvio inevitáveis, devem ser criadas, doravante, respostas para se evitar uma maior precarização e um injustificado retrocesso social.
______________________________________
[1] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.
[2] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/automacao-industrial/#goog_rewarded. Acesso em 21.10.2024.
[3] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…). XXVII – proteção em face da automação, na forma da lei;
[4] Disponível em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137793#:~:text=Projeto%20de%20Lei%20n%C2%B0%204035%2C%20de%202019&text=Regulamenta%20o%20inciso%20XXVII%20do,face%20de%20processo%20de%20automa%C3%A7%C3%A3o . Acesso em 22.10.2024.
[5] Disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192959&fichaAmigavel=nao#:~:text=PL%201091%2F2019%20Inteiro%20teor,Projeto%20de%20Lei&text=7%C2%BA%2C%20da%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20Federal%2C%20que,%2C%20na%20forma%20da%20lei%22.&text=Constitui%C3%A7%C3%A3o%20Federal%20(1988)%2C%20regulamenta%C3%A7%C3%A3o,trabalhador%20rural%2C%20automa%C3%A7%C3%A3o%2C%20empregador. . Acesso em22.10.2024.
[6] Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/556468-PROJETO-REGULAMENTA-PROTECAO-DO-TRABALHO-AFETADO-PELA-AUTOMACAO . Acesso em 22.10.2024.
[7] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/inteligencia-artificial-pode-afetar-300-milhoes-de-empregos-no-mundo-diz-goldman-sachs/ . Acesso em 22.10.2024.
[8] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/negocios/inteligencia-artificial-esta-substituindo-humanos-mais-rapido-do-que-voce-pensa-mostra-pesquisa/ . Acesso em 22.10.2024.
[9] Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/brasileiros-nao-se-preocupam-em-perder-emprego-para-robos-diz-estudo/. Acesso em 22.10.2024.
[10] Disponível em https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2024/08/20/as-habilidades-necessarias-para-ter-sucesso-na-era-da-inteligencia-artificial.ghtml. Acesso em 22.10.2024.
[11] Disponível em https://www.trt7.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=14146:precarizacao-decorrente-da-automacao-desafia-mundo-do-trabalho-atual-diz-ministro-do-tst&catid=152&Itemid=886. Acesso em 22.10.2024.
[12]Disponível em https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/203676/2022_feliciano_guilherme_inteligencia_artificial.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 22.10.2024.
é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista, sócio fundador de Calcini Advogados, com atuação estratégica e especializada nos tribunais (TRTs, TST e STF), docente da pós-graduação em Direito do Trabalho do Insper, coordenador trabalhista da Editora Mizuno, membro do comitê técnico da revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, membro e pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.
é advogado de Calcini Advogados. Graduação em Direito pela Universidade Braz Cubas. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito. Especialista em Direito Contratual pela PUC-SP. Especialista em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha (Espanha). Especialista em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC – IUS Gentium Coninbrigae), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal). Pós-graduando em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Pesquisador do Núcleo de pesquisa e extensão: “O Trabalho Além do Direito do Trabalho” do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da USP, coordenado pelo professor Guilherme Guimarães Feliciano.
CONJUR