OPINIÃO
Um dos desafios mais candentes de regulação dos sistemas de inteligência artificial (IA), atualmente em discussão no Senado (Projeto de Lei 2.338/2023), é integrar a proteção dos direitos autorais com este novo ambiente tecnológico. E as intensas paixões e rejeições que o assunto suscita, quando exacerbadas, inviabilizam a compreensão das dimensões necessárias à sua regulação adequada.
Desafios tecnológicos e regulatórios não são novidade para os direitos autorais. A proteção das expressões artísticas e culturais está diretamente ligada à inovação tecnológica, que tem possibilitado, ao longo dos tempos, diversas formas de expressar, difundir e utilizar criações, como mostra a história da fotografia, do cinema e da música, entre outros.
São justamente essas expressões humanas criativas, minimamente originais, e que traduzem a cultura de um tempo, que são protegidas pelos direitos autorais. A pessoa física autora ou artista e suas expressões são, por isso, a razão de ser desses direitos.
Obstáculos
O mais sensível problema da regulação desse tema é assegurar a continuidade da atividade cultural humana remunerada diante de uma tecnologia disruptiva como a IA, que produz textos, imagens e sons que emulam as criações artísticas. E o entrave principal é assegurar uma remuneração justa e equitativa para os efetivos autores e artistas, que enfrentam obstáculos de duas ordens: tecnológica e contratual.
O primeiro diz respeito aos impactos das IAs nas artes, principalmente a insegurança sobre a viabilidade econômica da atividade, o medo de substituição e concorrência direta com produtos de IA, e a insegurança de não saber, entender ou controlar os usos e efeitos sobre seu futuro profissional e pessoal. E o fato de não serem inéditos nem específicos das atividades criativas, em nada alivia a dor real que acompanha essa percepção. Inclusive, por exemplo, os tradutores, que são tão autores quanto os demais criadores, vivem hoje sob o impacto das traduções automatizadas na comunicação pessoal e profissional. Além disso, o surgimento de novos intermediários distancia ainda mais os criadores do público e da renda.O segundo obstáculo diz respeito ao funcionamento da indústria cultural, e nada tem a ver com a tecnologia. Poucos titulares, geralmente empresas de grande porte, controlam a remuneração por direitos autorais de inúmeros artistas, que, por sua vez, não têm acesso aos recursos provenientes de suas obras. Neste contexto de dominação, as condições contratuais determinadas por estes agentes são particularmente desfavoráveis aos interesses e direitos dos criadores, artistas e dos produtores culturais independentes, sejam regionais ou locais.
Nova remuneração
E aqui o novo e o velho se encontram. Dentro da indústria cultural, o desequilíbrio contratual e a consequente baixa remuneração dos criadores são clássicos dos direitos autorais e anteriores às atuais IAs. A ascensão das empresas de tecnologia, como as plataformas, trouxe novos e poderosos intermediários que controlam os fluxos das obras e receitas no ambiente digital. E, neste cenário, os acordos e pagamentos ocorrem entre as matrizes dos grandes titulares de direitos autorais e empresas de tecnologia, invariavelmente situadas no Norte global.
Uma nova remuneração está proposta no PL 2.338/2023 sobre a disponibilização comercial de IAs que utilizem obras protegidas em seu treinamento. Contudo, problemas antigos são perpetuados sem garantias legais de que tal remuneração chegará aos criadores pessoas físicas.
As desigualdades na negociação dos contratos são obstáculos concretos, acentuadas pela concentração econômica nas mãos de pouquíssimos titulares e plataformas que detêm grandes bancos de dados com obras protegidas. E, neste cenário, os ganhos dos titulares de direitos autorais comumente não se revertem em remuneração para os autores e artistas. São barreiras praticamente intransponíveis, daí a importância de se estabelecer uma remuneração inafastável contratualmente e em benefício exclusivo dos autores e artistas, pessoas físicas, sob risco concreto de nada receberem.
O PL ainda pode e merece melhorias. É possível garantir uma remuneração obrigatória aos reais criadores, pelo menos no que tange aos usos de obras nas IAs, e assim evitar que os únicos beneficiados sejam os titulares de grandes catálogos e bancos de dados, controlados pela indústria cultural ou pelas plataformas, em prejuízo inclusive de eventuais novos concorrentes no mercado de IA, como já vimos acontecer com o streaming.