Janus, divindade romana dos começos e das travessias, contempla simultaneamente o passado e o futuro. A imagem é precisa: o mercado de trabalho brasileiro está diante de um limiar. De um lado, a CLT forjada em 1943. De outro, a economia digital que dissolve fronteiras entre vínculo e autonomia. O desafio é construir uma ponte — sem negar a proteção, mas sem sufocar a liberdade.
A mais recente pesquisa Datafolha, divulgada em 21 de junho, revelou que 59% dos brasileiros preferem trabalhar por conta própria. Entre os jovens de 16 a 24 anos, o índice sobe a 68%. O dado não surpreende quem acompanha as transformações do mundo do trabalho. Ele apenas confirma que uma nova geração valoriza flexibilidade, autonomia e controle da própria jornada — mas não deseja fazê-lo à margem das instituições.
A mesma pesquisa mostra que dois terços da população ainda valorizam a carteira assinada, mesmo com remuneração inferior. A tensão está posta: liberdade sim, abandono não. Autonomia sim, mas com proteção mínima. O ordenamento atual não responde a esse anseio. E a hesitação legislativa tem sido substituída por uma crescente judicialização.
No Supremo Tribunal Federal, o Tema 1.121 aguarda definição sobre a natureza jurídica dos motoristas de aplicativo. No Tribunal Superior do Trabalho, decisões oscilam entre o reconhecimento de vínculo e a manutenção da autonomia. A insegurança jurídica que daí decorre amplia o risco regulatório, inibe investimentos e penaliza tanto os trabalhadores quanto as empresas.
Uma nova categoria, com cinco pilares
A experiência internacional traz lições valiosas, desde que observadas com rigor crítico. A chamada Ley Rider, da Espanha, ao impor presunção absoluta de vínculo empregatício para entregadores, provocou recuo de plataformas, exclusão de milhares de prestadores e aumento da informalidade. A proposta de diretiva europeia sobre trabalho em plataforma enfrenta críticas semelhantes: ignora as particularidades do setor e tende à rigidez excessiva.
Por outro lado, países como o Reino Unido oferecem modelos mais equilibrados. A figura do worker, categoria intermediária entre empregado e autônomo, garante aos prestadores o acesso a direitos como salário mínimo, férias proporcionais e proteção contra demissão arbitrária, sem impor um vínculo tradicional. O Chile, por sua vez, propôs um regime flexível, com contribuição proporcional, portabilidade de benefícios e respeito à autonomia contratual.
Esses exemplos reforçam a necessidade de uma solução brasileira, ancorada em nossa realidade econômica, produtiva e institucional. Importar estruturas jurídicas alheias ao nosso contexto seria um erro duplo: replicar o que não funciona e ignorar o que nos é possível.
Nesse espírito, propõe-se a criação de uma nova categoria jurídica: o trabalhador digital protegido. Diferentemente do empregado tradicional, ele manteria a flexibilidade contratual, mas teria acesso a um núcleo essencial de direitos universais. Entre eles: salário mínimo proporcional ao tempo de atividade, cobertura obrigatória por seguro de acidentes pessoais, licença médica mínima em caso de afastamento superior a sete dias e acesso facilitado a crédito e capacitação.
Esse núcleo funciona como alicerce de um Regime Janus, com cinco pilares complementares.
O primeiro é a presunção relativa de dependência quando houver subordinação algorítmica — como controle de tarifas, rotas ou sanções. Cabe à plataforma demonstrar a autonomia efetiva do prestador, invertendo o ônus da prova.
O segundo é a contribuição previdenciária compartilhada, com alíquotas progressivas entre empresa e trabalhador, incidindo sobre a renda declarada no e-Social. Assim, protege-se o equilíbrio fiscal sem importar o peso da CLT.
O terceiro é um seguro-renda para períodos de baixa demanda, financiado por fundo setorial abastecido por percentual das intermediações. A proposta não substitui a proteção previdenciária, mas a complementa nos meses de maior vulnerabilidade.
O quarto é a transparência algorítmica. Critérios de ranqueamento, tempo de espera e motivos de bloqueio devem ser acessíveis ao prestador, com garantia de revisão administrativa célere e previsível.
O quinto é o reconhecimento da negociação coletiva por ramo digital, com legitimidade para fixar pisos remuneratórios, horários, pausas e diretrizes de saúde ocupacional. A lógica é de regulação por contrato, não por decreto.
Esse arranjo evita a armadilha da precarização, preserva a liberdade contratual e oferece um horizonte claro de proteção básica, incentivo à formalização e estabilidade institucional. É tecnicamente possível, juridicamente viável e politicamente necessário.
Do ponto de vista constitucional, o Regime Janus harmoniza os incisos XXIII e XXVII do artigo 7º — que protegem tanto o trabalhador com vínculo quanto o autônomo — com o artigo 170, que consagra a livre iniciativa. Não se trata de escolher entre rigidez e abandono, mas de construir uma síntese funcional, compatível com a realidade do século 21.
A pesquisa Datafolha captou o espírito de uma era. Os brasileiros querem escolher como trabalham, mas não querem fazê-lo sozinhos. O direito não pode ignorar essa ambivalência. Como Janus, é preciso olhar para trás com responsabilidade — e para a frente com coragem.
A Casa Parlamento está de portas abertas para esse debate, que já ocupa lugar central nos encontros promovidos pela Esfera Brasil. O momento é propício para que setor público e setor privado construam juntos um novo modelo.
Camila Funaro Camargo Dantas
é CEO da Esfera Brasil e do Instituto Esfera de Estudos e Inovação.
CONJUR
https://www.conjur.com.br/2025-jul-01/janus-e-a-travessia-regulatoria-do-trabalho-por-aplicativos/