A tragédia do Sul não é a tragédia do Sul. É a tragédia sistêmica de um país submetido por mais de 3 décadas a políticas de desmonte do Estado, de privatizações de decisões estratégicas, de disseminação da lorota de que o desenvolvimento pode ser conduzido pelo mercado, de que regras ambientais restringem a atividade econômica do agronegócio, de que códigos reguladores são travas à modernização, de que a infraestrutura e decisões de investimento podem ficar nas mãos de monopólios, cujo centro de operações estão fora do País e de que a política atrapalha decisões que seriam puramente técnicas.
Gilberto Maringoni*
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), apóstolo exaltado das virtudes do mercadismo, cinicamente pede Plano Marshall ao governo federal. O plano original foi patrocinado pelos EUA para reconstruir a Alemanha Ocidental e outros países da Europa logo após a 2ª Guerra Mundial. Era projeto de Estado, que tinha como objetivos reativar economias e garantir a supremacia de Washington num continente devastado, nos inícios da Guerra Fria. Leite deplora o Estado quando o vento está a favor, mas corre a pedir socorro quando o tempo vira.
Com oportunismo ou não, Leite aponta a direção correta, mas subestima a intensidade da iniciativa. Para ficarmos nas analogias históricas, o Rio Grande do Sul não precisa de Plano Marshall, mas de New Deal. Com 80% de seus municípios devastados ou impactados pela fúria natural impulsionada pela ação humana, o Rio Grande viveu tragédia semelhante há poucos meses e viverá novas, pois as condições objetivas de devastação ambiental e alucinação privatista não mudaram.
Possivelmente, se nada for feito em termos estruturais, não há segurança alguma para a volta de populações a Porto Alegre e a outras cidades, diante das ameaças recorrentes de catástrofes semelhantes à atual. Qual a segurança para a indústria, para o comércio e para a realização de investimentos numa região que, a qualquer momento, pode enfrentar novamente hecatombe como a desse abril-maio de 2024?
Meu amigo Mauro Lopes, com refinado tino jornalístico, afirma que a catástrofe gaúcha pode ser “a pandemia do Lula”. Risco ou oportunidade, para ficarmos no lugar-comum. Pode ser a pandemia ambiental do Brasil, vez que outras regiões estão sujeitas a sofrer fenômenos equivalentes. A ocupação desordenadamente ordenada do solo pela especulação imobiliária e a exploração de áreas próximas a mananciais fazem de megalópoles como São Paulo e Rio de Janeiro potenciais locais de devastações de várias ordens.
A privatização da Sabesp, uma das maiores empresas de saneamento do mundo, desloca irresponsavelmente a empresa para atuar como agência financeira a bombear recursos milionários para as mãos de controladores, elevando tarifas, precarizando serviços e degradando o meio ambiente. Atentemos para o que foi a transformação da Companhia Vale do Rio Doce, fundada no primeiro governo Vargas, de verdadeira agência do desenvolvimento em empreendimento extrativista sem preocupação alguma com entorno.
A “pandemia do Lula” pode ter vários focos de vulnerabilidade.
Precisamos de 1 New Deal, novo acordo, com a ousadia que os governantes dos Estados Unidos tiveram há 90 anos. Franklin Roosevelt anunciou, na primeira mensagem ao Congresso em março de 1933, ousado plano, com mais de 150 iniciativas de investimento e medidas de impacto político, econômico e social para tentar tirar os EUA do atoleiro da crise de 1929. Foram bilhões de dólares investidos a fundo perdido, numa verdadeira ação de reconstrução do Estado.
Há pequeno detalhe a ser ressaltado: planos ousados de investimentos são incompatíveis com toscas medidas de ajuste fiscal, tão ao gosto de mercado que atua de forma pró-cíclica em relação às catástrofes. Não é à toa que, ao mesmo tempo em que se anunciam verbas extraordinárias para o Sul, vozes do financismo multiplicam-se em editoriais, entrevistas e lobbies descarados pela mídia, disseminando o pior dos mundos caso a “gastança” não seja contida.
O pior dos mundos é o aqui e o agora com travas fiscais — como o arcabouço — que impedem grandiosos e contínuos investimentos para socorrer emergencialmente o Sul e buscar transformação no modelo de desenvolvimento.
Não se trata de algo impossível. Em 2 oportunidades, quando se defrontou com problemas profundos, como a Crise de 1929 e a crise dos anos 1970, o Brasil apresentou ao mundo saídas originais para a recuperação econômica. Celso Furtado lembra, em “Formação econômica do Brasil”, que série de investimentos anticíclicos por parte do Estado tiveram rápida resposta econômica.
“Explica-se, assim, que já em 1933 tenha recomeçado a crescer a renda nacional no Brasil, quando nos EUA os primeiros sinais de recuperação só se manifestam em 1934”, escreve ele. Na crise do dólar em 1972/73, a resposta brasileira foi rede de investimentos e induções estatais da economia — consubstanciados em 1975 no 2º Plano Nacional de Desenvolvimento — que adiou a crise até 1979.
Começamos a recuperação do Rio Grande com recursos extraordinários, que vão muito além do garrote do arcabouço fiscal, o plano da alta finança para manter o Brasil sequestrado pela especulação. É bom caminho, mas paliativo diante da tragédia climática.
A nova pandemia precisa de combate profundo, caso não queiramos anular cultural, social, econômica e politicamente uma das mais importantes unidades da Federação.
(*) Professor de Relações Internacionais da UFABC e candidato do PSol ao governo de São Paulo, em 2014.
DIAP